"A beleza da flor do cacau. Um bem da natureza a encantar o homem".
(Luiz Ferreira, 2022)
Beleza, sim, que a praga da vassoura-de-bruxa não respeitou, só fez dizimar, a partir de 1990, mas a poesia não esqueceu essa maldade inexplicável. Leia-se, abaixo, este soneto composto no modelo inglês (shakespeareano), que ressoa este cenário de tragédia rural.
Fui por esses dias subitamente surpreendido com o envio pelo WhatsApp de um depoimento, cuja crueza e indícios de veracidade me assustaram, embora o fato a que se remonta seja objeto de dor, revolta, comentários, críticas e protestos na Região do Cacau da Bahia: o surgimento da praga da vassoura-de-bruxa, por volta de 1990, que devastou tragicamente a lavoura cacaueira, cerca de 100 anos depois de economicamente explorada, e até hoje exibe o seu rastro fatal. Refletindo sobre essa fatalidade que ainda me comove, porque nascido, de pai então tropeiro, no interior de roças de cacau, à beira de uma estrada-de-ferro, fiquei a meditar sobre que motivos, se realmente verdadeiro o que é narrado neste, como faz supor pelo realismo cru da narrativa, não levaram adiante as investigações, para conclusões definitivas sobre o crime praticado contra toda uma região e toda uma lavoura. E, mais ainda, porque ainda não surgiu, no plano da criação artística, um romance, uma peça de teatro, que tomem essa tragédia rural como tema. Até o memento, desconheço. Mas, eu, na minha dolência de pobre vate regional, não o esqueci. Assim é que, ao lado da transcrição da impressionante e clamorosa denúncia que transborda do depoimento, na sua crua elocução, resolvi transcrever vasto poema que escrevi carregado de angústias cacaueiras, a partir desse tristonho acontecimento.
Vão os dois abaixo.
DEPOIMENTO
Paulinho Tim: Eu Luiz Henrique Franco Timoteo, 55 anos de idade, brasileiro, solteiro, administrador de empresas, CPF nº 135.724.745-15, RG nº 761.597 SSP/BA, declaro para os devidos fins e efeitos legais que se fizerem convenientes:
Que presto as seguintes declarações de livre e espontânea vontade, consciente da responsabilidade, sem nenhuma coação e premiação, motivada pelo desejo de fazer justiça e responsabilizar os culpados por um ato terrorista cometido contra a Região Cacaueira do Sul da Bahia.
Que participei em 1987 de uma reunião no antigo bar e churrascaria Caçuá localizada na Praça Camacan em Itabuna, na qual a cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) planejou a introdução e disseminação na Região Cacaueira da Bahia de uma devastadora doença do cacaueiro conhecida como vassoura-de-bruxa (VB).
Que desta reunião participaram cerca de oito a dez pessoas entre as quais estavam presentes: Geraldo Simões, ex-prefeito de Itabuna e atual presidente da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba), Wellington Duarte, apelidado de Gamelão, atual titular da Superintendência para Bahia e Espírito santo, da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Subes/Ceplac), Elieser Corrêa, conhecido como Catatau, atual chefe do Centro de Extensão e Educação - Cenex/Ceplac, Everaldo Anunciação ex-coordenador geral da Ceplac, Jonas Nascimento, conhecido como Jonas Babão, atualmente, encarregado de Assuntos Pedagógicos do Cenex/Ceplac, Josias Gomes atual deputado federal, entre outros.
Que nesta reunião Jonas Nascimento, da cúpula do PT, propôs ao grupo a introdução e disseminação da vassoura-de-bruxa na região cacaueira do Sul da Bahia, devido a que eles eram petistas e revolucionários.
Que outras razões dadas pelo grupo do PT para a introdução e disseminação da vassoura-de-bruxa na região cacaueira do sul da Bahia foram:
"Que eles não eram cacauicultores e que eles dependiam de emprego e de política revolucionária na região".
"Que a única forma de tomar o poder na região cacaueira era enfraquecer economicamente os produtores de cacau".
"Que a melhor forma de enfraquecer e quebrar o poder econômico dos produtores de cacau era a introdução e disseminação da vassoura-de-bruxa na região para o PT tomar conta".
