sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

MODERNIDADE NA BAHIA: ACADEMIA DOS REBELDES

 MODERNISMO NA BAHIA


Nos 100 anos da Semana da Semana de Arte Moderna de São Paulo, que transcorrem hoje, vale perguntar se repercutiu na Bahia, para se efetivar com certo atraso, embora a sua classe média já se mostrasse cansada de andar de bondes. Refletiu-se, sim, mas o movimento mais marcante, que alcançou reconhecimento nacional foi o que se intitulou Academia dos Rebeldes, que durou de 1928 até quase meados da década de 1930; de lá saíram Jorge Amado, Édison Carneiro, Clóvis Amorim, Alves Ribeiro e Walter da Silveira, entre outros.
É o que tenta comprovar esse artigo abaixo. Tolerem o tamanho.

Henrique Passos, Largo do Relógio de São Pedro. Salvador, 2003.



ACADEMIA DOS REBELDES:
O SALTO DA MODERNIDADE
NA BAHIA DOS ANOS 1920/1930

Florisvaldo Mattos

Perseguia um pujante sonho de renovação, não só nas letras e nas artes, mas também nos costumes e práticas políticas, o movimento literário, que aparentemente irrompeu na Bahia em fins de 1928, para durar até talvez 1935, com o irônico título de Academia dos Rebeldes, reagindo a um estado da cultura que seus integrantes julgavam caduco. Em um espirituoso balanço sobre o que significou esse processo, de que foi nome baiano de proa com apenas 18 anos de idade, Jorge Amado (1992), depois de se atribuir e aos companheiros o propósito de “varrer com toda a literatura do passado”, aponta, como saldo positivo, terem concorrido, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice” e dar-lhe “conteúdo nacional e social”.
Dizia isso em 1992, sessenta e quatro anos após um grupo de jovens se reunirem no já então afamado Café das Meninas, na esquina da Rua do Tira Chapéu com a da Ajuda, no centro da cidade, e no ali próximo Bar Brunswick, no intuito de difundir as ideias informadoras do movimento modernista, para desmonte das muralhas do renitente conservadorismo que dominava a sociedade baiana e sua cultura, desde inícios do século XX, isto é, para combater intermitentemente, como se dirá depois, “as oligarquias do imutável”, mas no mesmo ritmo de defasagem do bem mais amplo ímpeto que o inspirara, surgido em São Paulo, quase sete anos antes, a Semana de Arte Moderna, em relação às vanguardas europeias deflagradas há mais de dois decênios.
Razões dão suporte ao lembrete desse retardo, desde que, só para ficar na América do Sul, tais inquietações já vinham açulando as mentes de jovens intelectuais alguns anos antes; caso do Chile, com o manifesto de Vicente Huidobro (No serviam, de 1914), que logo desembocaria em ideias mais ousadas, tais as do também seu Creacionismo (1925), sintomas de modernidade que se manifestariam na Argentina, já em 1921, com o Ultraísmo, nas inquietas voz e escrita de Jorge Luis Borges (2007), impelidas pelo que aprendera de Rafael Cansinos Asens, com o seu Movimento Ultraísta, em Sevilha (Espanha), que definia esse estado de espírito como “uma orientação voltada para contínuas e reiteradas evoluções, um propósito de perene juventude literária, uma antecipada aceitação de todo módulo e de toda ideia nova”, uma vontade de “ir avançando com o tempo”; em síntese, uma ardorosa perseguição do futuro.
Portanto, para vizinhos sul-americanos, o idealismo das vanguardas já não era tão novidade assim. Se havia defasagem de influências, em centros mais adiantados do país, como São Paulo, quanto mais na Bahia. Os jovens intelectuais baianos formavam uma confraria local a que se agregavam outros oriundos de estados nordestinos, todos eles mordidos, conforme Jorge Amado (1992), pelo “micróbio da literatura”, e se intitulavam “modernos” como algo mais que “modernistas”, numa alusão irônica à erupção que ocorrera em São Paulo, a cujas ideias não desejavam estar acorrentados. Pretendiam, no seu intento de adolescentes rebeldes, horizontes mais amplos.
Tendo como mentor inicial o poeta e jornalista panfletário Pinheiro Viegas (1865-1937), segundo Cid Seixas (1996), um “corrosivo intelectual que também destilara seus feitos e seu fel entre os rapazes da revista Samba”, cujo grupo emparelhava com o de Arco e Flexa, ambos surgidos também em 1928, os mesmos combativos propósitos, porém menos estridentes, o núcleo central da Academia dos Rebeldes se compunha ainda dos seguintes nomes: Jorge Amado (1912-2001), Edison Carneiro (1912-1972), Dias da Costa (1906-1974), João Cordeiro (1905-1938), Alves Ribeiro (1909-1978), Áydano do Couto Ferraz (1914-1985), Sosígenes Costa (1901-1968), Clóvis Amorim (1912-1970), Da Costa Andrade (1906-1974), Guilherme Dias Gomes (1912-1943, irmão do célebre dramaturgo baiano, Alfredo Dias Gomes, 1922-1999) e Walter da Silveira (1915-1970); a esses se acrescentavam, como colaboradores e participantes, José Bastos (1905-1937), Hosannah Oliveira (1902-1997), Emanuel Assemany e José Evangelista de Oliveira.
O movimento se inseria no conjunto de preocupações e aspirações marcantes de um período de pós-guerra e prenúncios de outro conflito mundial, com os desdobramentos, na década de 1920, de toda a efervescência cultural e atropelos provocados pelas vanguardas do início do século, mas que se refletiria na Bahia, com a mesma lentidão de passos dos paulistas de 1922. A liderança de Pinheiro Viegas, poeta mais conhecido pelo instinto panfletário que, por seus poemas de circulação restrita, impelia os jovens Rebeldes baianos para lucubrações intelectuais bem mais avançadas do que o ambiente urbano de então, fluindo, como já se disse, “em ritmo de bonde”, então suportava.
Em verdade, a Bahia, como se chamava na época, era uma cidade estática, imersa em orgulhosa e soberba atmosfera provinciana, onde não havia lugar para endeusarem-se a máquina, a eletricidade e a velocidade, não obstante a inocente ousadia futurista de um poeta, o feirense Eurico Alves (1909-1974), adepto do grupo da revista Samba, cuja delirante imaginação divisava, em seus Poemas Metálicos (1926-1932), uma cidade imersa na volúpia fumacenta de locomotivas, com longas avenidas ladeadas de arranha-céus, ruas largas, pulsação mágica de fábricas e ardentes chaminés, lanchas e transatlânticos nos portos, guindastes, automóveis, buzinas, apitos, sirenas, guinchos, com céu cinzento sobre massas enormes de cimento armado, reclames, títulos e dísticos luminosos – enfim, uma festa de nítido sonho futurista.
Quem lesse poemas dessa fase de Eurico Alves, que ouso considerar o nosso primeiro e talvez único e legítimo poeta futurista, nos anos seguintes à sua publicação, como também muitas décadas depois, poderia supor que o lastro de sua imaginação provinha de leituras de pensadores franceses, desde que à época o francês ainda funcionava em países da América do Sul como uma segunda língua cultural, ao ponto de um escritor do porte do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) definir os sul-americanos, segundo Bella Jozef (1996), como “europeus no desterro”, pelo tanto que persistia neles de cultura europeia, fazendo imaginar-se que, no caso do Brasil e particularmente da Bahia, a França se situava à frente de qualquer outro. Quantos não foram os poetas baianos que escreveram poemas em francês. Lembro de um: Péthion de Villar (1874-1926).
Por isso, não será demais admitir-se que, na imaginação sonhadora do jovem feirense, a Cidade da Bahia não se apresentava como um símbolo do atraso patenteado por ruas estreitas e becos, por bondes assobiando e rangendo sobre trilhos, postes com lâmpadas de pouca luminosidade, comércio rastejante, sem nem mesmo ostentar reclames a gás neon, e o mais que seus olhos cotidianamente viam. O que seu estro demandava eram versos que sugerissem um cenário igual ao daqueles países cuja paisagem urbana, já celebrada por muitos escritores, filósofos e políticos, que apontavam nitidamente para a modernidade, ostentava um panorama constituído de trabalhadores e transeuntes a congestionar anonimamente ruas e praças, certamente igual ao que descrevia o francês Édouard Foucaud, de uma Paris que, por quase um século, só despachou modernidades para o mundo, como atesta Walter Benjamin, numa citação:

Para o trabalhador, o desfrute da renda acabava por esgotá-la. O céu podia estar vazio de nuvens, a casa que habita pode ter um jardim verdejante, pleno do aroma das flores e vitalizado pelo gorjeio dos pássaros – seu espírito inativo é insensível para os encantos da solidão. Porém, se casualmente, chega a seus ouvidos o som ruidoso ou o apito de uma fábrica distante, se só escuta o golpe monótono proveniente do moinho de uma manufatura, a expressão de seu rosto se alegrará imediatamente... Já não sente o aroma delicado das flores, já não escuta o canto melodioso do pássaro. A fumaça da alta chaminé da fábrica, os intimidativos golpes de uma bigorna o fazem estremecer de felicidade. Recorda os bem-aventurados dias de seu trabalho, instigado pelo entusiasmo de seu cérebro. (FOUCAUD apud BENJAMIN, 2012, tradução nossa).
Quem lê os Poemas metálicos, de Eurico Alves, conjetura que ele os escreveu depois de ter conhecimento das pregações de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), em seu manifesto sobre o Futurismo, lançado em 1909. “O esplendor do mundo foi enriquecido por uma nova forma de beleza, a beleza da velocidade”, exortava o italiano, na sua pregação. Todavia, já se observava então no ambiente citadino um clima de forte aspiração por mudanças, principalmente no que dizia respeito ao sistema de bondes, o transporte moderno há já mais de uma década servindo aos habitantes, mas na ocasião já em processo de acelerada reformulação, como decorrência das reformas empreendidas pelos governos Seabra (1912-1916 e 1920-1924), perspectiva que impelia os jovens Rebeldes para horizontes vanguardistas, contra todas as forças do atraso, embora rejeitassem arrebatamentos futuristas, que viam como delírio. No entanto, se pensavam assim, por outro lado, eles viam a cidade do Salvador com olhos novos.




MUDANÇAS NO RITMO DOS CAFÉS

E havia motivos para tanto. A cidade da Bahia, que em 1900 possuía, segundo registros, 85 mil habitantes, no tempo da Academia dos Rebeldes, ostentava cerca de 250 mil. Em um de seus depoimentos, Jorge Amado dá essa informação, que parece veraz, pressupondo um avanço, uma vez que o censo de 1940 irá mostrar uma população de 290.433 habitantes, que mais que dobrará vinte anos depois, com os seus 655.735 habitantes de 1960. Aos olhos dos Rebeldes, a cidade dos anos 1930 avançava no sonho de se tornar metrópole, marchando para se desfazer da carapaça que a engessava, desde que, coroando iniciativa adotada em 1929, iria concluir-se o processo de fusão das linhas de bondes, quando a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia – popularmente chamada Circular – obtém por contrato o direito de explorar o serviço em todo o município, expandindo a cidade, criando e aproximando novos bairros, conjugado ao monopólio da distribuição de energia elétrica.
Valendo-se de dados colhidos em fontes seguras, em livro de 2019, as arquitetas e urbanistas Cybèle Celestino Santiago e Karina Matos de Araújo F. Cerqueira registram com precisão esses efeitos, que pressupõem facilidade de deslocamentos e, com estes, até mesmo o aumento de veranistas em certos pontos da orla marítima.

