sexta-feira, 9 de junho de 2023

POETAS AMERICANAS DO SÉCULO XX

 

      Mulher na solidão (1927), pintura do americano Edward Hopper (1882-1967)

ANNE SEXTON (1928-1974)

A poesia de Anne Sexton nasce, então, de um exercício psicológico de autoterapia e é a partir disso que a poeta dá vazão aos sentimentos e experiências que consolidam sua obra. Em meio aos seus colapsos mentais, Sexton encontra na poesia sua “vocação”, extrapolando o padrão do “sonho americano” sobre o qual tinha constituído sua vida, a própria estrutura que tolhia sua liberdade de expressão sob a máscara da conformidade e do conforto. Os papéis de mãe, filha, esposa etc. não lhe davam sentido à existência, coisa que só viria a encontrar na produção poética, conferindo-lhe alento e um sentimento de pertença.

Quando a autora perdeu ambos seus pais, em 1959, ingressou em um curso de poesia na Boston University, dirigido por Robert Lowell, onde passaria a ter contato mais próximo com os poetas de sua geração. A autora afirmava que nunca teve grande educação formal, que sua formação acadêmica era “nula, anêmica e desinteressante”, mas a cena literária de Boston, onde vivia, era fecunda, e Sexton se instituiu entre as figuras locais, como o próprio Robert Lowell e Sylvia Plath. Os três viriam a ser considerados poetas confessionais, por lidarem com a poesia de maneira autoanalítica e condensarem em palavras suas questões emocionais e relacionadas às doenças mentais.

A poesia de Sexton é marcada pela crueza brutal ao lidar com as questões psicológicas e emocionais que a afligiam, lançando um olhar sincero e autoanalítico sobre o tema, sem se esquivar de conflitos e medos. Ainda que a descrição das neuroses e demais doenças psicológicas não integrem o material próprio da literatura, na obra de Sexton isso é elaborado com maestria nas composições e atravessa a esfera do psicológico em direção ao fazer-se estético, lírico. É essa experiência estética que coordena a fruição da literatura, equilibrando o material e a imaginação, o sentimento e a expressão, o delírio e o domínio. O centro da poesia é o próprio Eu, ainda que imerso em seu psicodrama; o poeta exprime a si, atravessando mente e forma para se constituir como material poético.


As traduções são parte da dissertação de Renato Marques de Oliveira, intitulada Anne Sexton e a poesia confessional: antologia e tradução comentada, apresentada ao curso de teoria e história literária da Universidade Estadual de Campinas em 2004.


LAMENTO

Alguém morreu.
Até as árvores sabem,
essas dançarinas coitadas que entram em cena, lascivas,
todas cachecóis verde-ervilha e tronco espinhento.
Eu penso …
Penso que podia ter impedido,
se tivesse sido firme como uma enfermeira
ou reparado na nuca do motorista
ao furar os sinais vermelhos;
ou depois, mais de noite,
se tivesse coberto a boca com o guardanapo.
Penso que podia …
se eu tivesse sido diferente, ou sábia, ou calma,
Penso que podia ter enfeitiçado a mesa,
o prato manchado ou a mão do crupiê.
Mas agora já era.
É tudo inútil.
De certo só as árvores
esparramando os pezinhos finos grama seca adentro.
Um ganso canadense alça voo,
esticado como uma camisa cinza de camurça,
grasnando vento de março afora.
No portão uma gata respira calmamente
dentro de seu pelo azul aguado.
As travessas de comida do jantar se foram e o sol,
desacostumado a qualquer outra coisa,
se põe todinho.

 FANTASMAS

Alguns fantasmas são mulheres
nem abstratas nem pálidas,
os seios flácidos feito peixe morto.
Não bruxas, mas fantasmas
que chegam mexendo os braços inúteis
feito criados desamparados.
Nem todos os fantasmas são mulheres,
Já vi de outro tipo;
homens gordos, pelados,
exibindo os genitais feito andrajos.
Não demônios, mas fantasmas,
esse aí estrondeia os pés, escoiceando
sobre minha cama.
Mas isso não é tudo.
Alguns fantasmas são crianças.
Não anjos, mas fantasmas;
enrolados feito xícaras cor-de-rosa
num travesseiro qualquer, ou esperneando,
mostrando as bundinhas inocentes, gemendo
para Lúcifer.