Que, de acordo com o plano traçado por este grupo, o material infectado pela vassoura-de-bruxa foi trazido em 1987 de Ouro Preto do Oeste, Rondônia, em carro oficial por Jonas Nascimento e, posteriormente, de ônibus pelo declarante.
Que inicialmente ramos e frutos de cacau, infectados com vassoura-de-bruxa, e sementes germinadas de cupuaçu (como hospedeiros alternativo da vassoura-de-bruxa) foram colocadas sigilosamente numa roça de cacau da fazenda Boa Esperança de Selerino de Almeida, na estrada Buerarema/Sururu, a mais ou menos 8km de distância da cidade de Buerarema.
Que a vassoura-de-bruxa multiplicada nessa roça de cacau em Buerarema serviu de base para disseminações posteriores da região.
Que o critério estabelecido pelo grupo do PT para a dispersão da vassoura-de-bruxa foi disseminá-la primeiramente no centro da região cacaueira, em pontos estratégicos, com clima propício para a multiplicação rápida da doença e, posteriormente, nas outras localidades e em diferentes etapas de acordo com o material disponível. Desse modo, a natureza se encarregaria pela disseminação nos outros cacaueiros da região.
Que a escolha de fazendas para disseminação da doença seria em grandes fazendas com maior poder econômico.
Que esta operação era conhecida dentro do PT como Operação Cruzeiro do Sul com a estrela de quatro pontas significando que a vassoura-de-bruxa seria disseminada nos quatro pontos cardeais.
A doença foi disseminada no sul, na fazenda Santo Antônio de Luciano Santana em Camacan; ao norte, em Ibirapitanga, na fazenda Serra de Areia de Manoel Joaquim de Carvalho, em Travessão, na fazenda Monte Alegre de propriedade de Armindo Figueiredo conhecido como "Minduca" e numa fazenda pertencente à família Thiara em Ipiaú; no cent
[20h42 06/05/2016] Paulinho Tim: Que durante 1988 a 1991, numa segunda e terceira etapas da operação, o declarante trouxe, de ônibus, mais material vegetativo infectado pela vassoura-de-bruxa das áreas de Jarú, Cacoal e Ariquemes, cidades localizadas no estado de Rondônia.
Que posteriormente e em várias ocasiões recolheram ramos de cacau infectados com vassoura-de-bruxa de diferentes fazendas que foram utilizados para a disseminação da doença em outras áreas da região.
Que na segunda e terceira etapas, a vassoura-de-bruxa foi disseminada nas principais fazendas localizadas aos dois lados de BR 101 e nas estradas transversais iniciando-se na fazenda de Ozéias Gomes em Buerarema; na fazenda dos Riela ao lado direito da BR 101 depois do Posto Cacau, fazenda Puaias, na Fazenda Porto Híbrido do ex-governador Roberto Santos, fazenda Monte Alto, fazenda Itacomcal de Valtério Teixeira; na estrada de Pratas/Jussarí na fazenda Alto da Graça, e mais adiante numa fazenda antes da fazenda Potumujú; na fazenda Contrato de Lauro Astolfo no entroncamento de Arataca; fazenda de Rogério Vargens depois da Serra Boa, fazenda Rainha do Sul de Mario Pinto; fazenda da família Moura e na fazenda de Gilberto situadas na antiga estrada Panelinha/Camacan; em alguma fazenda no ramal do Biscol; fazenda Santa Úrsula de Antônio Benjamin no entroncamento de Mascote; fazenda São Paulo na estrada de Camacan/Jacareci; em Pau Brasil na fazenda de Domingos Galvão; e também na fazenda de Marcelo Gedeon e na fazenda de Eolo Kamei, ambas localizadas na estrada Arataca/Una.
Que na mesma época de segunda e terceira etapas, a vassoura-de-bruxa foi disseminada na estrada Itabuna/Ilhéus na fazenda Primavera e na fazenda Alegrias ao lado da Universidade Estadual de Santa Cruz - Uesc. Na estrada de Uruçuca/Ilhéus na fazenda Convenção, na fazenda de Badaró e na fazenda Lagoa Pequena de Mendonça, localizada na região de Castelo Novo, na fazenda Bomfim de Otávio Muniz na região de Rio do Braço, Ilhéus e também na fazenda Boa Sentença de Ângelo Calmon localizada perto de Ferradas, na fazenda do juiz Élson Gottchalk em Inema e na fazenda Guanabara ao lado da fazenda Progresso em Itabuna.