Os bondes aceleraram o crescimento da cidade, exatamente porque houve um incentivo, por assim dizer, à ocupação ao longo das vias, ao mesmo tempo em que propiciaram a união entre o centro da cidade e a povoação da Barra, o arrabalde de Itapagipe, a povoação do Rio Vermelho e, posteriormente, Amaralina. (SANTIAGO; CERQUEIRA, 2019, p.104).

E são conclusivas quanto às influências deste sistema de transporte nas mudanças urbanas:

Os bondes eram muito importantes para os deslocamentos diários e foram responsáveis, às vezes, por delinear e proporcionar tanto a ocupação quanto a fixação da população nas áreas residenciais recém-criadas. Podemos dizer que os bondes revolucionaram as cidades nas quais foram implantados, e Salvador, sem dúvida, não foi exceção. (SANTIAGO; CERQUEIRA, 2019, p.93).

Não custa lembrar um episódio que marcou a época. Em função de estar o monopólio do transporte por bondes e do fornecimento de energia elétrica em mãos de estrangeiros, logo em 1930 ocorre o famoso “quebra bondes”, inflado pela má manutenção dos serviços, mas, na verdade, uma consequência de movimento desencadeado no sul do País, que resultou em 84 veículos destruídos, práticas de saques e vandalismo, que culminaria com a depredação do edifício recém-construído do jornal A Tarde, acusado de conivência com os americanos exploradores de tais serviços. O episódio alcançou a gravidade de tragédia urbana, com a ocorrência de muitos feridos e morte de um marinheiro no Largo do Teatro, hoje Praça Castro Alves. Mas, apesar de tristes, esses traumas denotavam indícios de que a modernidade urbana começava timidamente a se insinuar, com a expansão das atividades e ocupação dos espaços, influenciando na própria mentalidade de extratos da população que começava a adotar novos hábitos.
Vivia-se a consolidação de reformas urbanas que expunham evidentes sinais de modernidade. Começava a se configurar um cenário pelo qual antes a imprensa romanticamente clamara, dirigindo-se a Seabra, então governador, para que houvesse “no seio da velha cidade a alegria nova das vias amplas, modernas, por onde possa circular livre e fecunda a vida feliz de um povo forte”. Requeria-se, desse modo, que a cidade demarcasse seus espaços para neles se assentarem novos padrões de comportamento.
Decididamente, a cidade ia deixando de ser um burgo provinciano, vivenciando situações apenas imaginadas, que faziam os Rebeldes detectarem na paisagem urbana uma nova atmosfera de prazeroso e excitante conforto, evidenciada por um mais intenso trânsito de pessoas e novas posturas. Percebia-se então súbito fortalecimento do comércio exportador, estímulo ao consumo e demanda de serviços pelo surgimento de lojas, escritórios, hotéis, cafés, pastelarias, esquinas povoadas, pontos de encontro, cassinos e bordéis (apelidados de “castelos”), jornais dispostos a abrir-se ao debate; um ambiente propício às fruições de um embrião de flâneur, com a burocracia cada vez mais cedendo espaço, apesar das resistências. Começava para eles, os Rebeldes, a se configurar o mundo moderno, em que Octavio Paz (1991) divisa “o homem, ou seu fantasma, errante entre as coisas e os aparatos”. E assim, com este cenário, a cidade se alçava a um outro patamar, em que as figuras do boêmio e do flâneur pareciam combinar-se.
Peregrinando pelos cafés, cassinos e bordéis, eram os Rebeldes personagens deste cenário, aproveitando todas as seduções com que lhes acenava esse novo momento. Inseridos na multidão, na rua ou através do vidro da janela ou frestas de um café, escritório ou bordel, apreciavam o trânsito de bondes e de pessoas, errático privilégio com que, na condição de habitantes, revelavam a sua mesma razão de ser, em estado de felicidade plena. Na rua, numa esquina, talvez até mesmo da janela de um bonde, basta-lhe o gozo de fitar pessoas passivamente mirando outras, por minutos e até horas, sem lhes dirigir uma palavra sequer. Em resumo, este embrião baiano de flâneur, um tipo de passeante ocioso, que anda sem rumo, sente-se melhor na rua do que em casa, numa fruição lúdica perfeitamente assemelhada ao culto da boemia, atitude que em geral se desenvolve com a aglomeração de pessoas e aceleração das atividades no ambiente urbano.
De tão referencial, não parece excessivo ou infrutífero invocar a Paris dos tempos de Charles Baudelaire (1821-1867), inaugurando cenários de modernidade, que ele, pioneiramente centrado no espírito de uma época marcada por aspectos de aglomeração urbana, emergente industrialização e concentração demográfica, discerniu, descreveu e vivenciou, em cujo ambiente desponta a figura do flâneur de que ele próprio foi exemplo, ao ponto de, numa passagem de seu Le Peintre de la vie moderne, segundo Eric Hazan, escrever, como se desenvolvesse uma teoria, falando de si mesmo:

Para o perfeito flanador, para o observador apaixonado, é um imenso prazer escolher um domicílio em meio à multidão, à ondulação, ao movimento, ao fugaz, ao infinito. Estar fora de casa, e, ainda assim, sentir-se em casa em todos os lugares; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondido do mundo, estas são algumas das satisfações mais simples desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a língua só consegue exprimir desajeitadamente. (HAZAN, 2017).

Ao ver de Baudelaire, este “amante universal” (o flâneur) encara a multidão como um espelho, “um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça movediça de todos os elementos da vida”, criando-se em sua imaginação “misterioso e complexo encantamento”. Este cenário desenhou-se lá, na Paris que se acompanhava e se seguia às célebres reformas urbanas introduzidas pelo Barão de Haussmann (Georges-Eugène, 1809-1891), que seriam copiadas por metrópoles, insuflando imitações de comportamento mundo afora.
Creio que, nesse ponto, cabe um parêntese. Segundo Walter Benjamin, a multidão não foi uma descoberta somente de Baudelaire. Houve outra personalidade de seu tempo que também a celebrou na Paris em plena marcha das reformas de Haussmann: o célebre poeta, ícone do Romantismo, que era também exitoso político, Victor Hugo, mas com abismal diferença de pensamento entre ambos. Enquanto Hugo celebrava a multidão, na forma de massa transeunte que se aglomerava mergulhada no anonimato, “o herói de uma epopeia moderna”, diz Benjamin, Baudelaire “busca ansiosamente o refúgio do herói na massa da grande cidade”, isto é, do flâneur.
Político e pragmático, Hugo comparava esta massa com as aglomerações dos reinos vegetal e animal na natureza e os efeitos que elas produzem, inaugurando esse novo tema em sua poesia durante o exílio que sofreu em Jersey. Benjamin cita passagem de um de seus escritos em que compara “o que acabava de passar na rua” (diga-se, a multidão) ao que ocorre em um bosque, estremecendo as árvores, os altos montes, os brejais, as altas ramas entrelaçadas, as altas ervas, de maneira sombria, por ação de um “formigueiro selvagem”, que ali faz entrever “as súbitas aparições do invisível”, como se “a tessitura do bosque sugerisse o arquétipo da existência da massa” (BENJAMIN, 2012).
Em poemas, as elocuções desse afamado francês não são diferentes, são até de acento mais grave. Benjamin observa fluir em um deles “magnífica ideia de promiscuidade que impera sobre a multidão de todo ser vivente”. Lá, numa estrofe de seu “Pente de la rêverie”, diz Hugo que, numa noite de sonho hediondo (rêve hideux), a multidão espalhava assombros, que nenhum olhar percebia: “mais o homem era mais numeroso, mais a sombra era profunda” (Plus l´homme était nombreux, plus l´ombre était profunde). Em outra estrofe do mesmo poema citado, o pensamento se apresenta mais inequívoco, abrindo-se de forma contundente: “Multidão sem nome! Caos! vozes, olhos, passos. / Aqueles que nunca vimos, aqueles que não conhecemos. / Todos os vivos! - cidades zumbindo aos ouvidos / Mais do que um bosque da América ou colmeias”). (“Foule sans nom! Chaos! des voix, des yeux, des pas. / Ceux qu´on n´a jamais vus, ceux qu´on ne connait pas. / Tous les vivant! – cités bourdonnant aux oreilles / Plus qu´un bois d´Amérique ou des ruches d´abeilles” – tradução livre do autor).
Como político, embora a multidão tenha figurado em sua poesia, durante e após o exílio em Jersey, interessava a Victor Hugo nela o cidadão que a compunha. As massas das grandes cidades não o confundiam. Nesse ponto, Benjamin é conclusivo.

Hugo reconhecia ali (no trânsito urbano, grifo meu) a multidão do povo; queria ser matéria dessa matéria. Laicismo, progresso e democracia foram as bandeiras que brandiu sobre essas cabeças. Essas bandeiras glorificavam a existência da massa. E deixavam nas sombras o umbral que separa o indivíduo da multidão. Baudelaire cuidava desse umbral; isso o diferenciava de Víctor Hugo. [...] Baudelaire opunha a esta multidão um ideal, tão pouco crítico como a concepção que Hugo tinha dessa mesma multidão”. [...] Como citoyen, Hugo se traslada para a multidão; como héros, Baudelaire dela se distancia” (BENJAMIN, 2012).

Por seu anonimato, se não parece possível divisar interesses privados no seio da multidão – para onde vão, o que sentem, o que pensam, o que sonham os que a formam -, Víctor Hugo parecia enxergar nela dois destinos: o do mercado, coincidindo com as expectativas da burguesia, e o das eleições, identificando cada um de seus componentes como votante.
Nesse contexto, é preciso também abrir uma janela para a vida nos cafés, nos cassinos, nos dancings e nos bordéis. Jorge Amado dá testemunho do que acontecia nesta cidade então “muito agradável de se viver”, conforme relata em depoimento de 1981.

Os castelos tinham uma grande importância. Havia algumas putas francesas, quer eram dadas à literatura. As nossas prostitutas eram em geral ignorantes, meninas do campo em sua maioria. Nós é que fazíamos a importância cultural dos castelos. Dávamos uma certa conotação literária. (AMADO, 1992).