LAMENT

Someone is dead.
Even the trees know it,
those poor old dancers who come on lewdly,
all pea-green scarfs and spine pole.
I think …
I think I could have stopped it,
if I’d been as firm as a nurse
or noticed the neck of the driver
as he cheated the crosstown lights;
or later in the evening,
if I’d held my napkin over my mouth.
I think I could …
i f I’d been different, or wise, or calm,
I think I could have charmed the table,
the stained dish or the hand of the dealer.
But it’s done.
It’s all used up.
There’s no doubt about the trees
spreading their thin feet into the dry grass.
A Canada goose rides up,
spread out like a gray suede shirt,
honking his nose into the March wind.
In the entryway a cat breathes calmly
into her watery blue fur.
The supper dishes are over and the sun
unaccustomed to anything else
goes all the way down.


GHOSTS

Some ghosts are women,
neither abstract nor pale,
their breasts as limp as killed fish.
Not witches, but ghosts
who come, moving their useless arms
like forsaken servants.
Not all ghosts are women,
I have seen others;
fat, white-bellied men,
wearing their genitals like old rags.
Not devils, but ghosts,
this one thumps barefoot, lurching
above my bed.
But that isn’t all.
Some ghosts are children.
Not angels, but ghosts;
curling like pink tea cups
on any pillow, or kicking,
showing their innocent bottoms, wailing
for Lucifer.




Eduardo Valmobida
Assistente editorial

Eduardo Valmobida é beletrista, formado pela FFLCH-USP, escritor, com poemas e contos publicados em blogs literários e em revistas. Estuda literatura indiana clássica e pós-colonial, além de filosofia do yoga, sânscrito e poesia devocional. Dedica grande parte de seu tempo a escutar música e prefere não compreender as letras. Não mata nem pernilongo.


ANNE SEXTON 

DE UMA CARREIRA NOTÁVEL AO SUICÍDIO

Anne Gray Harvey Sexton nasceu em Newton, Massachusetts, a 9 de Novembro de 1928, filha de Ralph Harvey e Mary Gray Staples. Foi criada num meio confortável de classe média em Weston, Massachusetts, e em Squirrel Island, no Maine, embora a sua infância não tivesse sido estável. O pai era alcoólico e as aspirações literárias da mãe haviam sido frustradas pela vida doméstica. Anne refugiava-se da sua família disfuncional na relação próxima que mantinha com Nana (Anna Dingley), a sua tia-avó solteira, que viveu com a família durante a sua adolescência. Anne sentia que os progenitores lhe eram hostis e que temiam o seu abandono. Mais tarde, o esgotamento e hospitalização de Nana também a traumatizaram.

Anne não gostava da escola e a sua incapacidade de concentração e desobediência fez com que os professores aconselhassem acompanhamento especial, o que os pais recusaram. De modo implícito, esperavam que a filha casasse na altura certa e se comportasse com decoro, não querendo que Anne se distinguisse profissional ou intelectualmente – expectativas que se revelariam frustradas. Em 1945, Anne ingressou em Rogers Hall, um internato em Lowell, Massachusetts, onde começou a escrever poesia e a actuar em peças teatrais. Era uma rapariga animada e exigente, romântica e popular: a sua beleza e personalidade aventureira atraíam muitos admiradores. Aos dezanove, fugiu com Alfred «Kayo» Sexton II, embora ele já estivesse noivo.

Seguiram-se anos em que viveram como colegiais recém-casados, por vezes em casa dos pais. Mais tarde, durante o serviço militar de Kayo, na Coreia, Anne tornou-se modelo. As suas infidelidades durante a ausência do marido conduziram a uma fase de psicoterapia. O casal teve uma filha e Kayo começou a trabalhar como caixeiro-viajante na empresa do pai de Anne. Pouco depois dos nascimentos das filhas (em 1953 e 1955), Sexton foi hospitalizada, sofrendo de depressão pós-parto. A morte de Nana, em 1954, também a angustiou. As tendências depressivas agravaram-se e, durante as ausências do marido, Anne ficava completamente perturbada, tratando mal as crianças. Diversas tentativas de suicídio conduziram a hospitalizações intermitentes. Em 1956, o seu primeiro psiquiatra, Dr. Martin Orne, encorajou-a a escrever, o que viria a ser o ponto de viragem na vida de Anne Sexton.