Que apesar da decisão de infectar essas fazendas, ramos infectados com vassoura-de-bruxa eram pendurados nas árvores de cacau em várias fazendas por onde o grupo do PT passava, sempre pelo no final da tarde, em locais longe da sede das fazendas ou fora de moradias dos trabalhadores.
Que sempre tomavam todos os cuidados para que ninguém desconfiasse, assim, uma pessoa do grupo simulava urinar e outras pulavam cercas das fazendas, pendurando ou jogando ramos infectados com vassoura-de-bruxa nas copas dos cacaueiros, principalmente os localizados nas beiras das rodagens.
Que devido à rigorosa vigilância da sua administração, a única fazenda de grande porte que escapou da disseminação da doença foi a Unacau no município de São José de Vitória.
Que se dividiam em grupos de 4-5 pessoas, duas ou três vezes por semana, e utilizavam veículos particulares para disseminar a vassoura-de-bruxa em diferentes áreas da região.
Que o declarante Luiz Henrique, Jonas Nascimento e Elieser Correa levaram um saco contendo material infectado com vassoura-de-bruxa para que a doença também fosse disseminada nas plantações do Centro de Pesquisas do Cacau (Cepec/Ceplac). Isto tinha como objetivo dizer que a Ceplac tinha trazido a vassoura-de-bruxa para estudo e que da Ceplac tinha-se disseminado por toda a região cacaueira. Contudo, no momento que o saco com os ramos infectados pela vassoura-de-bruxa foi retirado do carro particular no final do expediente, apareceu de repente em vigilante e, com medo de serem flagrados e não havendo mais jeito para colocá-lo novamente no carro, este acabou sendo abandonado. Portanto, o saco encontrado no Cepec com vassoura-de-bruxa foi deixado no local, no final de 1989 ou início de 1990.
A ocorrência do saco com vassoura-de-bruxa encontrado no Cepec poderá ser confirmada nos arquivos da Ceplac, nos da Polícia Federal de Ilhéus e por Paulinho Tim: http://2.bp.blogspot.com/.../UT6.../AAAAAAAABug/qj86MTkhVnc/
(06/05/2016)
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Roteiro da introdução da vassoura-de-bruxa, nos cacaueiros |
Medusa, a única mortal das Górgonas, em pintura de Caravaggio
LAVOURA FATAL COM GÓRGONAS
As portas e as janelas, tristemente,
Assim como derrete campos vastos,
O sol na tarde insulta rosto ardente.
Sou um homem de outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram matas, montes, rios,
Na aura vertiginosa dos plantios,
Carregam a memória de balaços,
Que hoje não denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus que chega e arreia a mala,
Vindo de México ou de Guatemala,
Amor ao ferro, só, nenhum alerta.
E quando as intempéries regurgitam,
São os céus vingativos que vomitam.
(Florisvaldo Mattos, Salvador/BA, 26/04/2017)
CACAU CANTO CLAMOR
(Ao ontem verde com alma)
A Jorge Amado, in memoriam
Um gran vuelo de cuervos mancha el azul celeste.
Rubén Darío (Cantos de Vida y Esperanza, 1905)
I
Na terra farta de frutos
sigo os rios.
Na árvore gorda de grãos
sorvo a seiva.
Vou, sim, vou.
Cacauais me amparam
de sol terroso,
de chuva rude.
Ó infinitude, áureo cosmo
prenhe de diálogos verdes,
depois safra de soluços!
Ressoando primórdios
de edênicas andanças,
a natureza sorria
abraçada com os homens.
Vale lembrar este tempo
em que a mata acordava.
Não se ouviam trombetas,
pulmões fortes, buzinas,
nem bodegas rurais,
nem sorrisos de moças
ou violões seresteiros.
Sim, pássaros nos ninhos
lobrigam o abismo verde
ou músicos passeiam
sobre a clave dos ramos
de onde pendem saguis
ou o jupará de amanhã.