Há dois aspectos a merecer consideração, o papel dos cafés na vida intelectual e a frequência de intelectuais nos cassinos e bordéis. Como na reforma urbana, em ambos os casos, se repetia por aqui o estado de ânimo que se apossou do Rio de Janeiro no princípio do século, de fiel imitação dos impulsos decorrentes da reforma urbanística que se imprimira na Paris do século 19. Na Bahia, agora, também, por tabela, copiava-se o Rio das reformas de Pereira Passos, tal como fora feito pioneiramente em Recife, de 1910 a 1914.
Imitado de Paris e do Rio de Janeiro, o culto dos cafés na Bahia literária dos anos 1920 e 1930 acendia os ânimos, açulava as emoções e arrebatava o espírito dos integrantes da Academia dos Rebeldes, assim como os dos concorrentes engajados nas revistas Samba e Arco & Flexa. Na marcha do tempo, essas estripulias avançaram pelos anos vindouros até fins dos 1950. Vistos com os olhos de hoje, trata-se de um paraíso que se perdeu, solapado que foi pela cultura fast-food das lanchonetes e praças de alimentação de shopping centers e quejandos. Aludindo a esses ruidosos anos, escrevi certa feita:

Na cidade do Salvador, desde a década de 1920, até onde remonta informação confiável, calcada em vivência e testemunho, os cafés representaram locais não apenas de animação e desfrute, mas pontos de convergência da intelectualidade jovem, ávida de afirmar sua vigência cultural e propagar ideias de mudança nas letras e nas artes (MATTOS, 2001).

Assim, por essa época, havia na chamada Baixinha (traço de união urbano ligando a Ladeira do Taboão à Baixa dos Sapateiros), o Café Astúrias, o Café Moderno, o Café Derby e o Café Progresso; no centro da cidade, destacavam-se o Café das Meninas (antes chamado Café Chic), o Café e Bar Brunswick, o Café Fim do Século, o Café Bahia e o Café Madrid.
Em artigo que publicou no jornal A Tarde, em 29 de junho de 1976, Jorge Amado recorda um dos trajetos habituais de seus companheiros da Academia dos Rebeldes, logo nos seus começos:

Sob a bandeira de Pinheiro Viegas, no Café das Meninas, a nossa rebeldia adolescente organizou-se para melhor enfrentar os bons camaradas de Arco & Flexa, comandados por Carlos Chiacchio, ou os simpáticos rapazes de Samba, Bráulio de Abreu, Clodoaldo Milton, Elpídio Bastos e outras excelentes pessoas – malditos adversários, implacáveis inimigos. Maravilhosos dias da juventude num mundo de paz, numa cidade ainda provinciana e deslumbrante. (AMADO, 1976).

Flávio de Paula (1900-1967) e Nonato Marques escreveram páginas nostálgicas, testemunhando dois momentos da vida cultural que são exemplares. Em seu livro A Poesia é uma festa (1994), Marques recorda os cafés e bares que, nos anos 20, como práticas claramente tributárias da reforma urbana antes empreendida – iniciada em 1912 e, de certo modo, então ainda em curso – acolhiam significativo número de intelectuais envolvidos com literatura e arte, em Salvador. Evoca nomes que, drummondianamente, desapareceram “na curva do tempo” (Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”, em A rosa do povo, 1945), sob a poeira da reforma urbana.
A memória de Nonato Marques recupera as noites em que se reuniam nesses lugares “rapazes interessados em literatura”, lendo e declamando crônicas, contos e poemas, à volta de uma mesa, onde consumiam “uma média de café com pão e manteiga” e, talvez, alguma bebida, o que poderia estar acontecendo em pontos afins, como o Café Astúrias, o Café Moderno e o Café Derby.
Em seu livro, o escritor descreve:

Neles (nos cafés) eram comentados assuntos políticos, o noticiário dos jornais, os escândalos surgidos, as conquistas amorosas, a vida alheia, enfim tudo o que forma o universo da nossa vida cotidiana, inclusive as atividades literárias, estas com grande ênfase dada à formação de grupos que tiveram nos cafés seus pontos de referência. (MARQUES, 1994).

Em Apóstolos do Sonho, uma antologia de poetas parnasianos e simbolistas que, à época, ainda teimavam no exercício dessas estéticas passadistas, Flávio de Paula refere-se a esses mesmos hábitos de hedonismo cultural, cevados pela descontração e delícias da boemia, que, na Salvador dos anos 30 e início dos 40, auferiam grupos de intelectuais, pertencentes a correntes diversas – de renitentes espíritos academicistas a emergentes modernistas, sendo estes alcunhados, em geral, como integrantes de uma “horda iconoclasta”.
Esse livro tardio, lançado em 1952, faz supor que, dadas as compreensíveis dificuldades de publicação da época, a sua introdução tenha sido escrita alguns anos antes. “Cada grupo tem o ponto de sua preferência”, anota ele. Apesar da exiguidade do périplo, nessas poucas páginas, as lentes de Flávio de Paula conseguem captar flagrantes que revelam um sugestivo panorama das preferências determinadas pela “marcha dos tempos”, pontuadas de livrarias e cafés, que “vão cedendo o prestígio às confeitarias elegantes e aos bares chiques”. Passar por esses relatos é trilhar por um cenário de túmulos, que emociona e deixa um travo de melancolia, pelo que resta na memória de alguma beleza e fruições perdidas.
Eis uma de suas cativantes tomadas:

Na Confeitaria Chile, separadamente, reúnem-se várias rodas de intelectuais – figurões que misturam literatura com o mundanismo e se dão ao luxo do chá com torradas, dos cremes e sorvetes finos ou dos chopps duplos; na Pastelaria Triunfo – os que não compreendem nem letras nem artes sem alguns copos espumejantes da loira cerveja; no Café Fronteira – os componentes da turma de Poetas da Meia Noite, filósofos, teosofistas, gramáticos e surrealistas quase todos; no Anjo Azul – os sectários do Futurismo e do Modernismo; no Belvedére da Sé – os ecléticos, aqueles que não têm partidos, ou pertencem a todos os grupos. (PAULA, 1952).

Destaca a frequência em outros locais, como o Café das Meninas (antes Café Chic), quando reproduz, com narração colorida e vivaz, o universo de fricções, bons e maus humores, em que se enredavam grupos de literatos de sua época.
Entre lamúrias e frases sardônicas pela indiferença que muitos devotavam à sua “plêiade de sonhadores”, Flávio de Paula retraça em flash-back o que testemunhou em tempos bem recuados, evocando, “dentre as rodas recentemente extintas”, como diz, a dos “poetas apreciáveis que frequentavam o Nosso Bar”; ou ainda “a dos Poetas das Ave-Marias, sediada no Café Chic, ou melhor, no Café das Meninas”, assim chamado por serem suas garçonetes “as balzaqueanas menos airosas da cidade”, no serviço aos fregueses.

No Café das Meninas, reuniam-se, infalivelmente, das dezessete às vinte horas, parnasianos, românticos e simbolistas, sob a denominação comum de Poetas das Ave-Marias, em consequência da hora em que se congregavam, porque todos (ou, pelo menos, sua maioria) trabalhavam em repartições públicas, no magistério, na imprensa e no comércio. Não raro, chegavam cartas, telegramas e jornais, com este singularíssimo endereço: “Fulano de tal. Café das Meninas. Mesa dos Poetas. Rua Juliano Moreira. Salvador”. (PAULA, 1952).

“E nenhuma correspondência foi extraviada!”, remata adiante. Deixemos Flávio de Paula, com sua turma “odiada pelas garçonetes”, por provavelmente seus integrantes se recusarem a dar gorjetas. Tanto pelo que assinala Marques, quanto pelo que informa o poeta Flávio de Paula, em suas memórias, esses espaços de convivência diurna e noturna, abrigavam rapazes ocupados em discutir assuntos diversos, ler textos de prosa, declamar poesias, em recanto somente apropriado à convivência masculina, pelos ditames do machismo que então imperava.
Sem maiores exigências de conforto, ao aconchego somente dos laços de amizade, o ambiente simples dos cafés representava para os jovens intelectuais, para os que os tinham, uma espécie de segundo lar e, por isso, toleravam até mesmo a rusticidade das instalações. O longevo poeta Bráulio de Abreu (1903-2007), participante do grupo de Samba, em depoimento (1999), referindo-se a saudoso convívio com Pinheiro Viegas, recorda dele picante epigrama, em que satiriza os desconfortos de um dos mais frequentados desses românticos lugares: […] além de tudo, / esse Café Progresso / deixa o freguês possesso / com esse acento agudo. (ABREU apud SANTANA, 1999 e 2009).
Já quanto aos Rebeldes, suas peraltices hedonistas eram completadas com incursões, não só noturnas, mas também diurnas, por endereços onde havia mulheres disponíveis para convivência boêmia e transações amorosas. Pertencente ao grupo de Arco & Flexa, concorrente da Academia dos Rebeldes, o poeta Carvalho Filho (1908-1994) afirma que, além da esfera dos conceitos literários, era na vida boêmia que mais se acentuavam as diferenças entre os dois grupos. “Ao contrário de nós, os rebeldes frequentavam bordéis populares, eram grandes farristas, chamavam a atenção. Mas se reuniam também no Café das Meninas, onde conheci Jorge Amado ainda rapazola, muito antes de ele ser famoso” (CARVALHO FILHO apud SANTANA, 2009).
Por mais de uma ocasião, em depoimentos ou em suas memórias, Jorge Amado se refere a esse trânsito lúdico e diurno em ambientes por eles tratados sob a designação geral de castelos, como sinônimo de bordéis ou cassinos. “Quando tínhamos dinheiro, eu e Dias da Costa nos mudávamos para os castelos, ficávamos morando uma semana. Ocupavam uma área enorme, a Misericórdia, Ladeira de São Francisco, Maciel, arredores da Sé, Tabuão” (AMADO, 1992) – recorda assim muitas de suas peripécias juvenis em Salvador, mas experiência por ele bem antes vivida. Há um relato seu de travessura imberbe ocorrida em Ilhéus, em 1925, quando tinha apenas treze anos. Conta ele que visitou com um primo o bordel de Antônia Machadão (“em Gabriela mudei-lhe o prenome para Maria”, observa), segundo ele, “conhecida e estimada por todos na cidade, apesar do comércio que explorava com proveito”, desde que dona do bordel “mais renomado da zona cacaueira” (AMADO, 1992), mas de lá expulso por ela, por declarado respeito a sua mãe, dona Eulália.
É justamente sobre a população feminina da Ilhéus desta época que ele nos oferece uma informação preciosa. “Além de nacionais vindas da Bahia, de Aracaju, do Rio, nele (no bordel) exerciam uma francesa e uma polaca; profissionais civilizadas, as gringas faziam de um tudo”. Registra-se aí um aspecto singular: a presença de mulheres estrangeiras no comércio da prostituição, nas décadas de 1920 e 1930, como nas duas seguintes, sob a designação geral de polacas. Tratava-se de imigrantes que não eram só mulheres de nacionalidade polonesa, mas que poderiam ser também francesas, romenas e sul-americanas, argentinas principalmente. Ainda nos anos 1950, embora já bastante esmaecido, persistia esse fenômeno migratório. Descobri que a palavra polaca, usada para designá-las, funcionava apenas como uma metonímia. Em dois livros, Boêmios, um apanhado sobre a movimentação da vida artística e mundana na Paris dos anos 1920 e 1930, e em seu romance Nu Deitado, o escritor Dan Franck oferece as pistas que explicam esses sucessos. Para a época dos Rebeldes, o motivo reside na migração forçada de jovens mulheres, em razão das consequências desastrosas que a Primeira Grande Guerra (1914-1918) infligiu aos países do leste europeu, em que se destacava a Polônia, gerando forte aumento nos níveis de empobrecimento da população e provocando intenso movimento de imigração.
Segundo se depreende das narrativas de Franck, máfias instaladas em capitais europeias, com destaque para Paris, empenhavam-se na importação de jovens mulheres, que seriam liberadas pelos pais a troco de remuneração que os socorresse ante a infelicidade da miséria que lhes batera à porta. Com isso, confiante no destino promissor que as aguardava, pelas bondades que lhes acenavam os visitantes, os pais concordavam em liberar as filhas, geralmente mulheres jovens e atraentes, e elas concordavam, ante as privações que as engolfavam, e partiam com a mente grávida de sonhos e esperanças. Paris então funcionava, não só como primeiro destino de recepção, mas como entreposto para exportação dessa excêntrica mão de obra para outras capitais, entre as quais Buenos Aires, na América do Sul, que, por sua vez, operava também como entreposto sul-americano para outras capitais, como o Rio de Janeiro, e daí para outras cidades brasileiras, como Salvador, e até Ilhéus, na época privilegiada pelo boom exportador do cacau. Nesses destinos, sempre sob a designação exótica de polacas, elas atuavam muitas vezes como dançarinas de cabarés, integrando grupos sob a carapaça profissional de bailarinas, por se apresentarem em ballets, ou mesmo simplesmente como prostitutas, tendo por trás, além de intermediários, quase sempre uma súcia de gigolôs.
Abra-se de novo um parêntese, agora para a cidade de Ilhéus, residência de Jorge Amado adolescente, a partir de 1924. Por essa época, com a exportação de cacau passando a se fazer diretamente, evitando-se com isso o transtorno e os custos de o ser por Salvador, com a presença de estrangeiros no comércio exportador (os Wildberger, Stevenson, Kaufmann, Colavolpe, depois também produtores) e consequente intercâmbio cultural com a Europa, descortina-se novo horizonte em áreas de diversão aos que dispunham de farto dinheiro advindo da cultura do cacau. Segundo relatos, surgiram então cabarés, clubes noturnos e cassinos, suscitados por súbita mudança de gostos e amor ao luxo. É na segunda metade dos anos 1920 que surgirá o cabaré Bataclan (Avenida Dois de Julho, no Centro), doravante endereço preferencial da vida noturna para os abastados locais ou de cidades e vilas próximas. Nele funcionavam um cassino e um salão para apresentação de companhias de dança vindas do sul do país, até do exterior, e de cantores e cantoras, com orquestra. Havia as dançarinas e as que o eufemismo provinciano designava como “damas de companhia”, sempre bem-vestidas e penteadas à disposição de abonados fregueses. A proibição nacional de funcionamento dos cassinos, a partir da segunda metade dos anos 1940 (governo do presidente Eurico Gaspar Dutra), levou o Bataclan à decadência e depois à extinção, no desenho perdulário que o tornara famoso.