Em 1957, começou a integrar vários grupos de escritores de Boston e foi deste modo que conheceu Maxine Kumin e Sylvia Plath. A poesia tornou-se central na sua vida, tendo estudado com Robert Lowell e John Holmes, começando a receber alguma atenção. Em 1959, Sexton perdeu ambos os pais e a memória das antigas relações problemáticas conduziram a posteriores esgotamentos. Para Sexton, a poesia sempre foi a única via de fuga para uma frágil estabilidade psicológica, embora algumas amizades que fez, no meio literário, tenham conduzido a envolvimentos sexuais. Em Abril de 1960, a primeira antologia, Quase Regressada da Casa dos Loucos [To Bedlam and Part Way Back] obteve boas críticas e alguma controvérsia. Nesta época, o seu casamento foi desestabilizado por discussões e maus-tratos, à medida que o marido via Anne tornar-se numa celebridade.

Em 1962, é publicado All My Pretty Ones. A sua poesia tornou-se imensamente popular em Inglaterra e nos Estados Unidos. Anne Sexton escrevia com uma técnica irrepreensível, tornando-se ponto de referência para leitores que se identificavam com os seus medos e angústias. Relatava os pormenores íntimos e ocultos do dia-a-dia, abordando temas que eram, até então, impensáveis num contexto poético: aborto, masturbação, sexo, religião e tendências suicidas. Na poesia de Sexton também transparece uma vida marcada pelo vício em álcool e estupefacientes, entradas e saídas de instituições para doentes mentais e a morte de familiares. Embora confessional e, por vezes, de difícil compreensão, a sua obra poética explora temas com que o público sempre se identificara. Chegou a ser apelidada de «poetisa preferida de quem que não aprecia poesia».

Em 1967, Sexton foi galardoada com o Prémio Pulitzer por Live or Die, apenas uma das muitas distinções que recebeu: a Frost Fellowship to the Bread Loaf Writers’ Conference (1959), o Radcliffe Institute Fellowship (1961), o Levinson Award (1962), uma bolsa da Academia Americana de Artes e Letras (1963), o Shelley Memorial Award (1967) e um convite para fazer a «Palestra Morris Gray» em Harvard. Obteve distinções da Fundação Guggenheim, da Fundação Ford, doutoramentos honoris causa e foi nomeada professora universitária na Universidade de Boston. Ensinou também poesia em Harvard e Radcliffe, sem ter formação académica.

A carreira notável de Sexton prosseguiu com a publicação de Love Poems (1969), a produção da sua peça Mercy Street na Broadway e a publicação de Transformations, em 1972. Em público e nas inúmeras leituras que fazia, Sexton era uma autêntica entertainer: extremamente sedutora e carismática. No entanto, permanecia dependente de amigos íntimos, (de Maxine Kumin, em especial), barbitúricos, amantes e psiquiatras, (tendo-se envolvido intimamente com um deles). Crises contínuas de depressão, outros distúrbios e tentativas de suicídio algo frequentes, preocupavam a família e os amigos. Em 1973, Sexton pediu o divórcio a Kayo. A partir de então, a sua saúde entrou em declínio, o alcoolismo e as depressões agravaram-se. Sexton continuou com os seus casos amorosos e não abandonou a psicoterapia. Em 1972, publicou The Book of Folly e, em 1974, The Death Notebooks. Divorciada, solitária e em desespero, Anne Sexton suicidou-se a 4 de Outubro de 1974, em Boston.