(Ó natural semeadura de crenças,
Ó gestos noturnos que a selva oculta,
Ó dias de ontem nada temerosos!).
Ali, sim, se estabeleceu aurora
de raízes jamais adormecidas.
II
Cegou-se o horizonte?
Nunca mais hei de ver
manhãs fecundas,
tardes dormentes,
noites que anunciavam
certezas do outro dia?
E as mudas, vingaram?
E as vozes, clamaram?
Sou um colecionador de sombras,
de veredas mortas, onde
mãos burocráticas impudicas
imprimiram
sobre caules, ramos, folhas
signos de amor ausente,
afrontaram
a memória do chão,
a de quem por ele transitou
com alma e sonhos perenes.
Um dia, dirão: acorde e parta,
as estradas de ontem se fecharam,
o ar de frescor apodreceu,
a água encheu-se de mercúrio,
as pedras são sobras de incêndio,
e só restou a mim para apagá-lo.
Mudo, fito o que não sou.
Perplexo, converso com o nada.
III
Da janela do trem olhos inúteis
refazem itinerário sob poeira,
bordejam matas, coloridos montes,
morada de vozes e saltitantes rostos;
sonhos férvidos trafegam pelos
debruns da tarde, antes que a noite
chegue e me devolva migalhas de ontens,
meras sobras de metamorfoses.
Não te aconselho a chorar, quando passes
e mires o deserto de nutridas safras nem
o que se passou, o que, nítido e úmido,
nasceu, vibrou, viveu, tombou, morreu.
Homem, entende: todos quererão saber
o quem, o que, o quando, o como e o por quê,
de madura fatalidade e dor no sangue.
IV
Dirás que homens vieram na noite grande,
misturando longes, fomes e outros brados.
Alpercatas tiniam, dentes rangiam, calças
de mescla e brim ressoavam pelos vaus.
Ávidas faces de crianças ecoam maldições.
Os que vieram do Norte com chagas e sonhos,
guerreiros e santos em busca de água e pão,
mártires de pés rachados e barba por fazer;
do Norte, de Sergipe e Canudos, lapeados
de caatinga abrasante, e os mais de África rastros,
que obscuros vieram também para ser donos
de terras sobre encostas e perambeiras únicos.
Cambaleando na noite fantasmática,
esgueiram-se na selva contra os medos,
para emergir na terra solidária
banhados de suor e economia.
Sombra e dor no semblante, fecundos passos,
espalharam claridade em solo de durezas,
e logo a terra-úbere, à vasta luz abrindo-se,
vingou, gerou seiva abençoada pelas estrelas.
V
Dirás que homens outros também vieram,
descidos dos céus, chegados do mar, varões
de olhos claros, cabelos e sobrenomes feéricos,
terno engomado e gravata borboleta, eles,
fugitivos de guerras e derrotas, em Ilhéus
aportaram vontades e proas confiantes,
os Stevenson, os Wildberger, os Colavolpe,
os Scaldaferri, Kaufman, Brussel, Zack Oack
(longe, decifro gasto letreiro por sobre a ponte,
refletido em murmúrios de bagres e tainhas).
Em gabinetes e terraços, recendendo auroras
de mares remotos, tardes e noites gélidas,
plantaram experiência e formas de pensar,
com discretos modos de aprisionar os dias.
Potentes centauros desceram na hora unânime,
com galope febril, no despertar das águas,
vêm cobertos de auras, nostálgicos de neve,
que se acrescentam às barbas do Rio Almada,
invadem o Cachoeira, suplantam Rio de Contas.
Entraram vibrantes pelos riachos, avançaram
botas e sobre solidões assentaram portas,
para trocas atônitas que assanhavam manhãs.
Moveram aço e rodas, logo rotas de comércio.
Inundaram distâncias com amêndoa e sacaria;
avivaram cassinos, ao som de polcas e foxes,
amores, bródios, com vinho e whisky perdulário.
Vilas dirão mais tarde para que vieram eles,
quando à noite se abrir a luz dos alfarrábios.
Se ventos zunem, balas zumbem, nuvens captam,
repercutem mensagens desta nova aurora.
Altos, avermelhados, ágeis, descendo rútilos,
chegaram com tropel de notas promissórias:
uma luz cambial se propagará nas matas,
por onde seguem florescendo vozes e rastros.