A VOZ PELA ESCRITA IMPRESSA



O salto baiano para o Modernismo ou para a Modernidade, como mais gostavam os Rebeldes da Bahia de rotular seus propósitos, seguiu a tradição de todo tempo e lugar de adoção das ideias novas, que no princípio do século XX irromperam mundo afora, a da criação de revistas como meio de difusão das múltiplas inquietações intelectuais e, até mesmo, políticas. Para ficar na América do Sul e no Brasil, foi o caso da revista Prisma, em Buenos Ares, dos rotulados ultraístas argentinos, e de Klaxon, dos modernistas de São Paulo. Assim, os modernos baianos cuidaram da criação de revistas, primeiramente, com Meridiano, que durou um só número, impresso em setembro de 1929, lançando depois O Momento, cujos nove números circularam entre julho de 1931 e julho de 1932. Faziam o mesmo que os outros dois grupos concorrentes em ideias e projetos da época: Samba, onde atuavam os poetas Bráulio de Abreu, Godofredo Filho, Carvalho Filho e Eurico Alves, e Arco & Flexa, esta editada sob a direção de Carlos Chiacchio (1884-1947), um médico mineiro, que, como crítico e animador de movimentos literários, lutava pela renovação da literatura brasileira, militando com intensidade desde 1928, quando começou a assinar cultuados rodapés de crítica, sob o título de “Homens e Obras”, no jornal A Tarde, que durariam até 1946, embora fosse um intelectual de índole conservadora.
Meridiano surgiu em setembro de 1929, mas seu único número trazia o bastante para mostrar a que vinham os Rebeldes baianos. “Meridiano não passou do primeiro número. Nós, os Rebeldes, éramos pobres como Jó, exercíamos nossa prosa e nossa poesia em qualquer gazeta que nos desse guarida”, comentará Jorge Amado, muitos anos depois, em tom que se distancia do artigo-manifesto, com o título de “Itinerário”, estampado na primeira página, no qual o grupo já se declarava disposto a iniciar “o combate a tudo o que retarda a marcha do progresso, em todas as manifestações do espírito humano”, classificando a sua atuação como “obra de regeneração moral e intelectual”, com “espírito moderno”, “dinamismo”, enfim, “século vinte”. Além de condenar “o sentimentalismo atrofiador de energias”, o texto pregava a substituição pela ciência das “velhas superstições religiosas, que constituem o ponto de apoio da ignorância”; condenava “os convencionalismos idiotas que impedem o surto de todas as ideias novas” e se propunha “pensar e agir por conta própria”; contra os “ismos” importados do estrangeiro; desejava “escrever fora do jugo de estéticas desorientadas e incoerentes”, praticando ”literatura instrutiva, sadia, edificante” e uma “poesia simples, natural, sem artifícios”. E, num parágrafo, advertia possíveis incautos: “Condena a tagarelice dos filósofos, a bisbilhotice dos gramáticos, a literatice dos diletantes, o verbalismo dos retóricos e as frioleiras dos ‘poetas do amor e da saudade’”. Neste número, apareceram como destaques Da Costa Andrade, Sosígenes Costa, Alves Ribeiro, José Bastos, Octávio Moura, Jorge Amado e Pinheiro Viegas.
Com o subtítulo de “Mensário Ilustrado Informativo”, O Momento apareceu em edição colorida e com fotos. Como surgia após a deflagração da Revolução de 30, além das preocupações literárias e estéticas, o conteúdo editorial da nova revista também se enveredava pela política, mas acabou por se fixar, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos (2001), como “a mais expressiva das revistas surgidas na Bahia, inspiradas no movimento modernista”. Tendo o poeta Alves Ribeiro como redator-chefe, aos colaboradores de Meridiano, nas edições de O Momento, se acrescentaram Edison Carneiro, Dias da Costa, João Cordeiro, Guilherme Dias Gomes e Clóvis Amorim, entre os mais assíduos do grupo, mas com a novidade de autores do Sul do país, entre os quais, Augusto Frederico Schmidt, Octávio de Faria e Menotti Del Picchia. De entrada, ostentando um laivo de soberba juvenil, a revista avisava que não aceitaria colaboração de quem não fosse convidado, o que implicava na obrigação de estar o colaborador em consonância com suas ideias, e completava, entre jocosa e desafiadora: “O Momento, como todo órgão ou realejo que se preze, não se quer confundir com as gaitas de fole do jornalismo salta-moitas”, “porque aqui não impera o costume baianíssimo do elogio mútuo”. E frisava, como a justificar-se:

Fazemos esta declaração a tempo, a fim de evitar aborrecimentos com certos poetas e literatos que andam às portas mendigando publicidade às suas bobagens, rimadas ou não. Toda e qualquer colaboração será solicitada pela direção desta revista, obedecendo ao critério da seleção de valores. (SANTOS, 2001).

O relativo sucesso da revista O Momento, para a época, cujas propostas se identificavam com a revolução modernista, na literatura, quando a mentalidade conservadora dominante freava todo processo de divulgação cultural, é atribuído à consciente estratégia com que os Rebeldes buscaram conciliar suas práticas literárias e culturais com o meio urbano, sem ataques furibundos aos que lhes faziam oposição, tanto os do campo da literatura, quanto os pertencentes à classe dominante, que os viam com antipatia e rejeição.
Anunciado como parte de uma pesquisa sobre o Rebelde Edison Carneiro, nas suas qualificações intelectuais de etnólogo, desenvolvida no âmbito de um doutorado, que cumpria em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luiz Gustavo Freitas Rossi apresentou, no XXVI Congresso ALAS – Associação Latino-americana de Sociologia (Guadalajara, México, 2007), um texto sobre a Academia dos Rebeldes, em que ressalta como os seus integrantes conseguiram agir ante tal encruzilhada, primeiramente, no que dizia respeito aos conteúdos editoriais, buscando concentrar suas práticas literárias, porque convencidos de fazer melhor, nos gêneros próximos do que publicavam os jornais e revistas em circulação, como a crônica, o conto, a crítica literária, o colunismo social, sem esquecer a poesia e os manifestos.
Vencida essa etapa, não havia porque não considerar o outro lado da viagem em pleno curso, o da manutenção e circulação de O Momento. É o próprio expositor Luiz Rossi que desvenda a solução, ao observar que, “desprovidos de maiores folgas financeiras ou de proteções de figurões da literatura local, conferindo às suas revistas feições bastante diversificadas”, os Rebeldes notaram que “aparentemente dependiam exclusivamente da publicidade e de sua comercialização para que pudessem continuar circulando”, e, num remate conclusivo, observa:

O fato de conseguir veicular nove números de O Momento, me parece, é significativo da maneira acertada de como acertaram o “gosto” dos setores letrados da sociedade baiana, bem como do relativo sucesso “publicitário”, pois chegava a ser espantoso o número de propagandas na revista. Em sua maioria, de casas comerciais de Salvador. (ROSSI, 2007).

Lá, Jorge Amado publicou o seu primeiro conto, “Sentimentalismo”. Quando passou a ser dirigida por Dias da Costa, a nova revista se insere num contexto que a torna, segundo Jorge Amado, “de inflamado conteúdo antifascista e evidente influência do Partido Comunista, no âmbito da luta contra o integralismo”, mas o jornalista e crítico João Carlos Teixeira Gomes, encarando-a na perspectiva de órgão de comunicação, considera que ela, embora não fosse apenas dedicada às letras, se desempenhara com brilhantismo nesse campo. Escrevendo em 1979, lamenta que O Momento, representando no seu tempo “uma etapa singular na evolução do jornalismo baiano”, tenha caído em completo esquecimento, “desconhecida praticamente por historiadores e críticos”.
Não apenas sua linguagem, mas também sua diagramação se revelava ágil e dinâmica, dentro dos padrões da época. Combatendo com desassombro – indiscutivelmente temerário, em tempos tão provincianos – aspectos negativos da vida e da sociedade baianas, não se furtou a encarar temas nacionais como os rumos políticos do País depois da Revolução de 30, a reforma do ensino, a reforma ortográfica, o feminismo (em relação ao qual adotou posição nitidamente conservadora) e tantos outros que lhe deram feição afirmativa, sobretudo no que se refere à análise do ambiente local, assinala Teixeira Gomes, em seguida, que a revista possuía seções e colunas pioneiras dedicadas a cinema, recensão de livros, indicador médico permanente, notas de arte, amplo e variado registro social, crítica de concertos e recitais, entre outras inserções, “além de ser apologista do progresso contra o passadismo”. (GOMES, 1979).
Com nítido orgulho futurista, a capa do primeiro número ostentava foto do recém-inaugurado Elevador Lacerda, sublinhando tratar-se da “mais arrojada construção que possuímos”.