Tradução, notas e posfácio: David Furtado

Três poemas de Anne Sexton - Tradução de David Furtado













O BEIJO

A minha boca floresce como um golpe.
Fui enganada o ano inteiro, noites de
tédio, nada a não ser cotovelos ásperos
e caixas delicadas de Kleenex, gritando, choramingas, choramingas, sua tola!
Antes de hoje, o meu corpo era inútil.
Agora rompe pelas costuras.
Rasga as velhas roupas de Maria, nó após nó
e vejam – Agora está crivado de raios eléctricos.
Zás – Ressurreição!
Outrora foi um barco, bastante rude
e sem rumo, sem água salgada debaixo dele
e a precisar de pintura. Não passava de
um conjunto de tábuas. Mas tu libertaste-lhe a âncora,
deste-lhe velas.
Foi eleito.
Os meus nervos excitam-se. Ouço-os, são
instrumentos musicais. Onde havia silêncio,
os tambores, as cordas tocam, incuráveis. Tu fizeste
isto.
Obra de génio. Querido, o compositor incendiou-se.
































NADANDO NUS

Na vertente sudoeste de Capri
encontrámos uma pequena gruta desconhecida
onde não havia pessoas e
entrámos nela completamente
e deixámos que os corpos perdessem toda
a solidão.
Todos os peixes que tínhamos em nós
tinham fugido por um minuto.
Os peixes a sério não se importaram.
Não lhes perturbámos a vida pessoal.
Vagueámos calmamente sobre eles
e debaixo deles, soltando
bolhas de ar, pequenas e brancas,
balões, subindo, disseminando-se
rumo ao sol junto ao barco
onde o barqueiro italiano dormia
com o chapéu sobre o rosto.
Água tão límpida que podíamos
ler um livro através dela.
Água tão viva que podíamos
flutuar, apoiados no cotovelo.
Deitei-me nela como num divã.
Deitei-me nela tal e qual como
a Odalisca Vermelha de Matisse.
A água era a minha flor estranha.
Tem de se imaginar uma mulher
sem uma toga ou um lenço
num divã tão profundo quanto uma tumba.
As paredes daquela gruta
eram de todosostons de azul e
tu disseste, “Olha! Os teus olhos
são da cordomar. Olha! Os teus olhos
são da cordocéu.” E os meus olhos
fecharam-se como se ficassem
subitamente envergonhados.





Henri Matisse (1869-1964), líder do movimento fauvista, Nu

PARA O MEU AMANTE, QUE REGRESSA À ESPOSA

Ela esta toda ali.
Foi derretida com cuidado para ti
e moldada a partir da tua infância,
moldada a partir de umas das tuas cem… colegiais favoritas.
Ela sempre esteve ali, meu querido.
Na verdade, ela é fabulosa.
Fogo de artifício a meio do monótono Fevereiro
e tão real como um vaso de ferro fundido.
Falemos a sério, eu fui momentânea.
Um luxo. Uma corveta vermelho-vivo no porto.
O meu cabelo emana como fumo da janela do carro.
Marisco vulgar fora de época.
Ela é mais do que isso. É o embuste que possuis,
desenvolveu em ti os horizontes práticos e tropicais.
Não é uma experiência. Toda ela é harmonia.
Ela trata dos remos e dos toletes do bote,
pôs flores bravias à janela, ao pequeno-almoço,
sentou-se ao lado do torno do oleiro ao meio-dia,
entregou três filhos à luz da Lua,
três querubins desenhados por Miguel Ângelo,
fez isto de pernas abertas
no meses terríveis na capela.
Se olhares para cima, os filhos estão lá,
balões delicados repousando no tecto.
Ela também os trouxe pelo corredor
depois de jantar, com as cabeças secretamente tombadas,
duas pernas protestando, em intimidade,
o rosto dela animado por uma canção e pelo soninho
deles.
Devolvo-te o teu coração.
Dou-te autorização…
para teres o rastilho dentro dela, palpitando,
irado, na lama, para teres a cabra que há nela
para fechares a ferida dela…
para enterrares viva a sua pequena e rubra ferida…
a que possuas o pálido e trémulo fulgor debaixo
das costelas;
o marinheiro bêbedo que aguarda no pulso esquerdo,
o joelho da mãe, as meias,
a cinta de ligas, o telefonema…
o curioso telefonema
quando irás desaparecer entre braços e seios
e puxar a fita alaranjada do cabelo dela
e responder ao telefonema, ao curioso telefonema.
Ela é tão nua e singular.
É a soma de ti e do teu sonho.
Trepa-a como um monumento, pé ante pé.
Ela é sólida.
Quanto a mim, sou uma aguarela.
Diluo-me.

Anne Sexton (1928-1974)

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