VI
Fé e sol do Oriente, mel e flor dos oásis,
para trás o deserto, camelos e miragens,
reluzentes medinas, versos do Corão,
livres de turbantes, burcas e sandálias,
outros mais, mais outros, enfim dezenas,
vieram, por desejo de erguer e construir
o que a alma na carne gravara como dívida,
exsudando moeda e astúcia planejada.
(Tinham a carne igual à de centauros,
correndo na planície em cavalgada).
Vencem terras avaras e mares e vão unir-se
aos muitos que semeavam sóis junto dos rios
e, urdindo calendários com luas generosas,
cavalgando manhãs e crepúsculos amenos,
trafegaram por horizontes e lá montaram
sociedade ecumênica de raças e línguas.
VII
De repente, na sucessão de colheitas amargas,
de fartos comboios com amêndoas apodrecidas,
de lágrimas e mãos em clamor estendidas,
estuário de sombras, dor e morte (sabemos),
em paisagem apropriada a corvos e desvarios,
da serra a fome, em corcovas, coalhando vales,
límpidas mentes dispostas a aplacar estios,
outros vieram, lépidos, com asfalto nas veias,
a reacender chama com lábia e burocracias;
propalam fórmulas, ciência e metodologias,
químicas severas, mapas e árdua geometria,
metidos em trajes de rija e formal pertinência,
dizimaram crepúsculos, auroras acenderam.
Bocas espalham pelo ar com notas estridentes:
a vida freme, a morte tarda, sonhos vencem,
porque o que cabe ao sol, útil, da noite se ausenta.
Foi depois com o dia alto que o desastre veio.
Sobre águas, pedras, colinas, canoros córregos,
com saber das Antilhas ou nos Andes colhido,
à força de azoto, fosfato, cal e ureia, roubados
do fundo da terra aberta à ilusão e ao sonho,
áulicos derramaram a esconjurada lavra.
“Não há mal que sempre dure”, brada o jovem,
ante os lamentos do úbere enfermo canceroso.
“Nem bem que nunca se acabe”, rosnou o velho,
nos bruxuleios da noite que baixa inapelável.
VIII
Acordo em alamedas tumulares,
conto círios de noites que se foram.
São pesadelos o meu patrimônio,
de horrores me basto comigo mesmo.
Converte-se o ar em tumba de canções,
Orlando, Sílvio, Chico, Ciro, Dick
passeiam entre antenas, folhas mortas.
Uma criança chorou, a mãe gritou,
o pai desesperou, o rádio calou,
e ele foi de ônibus para El Dorado
(disseram: lá ele é amigo de Deus,
tem a sensação de terra prometida).
Em São Paulo desceu, ganhou salário.
Vai para a obra e morre eletrocutado.
IX
Adeus, dias claros de outrora, corolários
que vingaram na terra de águas fartas;
adeus, mãos operosas que redimiram brenhas;
adeus, sonhos silvestres, sêmens de manhãs,
em campinas pejadas de música e cores;
adeus, meteorologias, verdades sazonais
de cochos e lastros cheios; adeus, chamas
de fornalhas ardentes noite adentro,
enfartadas de músculos e amêndoas,
tropas de burros subjugando lamaçais.
Adeus, trens de carga repletos de saudade,
avisai às quebradas, aos contrafortes,
à fieira de pássaros nos fios telefônicos:
debaixo da terra, estou indo para o trabalho.
X
Fulgurações de mel em cuias escorrendo,
sob o fresco das roças de pujantes frondes,
adeus. Morto, comprei passagem para o éden.
Lá, com amigos, quero encontrar a doce Anice,
a de olhos forjados em veredas de infância,
jambo de cabelos azuis e mãos de seda
e um jeito pré-rafaelita de sentar,
virar o corpo, os seios rijos, e mirar-me
por sobre abas da jindiba no alto da serra.
Adeus, tropas de lento passo nas ladeiras,
convosco dialogo em minhas noites de insônia;
adeus, tropeiros que ajeitavam peitorais,
nas íngremes subidas rumo ao infinito.
Desta fonte flui a essência de minha vida.
(Bahia, 01 jun. 2008)
(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos, p. 308 a 314, 2011).