LEGADO ÀS LETRAS E ÀS ARTES

Em um parcimonioso inventário do desempenho dos Rebeldes – aqueles, segundo Cid Seixas, “bem-humorados mosqueteiros, que combateram o bom combate dos fins dos anos vinte aos princípios dos anos trinta” (SEIXAS, 1996), em 1992, Jorge Amado produz o que o crítico considera apenas uma “avaliação sentimental”, sob a forma de sucinto inventário.

Único vivo do grupo que compôs a Academia, no exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Edison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande Edison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Chão de Massapê; o romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema - some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo. (AMADO, 1992).

Nas palavras de Amado, embora não tenham varrido a literatura dos movimentos do passado – “não enterramos no esquecimento os autores que eram os alvos prediletos de nossa virulência […], em geral todos os que precederam o modernismo” (AMADO, 1992) –, os Rebeldes concorreram, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros”. “Fomos além do xingamento e da molecagem, sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia”, sublinha o autor de Navegação de Cabotagem (1992).
Abstraindo-se o movimento de Ala das Letras e das Artes (ALA), que vigorou a partir de 1936, sob o comando intelectual de Carlos Chiacchio e, por isso mesmo, uma continuidade da pauta de ideias pregadas e defendidas pelo grupo de Arco & Flexa, persistindo no receituário de seu “Tradicionismo Dinâmico”, que defendia um modernismo respeitador da tradição e duraria até o final da Segunda Grande Guerra (1945), visto à distância de hoje, percebe-se que o legado da Academia dos Rebeldes estará sutilmente presente nos dois movimentos baianos que se seguiram ao fim do conflito mundial: o de Caderno da Bahia, que se inicia por volta de 1947, e o da chamada Geração Mapa, como sequência deste, a partir de 1955/56.



NA ESTRADA DA LIBERTAÇÃO

Caderno da Bahia apareceu com uma novidade: a presença forte das artes plásticas, segmento estético em tudo ausente de movimentos anteriores, embora fosse predominante nele o objetivo das letras. Vale lembrar que, estranhamente, em nenhum dos movimentos anteriores (Samba, Arco & Flexa e Academia dos Rebeldes) havia participação clara das linguagens plásticas. A mais razoável explicação para tanto se deve à predominância da arte acadêmica, presente em instituições de prestígio, como a Escola de Belas Artes, e representada por artistas do porte e notoriedade de Presciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho. As novas ideias germinaram fora desse circuito tradicionalista, a partir dos artistas plásticos Mário Cravo Jr. e Carlos Bastos, na volta de viagens e cursos realizados nos Estados Unidos, na França e no Rio de Janeiro, onde tomaram conhecimento das revoluções estéticas, vigentes então no mundo. Além desses, o grupo se constituiu de outros artistas plásticos, entre os quais Jenner Augusto, Rubem Valentim, Lígia Sampaio e Mota e Silva, mantendo-se à distância o tapeceiro Genaro de Carvalho, embora da mesma geração e desígnio; dos ficcionistas Vasconcelos Maia, José Pedreira e Nelson de Araújo; dos poetas Wilson Rocha, Cláudio Tuiuti Tavares, Camilo de Jesus Lima e Jair Gramacho; dos jornalistas Heron de Alencar e Darwin Brandão, e intelectuais outros, como Luís Henrique Dias Tavares, Adalmir da Cunha Miranda, A. L. Machado Neto e Pedro Moacir Maia. Entretanto, o movimento consagrado com o epíteto de Caderno da Bahia adquire visibilidade a partir de 1948, com a primeira exposição baiana de arte moderna em que figuram artistas da geração. Abriu-se também para a fotografia e o cinema, para adquirir corpo com a publicação da revista que lhe daria nome, cujo primeiro número é deste mesmo ano, conseguindo somar seis números, até encerrar-se em setembro de 1951. A ela, assim se refere o escritor Vasconcelos Maia:

O Caderno da Bahia começou sem muitas pretensões, mas, como se a nossa geração estivesse aguardando um veículo com que antes não contava, as adesões se precipitaram. Suas atividades ganharam fôlego. E logo relativo prestígio o cercou, não só aqui, como nos outros estados, onde se processava luta mais ou menos igual: a da afirmação dos talentos jovens na província eminentemente dominada pelo gosto acadêmico. (SANTANA, 1981).

É justamente no editorial inserido na edição de 17 de abril de 1950 que se percebem ressonâncias de ideias proclamadas pelos Rebeldes, agora estimuladas pela avalancha libertária do pós-guerra e centradas em fortes aspirações de paz que se alastravam. O pensamento de esquerda, responsável pela opção comunista de influentes rebeldes, açulado pela propaganda internacional de princípios marxistas difundidos a partir do sucesso da Revolução de 1917 e a instalação do comunismo na Rússia, a postura de rejeição a todas as formas de idealismo político, que desaguassem em regimes ditatoriais, e o claro propósito de abraçar tudo o que representasse fortalecimento de um humanismo real, eram visivelmente os esteios ideológicos em que repousava o entusiasmo de Caderno da Bahia.
O editorial aponta como destino preferencial do grupo a “ampla e larga estrada da libertação, na qual marcha uma nova humanidade, na busca de um mundo de tranquilidade e de trabalho, de paz e de amor entre os povos”, reconhecendo este como seu roteiro, “a serviço da paz e da defesa e enriquecimento da cultura”, em contraposição ao outro, “o caminho sangrento e tortuoso do desespero, no qual as formas sociais historicamente decadentes, e mesmo superadas, tentam conservar seus privilégios de exploração e de injustiça”. Vasconcelos Maia diria, alguns decênios depois, que Caderno da Bahia era “um boletim literário e artístico, mas, como a situação política exigia, também político.” (SANTANA, 1981). Ao definir as características do movimento, como a consciência do que buscavam, Maia remete, de forma clara ao essencial, ao que lhe deu suporte: “Tínhamos tido e aprendido as lições da Semana de Arte Moderna de 22 e do movimento aqui liderado por Pinheiro Viegas.” (SANTANA, 1981).
Não havia por que negar, pois lá estava Walter da Silveira, da linha de frente da Academia dos Rebeldes, que se incorporara ao grupo de Caderno da Bahia. Era a projeção do que, entre os Rebeldes, se constituiu em ponto de coesão para a atividade criadora. “A militância serviu de régua e compasso aos escritores que levantaram um projeto de modernidade – visceral e epidermicamente – afinado com a realidade de seu povo”, infere com percuciência o ensaísta Cid Seixas (2004). De hábitos presumivelmente herdados dos Rebeldes, podem-se alinhar alguns, tais como um semelhante desejo de maior fruição da cidade, no dizer de Vasconcelos Maia (1981), “ideal para se viver – tranquila e pacata, sem assaltos”, onde “pouca gente tinha automóvel e a grande maioria das pessoas andava de bonde”. Em timbre que repetia Jorge Amado (1992), Maia testemunhava: “Os grandes vales, que foram utilizados como avenidas e se incorporaram ao processo de urbanização, eram hortas e pomares. O clima era agradabilíssimo, ameno”. Por suas palavras, deduz-se que o grupo vivenciava melhorias no setor de transportes urbanos, com as mudanças que se operaram no serviço de bondes elétricos, a partir da aquisição de unidades mais modernas – agora todos iguais e abertos, amarelos, com os números pretos, com capacidade cada para 50 passageiros, surgindo logo a seguir os bondes fechados de 46 passageiros sentados, que o povo apelidou de “Sossega Leão”, em alusão ao samba de sucesso do compositor baiano Assis Valente, “Camisa Listrada” (1937), na voz de Carmen Miranda.
A boemia também tinha seu lugar. Além de alguns espaços sobreviventes, como o Café das Meninas, os componentes de Caderno da Bahia se reuniam preferencialmente na Pastelaria Triunfo, misto de bar e mercearia, na Praça Municipal, mas, para dar um toque especial de fruição hedonista, criaram seu próprio espaço, o Bar Anjo Azul, um ambiente decorado em tons barrocos, que se tornaria um ícone local de sofisticações boêmias, situado na Rua do Cabeça (Centro). O ambiente refletia a atmosfera de doutrinas estéticas e comportamentais em moda na época, como o surrealismo e o existencialismo, refletindo-se na postura dos frequentadores. O interior imitava um bistrô parisiense, onde a música de preferência era o Jazz, na voz de Billie Holiday. Bebia-se pernod ou xi-xi de anjo, este uma especialidade da casa, à base de aguardente, de fórmula secreta, guardada a sete chaves. A entrada ostentava na parede um suntuoso painel surrealista, em cores, de autoria do pintor Carlos Bastos.
Tal como os Rebeldes, a frequência nos bordéis e cassinos figurava naturalmente na agenda do grupo. Relembra Vasconcelos Maia:

Íamos muito em grupo aos cabarés. Não tanto ao Tabaris, porque não tínhamos grana. Íamos mais aos rumbas, aos boleros. Apesar de moços, éramos muito conhecidos. Quando chegávamos nesses dancings, dominávamos o ambiente. Os donos e as dançarinas nos tratavam otimamente, era formidável. Jenner Augusto se arvorava a cantor, Mário Cravo a mágico, nosso amigo Jairo Saback fazia um número de música, ficávamos donos dos salões. (SANTANA, 1981).

