segunda-feira, 14 de novembro de 2022

GAL COSTA, A ALMA DA MPB, DESDE OS ANOS 1960

      A cantora e Gal Costa, em foto supostamente tirada no show "Índia", de 1973

DUAS PUBLICAÇÕES SOBRE GAL COSTA E 

SUA VITORIOSA CARREIRA DE CANTORA


1) CLAUDIO LEAL:

Gal Costa foi voz definitiva da MPB, símbolo da tropicália, do desbunde e da liberdade
Cantar foi a vocação única dessa estrela solitária que deixou um legado ímpar ao longo de mais de 50 anos de carreira

9.nov.2022
Claudio Leal

No bairro da Graça, em Salvador, a pequena Gracinha, filha de Mariah e Arnaldo, seu pai ausente, levava uma panela ao banheiro para ter o retorno da própria voz. Ainda criança, estimulada pela mãe, queria ser uma estrela de rádio. Em 1958, sua técnica vocal mudaria com a experiência de ouvir João Gilberto, em "Chega de Saudade". A partir desse choque, sua voz encontrou uma escola, uma orientação moderna.
O início da década de 1960 condensou seus encontros transformadores. Convocada às pressas pelo colunista social Sylvio Lamenha, Gal teve seu primeiro encontro com o ídolo João Gilberto. Depois de correr para casa, em busca do violão, a menina entoou um samba para a Mangueira, e bastaram mais algumas canções para que o mestre afirmasse, em êxtase, "Gracinha, você é a maior cantora do Brasil".
Muito cedo, ela já conquistava o elogio máximo. Mas seguia à espera de um repertório, da descoberta da performance corporal, do sexo, da revelação de seu nome artístico.
O caminho de criação de um estilo pessoal se completaria nos anos 1970, mas, ali em Salvador, ela descobriu cedo seu poeta e irmão de alma e armas. Antes do golpe de 1964, na mesma circunstância em que conheceu Dedé, sua namorada, Caetano Veloso viu Gracinha pela primeira vez.
Ela seria a sua voz definitiva, capaz de alterar seu jogo com as palavras, os ritmos e a vida sonhada. Entre os dois, até o fim da vida de Gal, houve um silencioso pacto "joãogilbertiano", uma aliança estética radicalizada na tropicália.
Na Bahia, sob o impacto de João Gilberto e Tom Jobim, foi criado o núcleo revolucionário da MPB. Em 1964, Gal estreou no teatro Vila Velha com Caetano, Bethânia, Gil e Tom Zé.
No espetáculo "Nós, Por Exemplo", fez um duo com Bethânia em "Sol Negro", firmando intimidade com uma voz contrastante, mas irmã.
Em seu primeiro compacto, de 1965, gravou composições juvenis de Gil, "Eu Vim da Bahia", e Caetano, "Sim, Foi Você". Ao migrar para o Rio de Janeiro, logo se fez notar pela voz de mares calmos, potencializada melodicamente por "Coração Vagabundo", no álbum de estreia "Domingo", de 1967, dividido com Caetano Veloso. Os discípulos de João estreavam juntos. E chegava a hora de Gal farejar o seu próprio nome. Por sugestão do empresário Guilherme Araújo, virou Gal Costa.
O disco fundador de seu futuro, "Domingo", saiu exatamente quando a tropicália começou a reformular seu passado e sacudir seu projeto estético. No álbum-manifesto "Tropicalia ou Panis et Circencis", de 1968, ela aparece com "Mamãe, Coragem", de Caetano e Torquato Neto, e se torna a voz definitiva de "Baby".
O designer tropicalista Rogério Duarte dizia que o triunfo de uma cantora como Gal Costa era a maior conquista do movimento. De temperamento tímido e olhos calados, mas com gestos de coragem, Gal era a única, entre todos os tropicalistas, que não conseguia se sentir segura com a carreira. Em São Paulo, pensou em voltar à Bahia.
Em novembro e dezembro, no quarto Festival da Record, na iminência do AI-5, o Ato Institucional nº 5, Gal Costa ressurgiu com a canção "Divino Maravilhoso", absorvendo a atmosfera de rebeldia de 1968.
Antes do festival, Dedé Veloso a trancou num quarto escuro de seu apartamento, na avenida São Luís, e libertou sua expressão corporal com um disco de Billie Holiday. Sob influência de Janis Joplin, Jimi Hendrix e James Brown, a performance de Gal explodiu com o cabelo black power e o vestido vermelho psicodélico, desenhado por Regina Boni. Se "Baby" dera eternidade a ela, "Divino Maravilhoso" passava a dar chão.
Na fase tropicalista, supersticiosa, a jovem cantora desenvolveu a mania de dormir com o figurino de palco, temendo perder a fórmula mágica de seu encanto. "De palco eu nunca tive medo. Palco é o lugar onde me sinto mais confortável, mais inteira. Nunca senti medo de palco. Muito pelo contrário. Medo de muita coisa, né. Medo da ditadura, medo de morrer. A pessoa que não tem medo é meio estranha", disse Gal, a este repórter, no ano passado.