NO DIA DO LOURO FRUTO
Abro o jornal hoje, lá está, na página de Opinião, um artigo que saúda o Dia do Cacau, que eu não sabia, nem mesmo da existência do louro fruto, depois da tenebrosa praga da vassoura-de-bruxa, que devastou sua lavoura e amargurou sua gente.
Para mim, só há agora um caminho: postar um poema que relembra essa riqueza, que a peste botânica e os governos sepultaram. Alô, alô, Jorge Amado, diga algo aí das paragens celestiais, meu amigo e conterrâneo grapiúna! (FM, 22.03.2022, FB)
CACAU EM QUATRO TEMPOS
I
Olhos adventícios só desvendam claridade.
O moço desce do paquete entre sorrisos
no cais de apitos e gritos de carregadores.
II
Bendito destino esse, que movimenta sonhos!
Um outro apito – o do trem de ferro na estação,
que propõe sendas de irrevogável êxito,
em brilho que acende olhar imprevidente.
III
Paragens de adusto marco e sonhos murchos,
de tudo sabe o velho por seus relógios mudos:
são túmulos do verde as roças prediletas,
são círios apagados os frutos amarelos.
IV
Nada mais lhe anima as retinas fumarentas,
só um pouco de vento e ar, de luz em dor.
Penetra-lhe o peito de sombras revestido
o que lhe sobeja em túnica de pretéritos.
(Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, p. 290, 2011)
90 ANOS DE HÉLIO PÓLVORA. SAUDADES!
Hoje, se vivo estivesse, o baiano de Itabuna Hélio Pólvora estaria completando 90 anos de idade. Escritor de alta estirpe, como jornalista, cronista, crítico literário, contista, romancista e conferencista, deixou-nos em 2015 reconhecido como um dos maiores contistas da literatura brasileira, produzindo vasta obra ficcional, de raízes assentadas no flagrante realista da Região do Cacau da Bahia, e formando com Jorge Amado e Adonias Filho o que ficou na história literária como o mais significativo da ficção "grapiúna". Sobre seu estilo, escreveu o consagrado crítico Afrânio Coutinho: "Mediante forma concisa e límpida, H. P. fixa em detalhes o ambiente áspero e hostil do sul-baiano, com sus lutas e dramas, que se entranharam na alma do menino-criado naquele mundo". Residindo no Rio de Janeiro desde 1953, retornou em 1980 e. depois de um período em Itabuna, como editor do jornal "A Região", transferiu-se para Salvador, onde atuou como cronista, editorialista e colaborador do suplemento "A Tarde Cultural". Pertenceu à Academia de Letras da Bahia, como ocupante da Cadeira nº 29. Abaixo transcrevo poema que lhe dediquei, escrito no momento mesmo em que a praga da vassoura-de-bruxa devastava a lavoura cacaueira da Bahia.
SAFRA DE SOMBRAS
A Hélio Pólvora
That is no country for old men, the young
In one another’s arms, birds in the trees.
W.B.Yeats*
É; foi-se o tempo de plantar cacau:
Não é mais um ofício para jovens.
Grandes nuvens de crinas esvoaçadas,
Esparramadas no azul – soltas setas –
Galoparam sedentas de outros mapas.
A terra agora espectro de agra face,
Paragens somente para ossos (frios),
Esqueletos que são aves em ramos,
E até bem pouco não era assim (saibam):
O chão se abria a sonhos e sussurros,
soluço (único) de água mensageira,
E lá vinham pérolas entre musgos,
ametistas suando ao verde sob chuva.
O sol gretou os seios da morena,
sinhá-moça que veio de Belmonte,
intumesceu os olhos generosos.
E fez mais: as almas ressecou,
E os antes desasselvajados rios,
(Mirai) hoje somente veias secas,
E semblantes que vagam nas estradas,
Safra de sombras, ai, dever de velhos.
*Terra aquela não é que sirva para ancião.
Os moços a abraçar-se, as aves a cantar
Nas árvores (...)
Versos do poema de Yeats, "Velejando para Bizâncio" (Sailing to Byzantium), em tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.
(Florisvaldo Mattos, A caligrafia do soluço & Poesia anterior, p. 45, 1996).
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