AMPLITUDE DO RAIO CULTURAL

O movimento que se seguiu, o da chamada Geração Mapa, tinha igualmente como proposta básica romper com a inércia cultural, a dominação academicista, que ainda alimentava o preconceito contra a arte moderna; mas a realidade era inteiramente outra. Já se haviam esmaecido os fortes reflexos do pós-segunda guerra, embora tivesse irrompido a guerra da Coreia, mas de curta duração e menor repercussão no noticiário, e pipocassem outras insufladas pelo capitalismo na luta por sua hegemonia internacional. O mundo se pautava agora pela Guerra Fria, no confronto entre Estados Unidos e União Soviética (URSS). Prescinde o grupo Mapa uma novidade cultural: a partir de 1952, como instrumento de divulgação cultural, Caderno da Bahia, que se encerrara, seria substituída pela revista Ângulos, criada por Adalmir da Cunha Miranda e outros acadêmicos de Direito, como Machado Neto, sob a direção do Centro Acadêmico Ruy Barbosa (CARB), que advogava a mesma postura de luta contra o conservadorismo renitente e o conformismo intelectual, findando-se esta sua fase em 1961, após 17 edições.
O grupo de Mapa começou a aparecer nas páginas de Ângulos, antes da criação de sua própria revista, que daria rótulo à geração, circulando em três edições, nos anos de 1957 e 1958, para o que contou com substancial apoio de Zittelmann de Oliva, então um dos sócios da empresa Artes Gráficas, situada na Rua do Saldanha (Centro), para ser depois superintendente do recém-lançado Jornal da Bahia (1958). Era a forma de se afirmarem talentos do nível de Glauber Rocha (praticamente o líder do grupo, apesar de ser o mais jovem), Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Fred de Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Carlos Anysio Melhor, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, e outros, entre os quais, este redator. A eles se agregariam, algum tempo depois, a poeta Myriam Fraga e os então contistas João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles e Noênio Spínola.
No grupo Mapa, integravam-se várias linguagens artísticas. Além de literatura (ficção e poesia), lá estavam criadores das áreas de artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo, utilizando como meios de difusão, além da revista Ângulos, primeiramente, a página literária do Jornal da Bahia, então editada por Luís Henrique Dias Tavares, um dos nomes de Caderno da Bahia, e, depois, o suplemento dominical do jornal Diário de Notícias, da cadeia dos Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, que se celebrizaria sob a sigla SDN, criado e editado pelo jornalista Inácio de Alencar, tendo como coadjuvantes Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, este redator e, às vezes, Sylvio Lamenha, então colunista social, mas de espírito voltado para a literatura e música popular. Concomitantemente, com a revista Mapa, o grupo atuava em várias frentes. Criou seu próprio selo editorial, as Edições Macunaíma, que editou os primeiros livros de membros do grupo; fundou uma empresa cinematográfica, a Iemanjá Filmes, e, a partir da aproximação com Walter da Silveira, através do Ciclo de Cinema da Bahia, tendo à frente Glauber Rocha, iniciou o processo que desaguaria no movimento designado pelo nome de Cinema Novo, a partir da realização de filmes paradigmáticos, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, ambos de Glauber Rocha, que antes realizara o longa “Barravento” e o curta “O Pátio”; “Memória do Cangaço”, de Paulo Gil Soares, que escreveu também uma peça de teatro, “Evangelho de Couro”, versando sobre a tragédia de Canudos, levada pela pioneira Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em seu palco. Patrocinou ainda exposições de Calasans Neto e Sante Scaldaferri, em galerias de arte de Salvador, além de lançamentos de álbuns de gravuras.
A geração Mapa vivenciou, e a ele se incorporou, o rico momento de reforma da então Universidade da Bahia (só se tornaria Federal em 1977), empreendido pelo reitor Edgard Santos, com a criação das escolas de artes (Música, Dança e Teatro), reestruturação da Escola de Belas Artes, fundação de institutos culturais, entre os quais se destacava o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), além dos de ciências exatas e, mais adiante, novas unidades de ensino, como o Curso de Jornalismo, inicialmente integrante da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em seguida agregado à Escola de Biblioteconomia e Documentação. Participou da criação e funcionamento do Museu de Arte Moderna, inaugurado pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1960, e na programação avançada de teatro, sob o comando de Martim Gonçalves, então diretor da Escola de Teatro.
Quanto à fruição hedonista, os integrantes do grupo seguiram, com variações, o roteiro das duas gerações anteriores (Academia dos Rebeldes e Caderno da Bahia): bares, restaurantes, bordéis, cassinos, dancings, recém-surgidas boates, mas, para encontros, tinham como suas preferências a Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda, e os restaurantes Cacique, na Praça Castro Alves, e Porto do Moreira, então na Rua do Cabeça. Até hoje, pergunta-se por que a preferência do grupo, de fins de tarde à meia-noite, cotidianamente, pela Sorveteria Cubana, que não servia bebida alcoólica, mas somente sorvetes, milk-shakes e bolinhos. Simples: a inocência também leva ao paraíso.

BIOGRAFIAS SINTÉTICAS

 

Agrupam-se a seguir, sob o rótulo de biografias sintéticas, catorze membros da Academia dos Rebeldes, adotando-se para tanto um critério de seleção entre os mais citados por pesquisadores e comentaristas, como assíduos colaboradores das revistas do grupo, Meridiano e O Momento, que circularam entre 1929 e 1932, participantes das ações socioculturais e desfrutes de boemia do grupo, como também os que, entre eles, cumulativamente ou não, alcançaram proeminência em campos da literatura ou de atividades outras, como o jornalismo, a política e os estudos científicos, obtendo reconhecimento regional, nacional ou mesmo internacional.

Algum curioso leitor poderá observar que, em se tratando de biografias, dispostas pela ordem do ano de nascimento dos biografados, faltam maiores indicativos cronológicos às narrativas. Sem dúvida. Explica-se: no presente caso, o fulcro do interesse por cada um dos nomes da lista procurou centrar-se na expressão e significado do seu desempenho para os fins colimados do projeto intelectual e político que os unia, optando-se por uma exposição sucinta das respectivas trajetórias.


PINHEIRO VIEGAS (1865-1937)

 Talvez mais por sua fama de jornalista panfletário, conquistada desde o Rio de Janeiro, onde viveu mais bem reconhecido como agitador cultural, intelectual corrosivo e desagregador, do que como mestre e líder de um movimento literário, João Amado Pinheiro Viegas nasceu em Salvador e, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos, morreu num dia de novembro, “abandonado pelos poucos amigos que tinha”, em Itacaranha, subúrbio da capital, sem receber qualquer homenagem póstuma, sequer merecer registro obituário na imprensa, mas talvez como um alívio para “a mediocridade empavonada e vitoriosa, a quem jamais poupou com a sua sátira” (2001).

Jorge Amado, que se dizia surpreso por ter ele o prenome e o primeiro sobrenome iguais ao de seu pai, João Amado, o define como patrono da Academia dos Rebeldes e poeta baudelairiano, “panfletário temido, epigramista virulento, o oposto do convencional e do conservador, personagem de romance espanhol, espadachim”. Entretanto, não foi somente a marca do mentor a se fixar em sua memória. Pinheiro Viegas era mais. “Um homem avançado para os padrões da época”, assinalando que “havia participado da campanha civilista, ao lado de Rui Barbosa e trabalhado vários anos no Rio” (AMADO, 1992). Nômade, pouco se sabe de descrição objetiva desse nomadismo; apenas que percorreu o Brasil, de norte a sul, como poeta e jornalista, e que no Rio fez boemia como integrante da turma de Lima Barreto.

Poeta panfletário e ferino epigramista, quando viveu no Rio de Janeiro, Pinheiro Viegas atuou no jornalismo, alcançando prestígio e admiração, entre leitores e literatos de proa, apesar de poucos saberem de sua vida em privado, à exceção de alguns amigos, entre eles o crítico literário Agripino Grieco (1888-1973), que, de tão próximo, não o esqueceria em suas memórias de 1972, ao evocar visita que fez a seu misérrimo endereço, que companheiros de tertúlias diziam situar-se “lá para as bandas do Cais Pharoux”.

“Uma tarde, fez questão de levar-me ao cubículo infecto da rua do Mercado, onde dormia numa rede, entre duas cadeiras pernibambas, mas onde se destacavam, numa estante, não de todo desgraciosa, volumes riquissimamente encadernados em França, dos seus poetas blasfemos, malditos, Baudelaire, Verlaine, Corbière, Rimbaud, volumes que ele não venderia por preço algum, mesmo em dias de fome agudíssima”. (SANTOS, 2001)

Muitos de seus panfletos em versos se propagaram, fosse a partir da Bahia, fosse do Rio de Janeiro, publicados em veículos diversos, como o de maior repercussão entre eles, sob o título de A Re Pública – Carta ao Marechal Deodoro, que mereceu comentários elogiosos de variada autoria, do qual adiante vão alguns excertos e sobre o qual assim escreveu, em estilo próprio da época, um redator no nº 374, do Pequeno Jornal carioca, em 21 de maio de 1891:

A Re Pública – É o título de um panfleto que temos entre mãos, em estilo epistolar bem metrificado em alexandrinos e dirigido ao Sr. marechal Deodoro, assinado por Pinheiro Viegas. Não sabemos onde foi impresso; com toda a certeza o impressor, cidadão garantido pela nossa Constituição republicana, receou, o que? Alguma empastelação”.

Viegas cumpriu os cursos primário e secundário no então Ginásio da Bahia; bacharelou-se em Letras e ingressou no Curso de Direito, abandonando-o, para se dedicar ao jornalismo. Trabalhou em O Imparcial, mas o deixou, quando o jornal foi vendido aos integralistas, força política emergente da época, assumindo o seu comando dois dos, ao tempo, chamados “galinhas-verdes”, em alusão às cores da militância ideológica, Mário Simões, diretor de redação, e Mário Monteiro, diretor financeiro. É, dessa ocasião, epigrama famoso de Viegas, composto para registrar satiricamente o acontecimento.

Mário Simões bis Monteiro

Remontaram O Imparcial.

São quatro mãos no dinheiro,

São quatro pés no jornal.


Em Salvador, onde verdadeiramente se tornaria conhecido e influente, antes de fundar e liderar a Academia dos Rebeldes, frequentou o grupo de Samba, cujos membros se mostravam engajados no combate ao conservadorismo, mas sem que estivessem efetivamente identificados com a corrente renovadora do modernismo. Apesar de publicações dispersas, seja como poesia, crônica ou panfleto, Pinheiro Viegas deixou apenas um livro de poemas, Brasil Prosa e Verso (Salvador: Gráfica Popular, 1931), mas com autoria sob o pseudônimo de Sophos Arnaud.


Abaixo, sete de seus sonetos e excertos de um folheto em alexandrinos, criações essas, hoje, raridades.

MEDALHÃO GREGO

Escuto Debussy. A noite. O luar. O oceano,

Recordo-o. Onde isso foi. Eu não o sei. Perdi-o.
Era o efebo irreal – grego mármore humano
Olhei-o. Olhou-me. Riu. É um demônio. Eu rio.

Belo mármore jônio impassível – engano!
Os olhos verdes maus, a grenha negra, vi-o.
As suas níveas mãos, nervosas, tinham frio
Nas teclas de marfim e de ébano do piano.

A boca – flor de sangue – em claros risos francos

Mostra-me, alegre, os seus trinta e dois dentes brancos.
O amor – interjeição – duas sílabas métricas.

Uma por uma eu vi todas as suas baldas.

Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.

MÚSICA NOTURNA


Abro a janela. Escuto. Enche todo o ambiente

Essa música irreal do violão de um tzigano,

Feita de longos ais do coração humano,

Fora, no ermo, ao luar, desoladoramente.

Lembro a imagem lirial da pulcra e eterna ausente,

Longe, o meu país natal, Glauco e múrmuro oceano,

O doce lar tranquilo, o jardim redolente,

Na plaga verde e azul sob o céu pompeano.


Do violonista boêmio, o sem pátria no mundo,

Como a dizer à noite e ao plenilúnio: – “Ouvi-me!”

Tem uma alma esse violão toda nervosa e quérula… 

Guay em guay, corda a corda, assim ele é sublime:

Escuto-o em pranto, à janela, o silêncio profundo,

A paisagem do exílio ao luar de madrepérola!


(Gil Blas. Rio de Janeiro, Ano I, nº26, 7 de agosto, 1919)


ESFINGE


Leão e mulher, – de pedra o monstro, – é a esfinge obscura

Do cruor do orgulho humano em meio ao labirinto:

– O Tudo e o Nada, a Vida e a Morte, o Sonho e o Instinto,

O Espírito e a Matéria, o Criador e a Criatura.