Com a ida de Caetano e Gil para o exílio, em 1969, ela atravessou meses recolhida pela tristeza, ainda que estivesse em um ano extraordinário, lançando seu álbum tropicalista "Gal Costa" e também o roqueiro "Gal", sua entrada pela porta da frente da psicodelia com "Cinema Olympia", de Caetano, "Cultura e Civilização", de Gil, e "Meu Nome É Gal", de Roberto e Erasmo.
No refluxo da tropicália, fez shows com Tom Zé, se aproximou de Jards Macalé e virou a voz do desbunde, dirigida pelos poetas Duda Machado e Waly Salomão. No "Gal a Todo Vapor", ou simplesmente "Gal Fa-Tal", seu show mais mítico, a cantora consolidou o programa tropicalista e foi além ao expressar a sexualidade e a verdade existencial da contracultura pós-AI-5. Ela mudou ainda sua performance no palco e projetou o jovem compositor Luiz Melodia, de "Pérola Negra", e a poética de Waly em "Vapor Barato".
Mais desnuda, Gal encontrava enfim a sua plateia. Na fase das dunas do barato e do "Fa-Tal", no Rio de Janeiro, a cantora era um mito devorador com a cesta indígena na testa. Ela namorava homens e mulheres, caía no mar e expandia as fronteiras de uma mulher liberada. Apesar das vivências solares, sentia melancolia em Ipanema. Sem ser ativista, ganhava expressão política.
"Nunca fui muito ligada em política militante, mas todo o trabalho tropicalista e meu trabalho naquela época eram políticos no sentido de irreverência, de derrubar barreiras", ela afirmou, um ano atrás. "Eu nunca me envolvi muito com política, mas há momentos em que você tem que se posicionar. Agora mesmo. É um governo péssimo que está aí, uma coisa horrorosa. A gente tem que dizer 'fora, Bolsonaro'."
Na volta do exílio, Caetano a conduziu de volta para a voz de mares calmos, no álbum "Cantar". Ambos queriam recompor o pacto "joãogilbertiano".
"Caetano fez comigo trabalhos bastante radicais. Na época, ele fez o 'Cantar', que foi muito mal falado pela crítica da época. Era uma ruptura radical. Eu vinha de uma linguagem tropicalista de 'Fa-Tal', teve uma transição por 'Índia' [de 1973] e veio 'Cantar'. 'Recanto' [de 2011] foi uma radicalização sonora grande", afirmou Gal, no ano passado.
Outro mestre da bossa nova, Tom Jobim, passou a ter a artista como cantora favorita. Se quisesse, ela podia ser ave, como em "Passarinho", de Tuzé de Abreu. A coragem poética, o desejo de renovação, o salto no escuro, o corpo na voz, a contínua reinvenção. Gal queria sempre ultrapassar aquela Gal da semana passada, inscrevendo a sua estrela junto aos seus irmãos musicais, Gil, Bethânia e Caetano.
De discografia extensa, Gal lançou alguns discos irregulares, mas sempre expressivos em sua fase pop, do final da década de 1970 e ao fim dos anos 1980. Ela reencontraria Waly Salomão e a sonoridade baiana no álbum "Plural", de 1990.
"Ele chamou o Olodum pra tocar comigo, foi maravilhoso, mas Caetano fez coisas mais radicais. Teve uma presença forte nas direções desses dois shows que ele fez comigo. Waly também foi um grande diretor, contribuiu muito para a minha trajetória", disse Gal.
Em 1994, no show "O Sorriso do Gato de Alice", dirigido por Gerald Thomas, ela voltou a escandalizar, exibindo seus seios ao cantar "Brasil", de Cazuza. A nacionalidade se expressava em seu corpo.
Dirigido por Caetano, o álbum "Recanto", com bases eletrônicas de Kassin, se situa entre seus discos mais ousados – e merece crescer em reputação crítica. Último diretor artístico influente em sua trajetória, o jornalista e produtor Marcus Preto trabalhou com a cantora nos álbuns "Estratosférica", de 2015, e "A Pele do Futuro", de 2018. Preto se empenhou em aproximar a diva de novas gerações de músicos e compositores, um desejo esboçado por Gal no disco "Hoje", de 2005, com direção de César Camargo Mariano.
Ela aguardava o lançamento de um filme baseado em sua vida, "Meu Nome É Gal", dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi, protagonizado pela atriz Sophie Charlotte. O longa deve ser lançado em 2023.
Em "Minha Voz, Minha Vida", composta para a sua intérprete, Caetano chegou perto de seu mistério. "Minha voz, minha vida/ Meu segredo e minha revelação/ Minha luz escondida/ Minha bússola e minha desorientação// Se o amor escraviza/ Mas é a única libertação/ Minha voz é precisa/ Vida que não é menos minha que da canção."
Gal Costa deixa seu filho, Gabriel, e sua companheira e empresária, Wilma Petrillo. Morre a maior cantora da história da música popular brasileira, a vaca profana, a verdadeira baiana, o nosso maior fenômeno vocal, a mais solitária das estrelas — Maria da Graça. Gal. Os lábios vermelhos.
Foto de Gal Costa, na Praia de Ipanema, do Rio de Janeiro, em 1971