De granito, – enigma eterno, – olhando os sóis na altura,

– Mora o deserto areal de um grande oceano extinto.

Na queda boca imita, – o néctar feito absinto,

– Mostra ao Ser e ao Não-Ser pétrea ironia dura.

O Orbe em retorno ao Caos e a Volúpia ao Nirvana,

Abre ao infinito azul as órbitas bizarras,

Da plástica ao psiquê, divina, sendo humana.

Rebelde ao Anjo, – a Besta é o delírio e a nevrose:

Tem do Gênio ou do Herói os fantos entre as garras

Sob a lua de um Sonho e ao sol de uma Apoteose!

(Gil Blas. Rio de Janeiro, Ano II, nº55, 25 de fevereiro de 1920)    

 

J.N.R.J.

 

Jerusalém. Por fim de surpresa, aparece

(É o moço gênio hebreu mestre de pulcritude!)

E fala a turba ignara afeita ao trato rude

Sobre o credo que exsurge… avulta… aumenta… cresce… 

 

Dizem: - “Eis o Homem Deus!” – Ele sorri. Parece

Branco lírio imperial sobre negra palude.

Tem nos olhos, no rir, no andar, na celsitude,

A beleza toda irreal de um poema ou de uma prece.

 

Como poeta ele adora a natureza. E o verbo

Sai-lhe do lábio, ao vê-la, em surto ao céu e aos astros,

Dentro a cidade hostil no transe mais acerbo…

 

À pobre argila humana é a glória inatingida:

Ao lembrá-lo, no mundo, há de sorrir seus rastros

Quem faz por uma ideia o holocausto da vida.

 

Rio, 1920

 

O CORVO

 

Sobre um tronco pousado e indiferente ao coro

Dos pássaros no azul e as serpes no chão rasas,

Mesto, os olhos de treva – abrindo em duas brasas –

Ei-lo na hora púnica em luto imorredouro.

 

Ele põe-se a grasnar, de chofre, em riso e choro,

A saudade letal das expulsíceas vasas

Qual sarcasmo funéreo à volúpia das asas

E ao pôr do sol de outono a broslar o céu de ouro.

 

Tomba do monte do vale a noite. E então na treva

Tem do corvo de Poe negra nevrose estranha,

Que em silêncio da morte a alma gnomes ceva.

 

Triste ausência da lua morre! Banha

A paisagem de sonho o luar que então se eleva

No espaço de ter turquesa ao topo da montanha.

 

(Vida Carioca. Rio de Janeiro, Ano I, nº2, 22 de janeiro de 1921)

 

SPLEEN

 

O laudano ao café. Lethes. O eterno sono.

Ponto final do amor de poema ou de novela.

Entra em meu quarto o luar de ouro fosco de outono.

Espero-te. Não vens. Cismo, chego à janela.

 

Tic, tac, o relógio é monótono absono.

No teu autorretrato antigo em aquarela,

Tenho a ilusão de ver-te a pose de abandono.

Sendo humana, és divina! e sendo cruel, és bela!

 

Certo de minha dor hoje um poema eu não faço…

Lápis verde escreve em uma folha de almaço

Maus versos, versos maus, nesses meus hieroglifos.

 

Cai-me o papel das mãos: - São meus quatorze versos!

Meu gato Angord, de gris-verdes olhos perversos –

Do chão num salto, apanha-o e rasga-o entre os seus grifos.

 

(O Mundo Literário. Rio de Janeiro, 5 de junho, 1923)

 

ELA

 

Entra. Despe-se. E nua, a rir, sem cerimônia.

(Ela é a visão celeste e a femina terrena),

Negros olhos de ônix, solta a bruma melena,

Anda, à noite, em meu quarto, ao léu da minha insônia.

 

Cismo: é a Tzigana, a musa, a madona, a demônia,

A mandrágora, a eufórbia, a reflesia a açucena,

Grande, soberba, irreal, pulcra, nívea, serena,

Frio alabastro nu de vedra estátua Jônia.

 

Alva argêntea, lunar, dúbia, eu sonho, imprecisa,

(Para a sua psique só mesmo a sua plástica!)

Ela faz-me lembrar, Da Vinci, a Mona Lisa.

 

Cai-lhe sobre a nudez o amplo peplo vermelho.

 Depois, nada!…  Ilusão! E eu só vejo fantástica,

A máscara da lua, a rir, no meu espelho.

 

(Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 09 de outubro, 1935)

 

 

MONSTRO VERDE

 

Meia noite. No bar, ele ao piano, o Diabo!
O espelho contra o espelho é um fogo de artifício.
O meu copo de abismo é o meu mundo fictício.
Sou pachá, mandarim, sibarita, nababo.

Rindo, vejo, em redor, então, em menoscabo,
O quadro nu plebeu do amor venal de ofício.
Ébrio só de ilusões!… mais ilusões… e, ao cabo,
O absinto, o Monstro Verde, adoro-o! ele é o meu vício!…

Lá fora, o céu de inverno, o vento, a chuva, o frio.
Os verdes olhos maus, a grenha bruna — vi-o.
Mais belo é o mundo assim em linhas assimétricas.

De chofre, vejo, então, todas as suas baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas.
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.

 

TEBAIDA

 

A paisagem vernal de sonho e de aquarela.

O monte, o vale, o rio, o céu, são meus vizinhos.

Da janela eu contemplo o dia quase ao termo:

É a cabeça de um Deus a sangrar sob espinhos.

 

Triste e só, por não vê-la, eu vou ficando enfermo.

Creio vê-la outra vez, meu coração me bate,

Os seus olhos azuis nos verdes do meu ermo.

 

O palor de alabastro, a coma de ouro mate,

Penso vê-la outra vez, antes eu nunca a visse!

Leda, a boca a sorrir, é uma rosa escarlate.

 

É a carícia nupcial e a sororal meiguice:

Enlaçada, sutil, deslumbrante e bela,

Na música do céu das coisas que me disse.

A paisagem vernal de sonho e de aquarela.

 

A RE PÚBLICA - CARTA AO MARECHAL DEODORO

                    (Excertos)

 

Marechal, sou plebeu, um simples democrata.

Um forte coração, uma alma intemerata,

Eu jamais me curvei a um rei ou ditador

Nunca tive ambições de ser comendador.

Barão, duque, marquês. Detesto a fidalguia.

Odeio o sangue azul e esta aristocracia,

Que campeia entre nós, assim, com altivez!…

É grande cobardia, estranha insensatez.

Ninguém vir protestar contra o nefando crime,

Que a todos nos suplanta e a todos nos oprime!

            (…)

Por que vós consentis assim impunemente

Aviltar a nação com jugo prepotente

Dos vossos cortesãos, ministros e fascistas,

Democratas que são no fundo monarquistas,

Hipócritas, sandeus, bandidos, argentários,

Palhaços e ladrões, fidalgos, mercenários

Infames histriões, curvados abissínios,

Que vem das podridões e dos esterquilínios?

            (…)

Para salvar da Pátria a triste ruinaria

Das ondas colossais da velha oligarquia

É preciso titãs, preciso é, lutadores…

Abaixo a Ditadura! Abaixo os Ditadores!

Para longe de nós os triviais mandões,

Que vendem com desplante as terras das Missões

Por um punhado d’ouro aos monstros do egoísmo!…

Para longe da Pátria os corvos do cinismo,

As hostes da desonra, as hostes assassinas,

Que vivem de explorar tesouros nas ruínas!…

Preciso é reagir, preciso é dar batalha,

Contra o velho terror da grande e vil gentalha,

Que tem mil europeus, palácios e festins,

Como os grandes pachás e os nobres mandarins,

Que traz gravata branca e luvas de pelica

E tem ostentações de messalina rica…

            (…)

A miséria, o terror, a fraude e a corrupção!

Fermentam no Brasil grande Revolução!

 

A Cruzada. São Luiz do Maranhão, Ano II, nº 211, 26 de junho de 1891)

 

 

SOSÍGENES COSTA (1901-1968)

 

Foi preciso que transcorressem nove anos de sua morte e quase vinte da edição única em vida de seu livro Obra Poética (Rio de Janeiro: Leitura, 1959), pela qual recebeu o Prêmio Jabuti, em1960, para que se viesse situar esse grande poeta grapiúna, conforme feliz observação de Jorge Amado, “no lugar que lhe compete na lírica brasileira”, fazendo desembocar a sua obra no reconhecimento da crítica e história literárias. E, por fim, tudo se daria num galope, quase frenético. Pelas mãos do paulista José Paulo Paes, em 1977, a editora Cultrix publica Pavão, Parlenda, Paraíso, com penetrante análise crítica e pequena antologia do poeta nascido em Belmonte (BA). Logo em seguida, pela mesma editora, em 1978, Paes reedita a Obra Poética ampliada, completando-se a faina de sua inserção, com a edição de Iararana (São Paulo: Cultrix, 1979), a epopeia cabocla do cacau, em que, submetendo esta consagrada forma poética “aos signos dessacralizadores da paródia”, segundo Cid Seixas, o poeta vai além dos inventos pioneiros de Mário de Andrade, em Macunaíma, ou de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, justamente por sua patente “rebeldia diferencial”. (SEIXAS, 2004)

Essa longa imersão na indiferença da crítica e, praticamente hoje, nas geleiras do esquecimento, em muito, se deveu e se deve ao temperamento enormemente retraído do belmontino, que viveu em Ilhéus, onde fixou residência em 1926, para ocupar a função de telegrafista dos Correios e, depois, de secretário da Associação Comercial de Ilhéus, quase sem ser percebido, até mudar-se para o Rio de Janeiro, aposentado, em 1954. Com a fama de “arredio, pedante e asceta”, fazia supor houvesse “erguido ao seu redor um muro de discrição e silêncio”, segundo observou Hélio Pólvora, para concluir: “Além de proteger-se contra contaminações maldosas da ambiência, tinha necessidade de solidão para criar” (PÓLVORA, 2001).

Talvez por ter preferido viver em Ilhéus, praticamente isolado, garante Jorge Amado, a militância de Sosígenes Costa limitou a sua participação na Academia dos Rebeldes aos dois últimos anos da década de 1920 e ao início da década de 1930, mas, pela sua qualidade de poeta, era dele que se valiam os outros amigos Rebeldes, nas emulações da época, para enfrentar a constelação de nomes que fulguravam nos outros dois grupos concorrentes (Samba e Arco & Flexa), como Godofredo Filho, Carvalho Filho e Hélio Simões, opondo-lhes “sua poesia original, suntuosa, bela, capitosa, como vinho generoso” (AMADO, 1992), que, por mais incrível que possa parecer, está hoje praticamente esquecida, embora ultimamente tenham sido publicadas duas antologias de poemas seus, ambas organizadas pelo escritor Aleilton Fonseca: a primeira, pela Global Editora, de São Paulo; a outra, pela Academia de Letras da Bahia, em convênio com a Assembleia Legislativa da Bahia (2017). Sosígenes Costa morreu no Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1968, faltando cinco dias para completar 67 anos de idade. Merecia viver muito mais.