2) VICTOR GORGULHO:

Gal Costa tem várias camadas ainda não exploradas em sua biografia
Trajetória da cantora extrapolou o campo da música, flertando constantemente com outros territórios da arte

9.nov.2022
Victor Gorgulho
O posto de "musa da Tropicália", alcunha onipresente na trajetória de Gal Costa, talvez guarde, em si, muitas outras camadas semânticas ainda não amplamente exploradas na biografia da cantora. Se compreendida como um movimento tentacular, que espraiou-se pela música, pelas artes visuais, pelo teatro, o cinema e além, a Tropicália da qual Gal sempre foi tida como emblema máximo, revela as diversas aproximações da artista com outros campos da arte, evidenciando um caráter multidisciplinar — e, portanto, verdadeiramente experimental — de sua obra.
Hélio Oiticica, por exemplo — autor da obra homônima ao movimento, o penetrável "Tropicália", de 1967, exibido pela primeira vez na exposição "Nova Objetividade Brasileira", no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro — nutria profunda admiração por Gal, chegando a colaborar com a cantora em diferentes momentos da trajetória de ambos. Em 1969, o artista afetuosamente batiza um de seus penetráveis de "Penetrável da Gal (Ninho da Gal)", obra que consiste em uma estrutura fixada no teto do espaço expositivo com inúmeros fios de plástico azul a penderem até o chão. O espectador era convidado a atravessar uma imensidão de azul que assemelhava-se a um mergulho no mar ou, quem sabe, ao torpor causado pela audição da voz de sua amiga Gal.
Naquele mesmo ano, HO assinaria o cenário do show da cantora na Boate Sucata, no Rio de Janeiro. Planejado para acontecer no Canecão (a tradicional casa de shows carioca que fechou suas portas no ano de 2010), o espetáculo de Gal seria dirigido por José Celso Martinez, do Teatro Oficina, com a ambientação cenográfica criada por Hélio. Zé Celso, no entanto, não chegou a um acordo financeiro com a produção e não seguiu à frente do espetáculo, deixando que Oiticica criasse uma ambientação próxima a seus ninhos e penetráveis, que envolviam a performance da cantora. No repertório, sucessos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto e Erasmo Carlos e mais. Ali, Gal afirmava (aos berros, muitas vezes, ainda que sempre afinada) uma identidade artística radical e de vanguarda. "Meu nome é Gal", cantava, implacável, para deleite do público.
Tamanha foi a aproximação artística e afetiva de Gal e HO que, em dado momento, a dupla chega até a dividir o apartamento em que moravam no Rio de Janeiro, fato que Oiticica conta em uma de suas cartas à Lygia Clark. Após o êxito do show de 1969, o ano seguinte veria uma nova colaboração entre o artista e a cantora, desta vez materializada na capa do disco "LeGal", lançado em 1970 pela cantora.
Concebida por Hélio, a capa do LP revelava o rosto de Gal partido entre a capa e a contracapa, ao passo que o icônico cabelo da artista aparecia como formas onduladas sobre as quais o artista realizou uma colagem de pequenas imagens de origens diversas. Imagens que tanto revelam o zeitgeist contestador de então (como a multidão jovem que parece marchar em protesto político) junto de retratos de ídolos como James Dean e Janis Joplin, costurados a fotografias íntimas de seus amigos de então: Caetano Veloso, Lygia Pape, Jards Macalé, Rogério Duarte, entre outros.
A partida de Veloso e Gil para o exílio em Londres também contribuiu, possivelmente, para que Gal se aproximasse cada vez mais da turma artística que habitava a espécie de bolha utópica que frequentava a praia de Ipanema na época. Presença quase diária nas areias do trecho da praia que separava os bairros de Ipanema e Leblon, Gal via seu status de musa crescer a ponto do local ser batizado de "as dunas da Gal" ou, para os iniciados, "as dunas do barato".
Era ali o ponto de encontro das mais variadas figuras artísticas da época: dos músicos e poetas marginais (Macalé, Jorge Mautner) à turma do teatro (os membros da companhia Asdrúbal Trouxe o Trombone, para citar alguns), todos estavam a orbitar em torno da presença de Gal, que transitava com êxito entre as variadas pontas do território do desbunde.
No que toca à sétima arte, a cantora parecia pender mais para o lado dos cineastas do dito "cinema marginal" (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane) do que para a turma do Cinema Novo (como Glauber Rocha, de quem também era amiga, avessa a polêmicas e rivalidades como sempre foi). A produção fílmica de Sganzerla e Bressane, radical em linguagem e métodos de realização, parecia agradar à baiana, que chega a participar de um filme de Sganzerla, onde performa a canção "Eu sou terrível" (Roberto Carlos), entre risadas e cuspes de champanhe diretamente nas lentes da câmera.
Sua performance não se continha aos palcos: ainda que recusasse qualquer alcunha próxima a de "atriz", Costa apareceria ainda, ao longo das décadas, como Carmen Miranda no filme "O Mandarim" de Júlio Bressane e como si mesma, por diversas vezes, em telenovelas da Rede Globo. Poucas foram as tramas do falecido autor Gilberto Braga, por exemplo, que não tiveram como tema musical uma canção entoada por Gal, além de sua presença na frente das câmeras, fosse cantando ou apenas dando o ar de sua graça feito a musa que era, de artistas e realizadores de todos os campos criativos possíveis.
Em 1994, o controverso Gerald Thomas dirigiria Gal no polêmico show "O Sorriso do Gato de Alice", em que a cantora deixava à mostra seus seios ao entoar "Brasil", o hit de Cazuza que embalava a trama de "Vale-Tudo", novela de Braga na Rede Globo. Altamente performático, o espetáculo dividiu as opiniões e viu, à época, Gal ser contestada na esfera pública acerca da escolha de Thomas para o papel de diretor. As polêmicas, no entanto, apenas acenderam mais a fogueira que sustentava o show, que se encerrou após longa temporada de ingressos esgotados e de muito bafafá na imprensa nacional.
Na abertura do show dirigido por Thomas, Gal adentrava o palco engatinhando, misteriosa e lasciva, a farejar o território que viria a desbravar nas horas seguintes, em sua performance radical. "Gal nunca teve medo", Caetano dizia no texto de apresentação do ousado disco roqueiro-psicodélico da cantora, em 1969.
Ao longo de sua vida, Gal desmentiu Veloso em diferentes ocasiões, brincando que sentia medo sim, em toda e cada performance que executava. Medo, no entanto, que nunca paralisou ou limitou as fronteiras de atuação e alcance da performance da baiana. Gal não é apenas uma das maiores cantoras do Brasil ou da MPB. Talvez seja, sim, uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos. "Eu sei que é assim", diria Veloso, aqui corroborado em gênero, número e grau — e no som da voz de Maria da Graça.
Bastidor do show GAL FATAL, de Gal Costa, no Rio, em 1971. Aí estão Paulinho Boca
de Cantor, José Simão, Gal Costa, Pepeu Gomes e Waly Salomão. Foto de Ivan Cardoso


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