 

 

“Um dos melhores poetas do norte do país é Sosígenes Costa. Solteirão, esquisito. (,,,) Está no mundo com um ar de pernalta pensante. Funcionário dos Telégrafos e escriturário de uma associação comercial, desforra-se dos seus magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de pedrarias e sedas, como raros dos seus confrades se permitem. Na imaginação desse asceta há sempre um pecaminoso rumor de saias proibidas. (…) Vinga-se do seu isolamento e da sua imobilidade em visões como as não tiveram Sardanapalo e Sindbad, o Marítimo. Recorda sempre os belos dias que passou em Belmonte e fala dessa cidadezinha do interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as gambiarras, fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as decorações florais. (…) Modernista, ainda crê na rima rica e um excesso de luz que lhe torna certas passagens obscuras, numa espécie de névoa de ouro. Esse filho da roça pensa nas Vênus de Paris e alude constantemente a pavões e castelos. (...) Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pagem da Musa e príncipe da Morte’, mas é um panteísta bem vivo ao inebriar-se na gama de amarelos do sol dos trópicos. Sua amada tem ‘trinta anéis de pérolas ovais’, mas o seu noturno de Ilhéus a ‘descrição’, é algo de bem contemporâneo”".

(Agripino Grieco (1888-1973), trechos, em transcrição de Gilfrancisco Santos).

 

 

SEIS SONETOS PAVÔNICOS, DE SOSÍGENES COSTA

 

O PRIMEIRO SONETO PAVÔNICO

Foge a tarde entre o bando de gazelas.
A noite agora vem do precipício.
Sóis poentes, douradas aquarelas!
Mirabolantes fogos de artifício!

Maravilhado assisto das janelas.
Os coqueiros, pavões de um rei fictício,
abrem as caudas verdes e amarelas,
ante da tarde o rútilo suplício.

Cai uma chuva de oiro sobre os cravos.
O grifo sai do mar com a lua cheia
e as pombas choram pelos pombos bravos.

Um suspiro de amor do peito arranco.
A luz desmaia. E o céu todo se arreia
Em vez de estrela de narciso branco.

(1923)

 

TORNOU-ME O PÔR DO SOL UM NOBRE ENTRE OS RAPAZES

Queima sândalo e incenso o poente amarelo,
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr do sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.

(1924)

 

CREPÚSCULO

Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões. Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor dourada agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente, mas a aurora.

 

(1926)

 

SONETO AO ANJO

Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.

Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.

Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.

Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.

(1930)

PAVÃO VERMELHO

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

(1937-1959)

PAVÃO AZUL

No jardim do castelo desse bruxo
d'asas d'ouro e olhos verdes de dragão,
tu és à beira de um lilás repuxo
um grande lírio de ouro e de açafrão.

Transformado em pavão por esse bruxo,
vivo te amando em tardes de verão,
dentre as rosas e os pássaros de luxo
do jardim desse bruxo castelão.

Tenho medo que um dia o jardineiro…
Mas nunca, estou bem certo, do canteiro
há de colher-te, ó minha flor taful.

Porque ele sabe que em manhã serena,
não suportando a ausência da açucena,
há de morrer esse pavão azul.

(s/ data)

 

CRIAÇÕES OUTRAS DE SG AINDA ADOLESCENTE

 

GARÇAS

 

Como um bando de preces japonesas

Que se desatam sob o céu de Nikko,

Garças em flor, de maravilhas presas,

Fogem pr´a as brotas do capuz de um pico.

 

Agora tudo é lindo! Que belezas

As régias garças no bailado rico…

Plumas enconcham – pérolas retesas

Que tanto haurir… Daqui donde me fico.

 

E tão bailantes! Sobre o amor do musgo,

Com quem por causa delas sempre rusgo,

Sinto desejos de bailar assim…

 

Mas sou tão verme! É que do baile ao friso,

Pr´a se imitar as garças é preciso

Ter graça azul em um corpo de jasmim!

 

                        Belmonte, 1920

 

O CISNE

 

Na indolência de um deus, lá vem à gruta, ao lago

O cisne. O azul de golpe empalidece! Tudo

De pérolas quer ser e tudo fica mudo

Ante tanto brancor, brancor que aos golpes trago.

 

Agita a pluma, dobra o colo… é de veludo!

Põe frisos n´água e segue a machucar (que estrago!)

Um nenúfar… Entanto, a linfa o espelho mago,

Sem se importar da flor que se quebrou. Estudo

 

Agora o cisne e quanto é o branco vejo esteta.

No cisne o branco é tudo. O cisne mais parece

O amor da estrela, o amor do alvor, o alvor da prece!

 

Nisso… Ele canta… E após deixar almas de poeta

Em cada som que tange, o cisne morre… Parte,

- O cisne, taça branca em que bebe a arte.

 

                        Belmonte, 1920

 

MINÚSCULO

 

Na mesa onde costumo fazer versos,

Acha-se um vaso de um valor venusto,

Um vaso pequenino, um nada, um susto,

Que encho de trevos e jasmins dispersos.

 

É uma graça vê-lo como um busto,

Trazendo tão pequenino os universos

Dos bons miosótis em paixões dispersos

- Tantas corolas que se apruma de custo.

 

Inda outro dia me deram três rosas:

Vermelhas, sanguejantes, amorosas,

Que nele pus num salto com meiguice.

 

E toda gente que chegou me disse:

- Não parece esse vaso um loiro anão

Que não pudesse com o próprio coração?!

 

                        Belmonte, 1920

 

CONTEMPLAÇÃO

 

Eu só imenso… O vulto em bronze… O braço aberto

Contemplo como esfinge a festa das estrelas!

O azul sacode a luz… E eu todo me desperto

Pras convulsões brutais da arte… A arte! Pelas

 

Frondes a brisa rola… Há pirilampos n´alma…

A rosa que ergo à boca aperto-a… Dando ais.

Aperto-a… E é tanta luz e tanta, tanta calma

Que eu penso: Vou p´ra o azul e não volto mais.

 

O zéfiro me lambe… E beijos é o que eu sinto,

Sinto beijar-me a estrela e beijo a estrela e beijo,

E beijo mesmo o céu… Oh! Crede, não vos minto.

 

Sinto-me estátua e a gente, a gente que não vejo

Ao ver-me assim murmura: Um vesano, um pateta!

E a natureza diz: Meu filho, meu poeta!

                                                                                   Belmonte, 1920

INGAUHYRA*

 

A casa velha arruinada. Em ente,

A horta plantada de pimenta e rosas.

Os bois comendo as ervas perfumadas.

Ao fundo o rico cacaual da gente.

 

O pasto. As laranjeiras. Lentamente

Evoco tudo, oh musa! Como rosas!

O cocho com cacau passando rente

 porta. E a noite, que nebulosas!

 

Os cascos das galinhas no terreiro.

O porco. E o rio? E a côncava canoa

Onde a gente brincava o dia inteiro?

 

Recordo tudo na fazenda nossa…

E uma dor dentro d´alma me magoa.

Que saudade, meu Deus, de minha roça!

 

Belmonte, 13-07-1921

*Ingauhyra era o nome da fazenda dos pais de Sosígenes Costa: Innocêncio Ignácio da Costa e Brasília Marinho da Costa.

 

EPITÁFIO PARA O TÚMULO DE FANNY

 

Chorão que choras tão forte

Não chores que aqui estou.

Não faças chorar na morte

Quem na vida não chorou.

                        1920

OBSERVAÇÃO: os cinco últimos poemas foram colhidos no livro Sosígenes Costa – Cobra  de duas cabeças – Poesia e prosa encontradas e inéditas, publicado em 2011, pela editora Mondrongo (Ilhéus-BA), em celebração aos 110 anos do nascimento de Sosígenes Costa, em Belmonte-BA, fruto de pesquisa realizada por Herculano Assis, organização do editor e escritor Gustavo Felicíssimo, com apresentação de Heitor Brasileiro Filho e Jorge de Souza Araújo.

 

 

JOSÉ BASTOS (1905-1937)

 

Quando em fins dos anos 1940, numa pacata Itabuna, inocentes alunos da primeira turma do Ginásio da Divina Providência, intrigados, perguntavam quem era aquele que dava nome à Praça José Bastos, ali pertinho, ouviam dos mais velhos tratar-se de um poeta que, morto cerca de dez anos antes, cantara em seus versos a cidade e o seu Rio Cachoeira.

Depois de interromper o aprendizado das primeiras letras na cidade onde nascera, José Bastos torna-se precocemente arrimo de família, com a morte do pai, em 1918, vendo-se obrigado a empregar-se em uma livraria, onde a curiosidade e o contato com os livros lhe despertam o interesse pela literatura, principalmente pela poesia parnasiana.

Publica seu primeiro soneto, “Náiade exilada”, em 1924, no jornal O Intransigente, seguindo para Salvador, onde conclui o curso secundário. Retorna a Itabuna em 1927 e ingressa no jornalismo, começando a trabalhar no jornal A Época, então propriedade de Gileno Amado, advogado e já um dos coronéis do cacau e prestigioso chefe político local; lá, publica a maior parte de sua poesia.

Já integrante do movimento desencadeado pela Academia dos Rebeldes, figurando mesmo entre os colaboradores do único número da revista Meridiano e, depois, de O Momento, em 1930, José Bastos publica em Salvador seu único livro Horas Líricas – depois reeditado, por ocasião do cinquentenário de Itabuna: Tipografia D´Agenciadora, 1960.

“Com esse livro em mãos, o poeta foi para o Rio de Janeiro, onde pretendia inserir-se na vida cultural da antiga capital do país, não conseguindo seu intento. Melancólico e doente, vítima da tuberculose, ateia fogo em toda a sua produção ainda inédita, em verso e prosa, da qual apenas do título se tem notícia: Terra Verde”. Dessa forma, o estudioso de literatura e poeta Gustavo Felicíssimo registra esse triste momento da biografia de José Bastos, cuja poesia, para ele, “não é outra, senão o reflexo de um rigoroso senso estético, quanto a linguagem e estrutura, não variando muito quanto à forma (o soneto), fruto de uma escola parnasiana, da qual Olavo Bilac foi, no Brasil, seu artífice mais talentoso”, e, sem dúvida, seu espelho.

Versejou, com decência e equilíbrio, temas da natureza, como também mitológicos, e morreu parnasiano, como sempre fora. “É perceptível que o atendimento rigoroso e brutal ao cânone do seu tempo tornou a poesia de José Bastos um tanto engessada, porém é claro que suas virtudes, como poeta, superam, em muito, qualquer crítica destrutível que sobre sua obra seja lançada” (FELICÍSSIMO, 2010).

 

 

ITABUNA

 

José Bastos

 

Minha terra natal! Que te abrasas e inundas

De tanto sol! Assim, entre agrestes verdores

Do Cachoeira escutando os bravios rumores

Como a iara gentil dessas águas profundas!

 

Quantas poesias tens nas árvores jucundas

Que te cercam além! Nas casas multicores,

Que se alteiam brilhando, entre ramos e flores,

E enchem de encanto e vida estas plagas fecundas!

 

Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso

De um dia ter nascido em teu seio faustoso,

Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!

 

De me haver embalado à cantiga e ao gemido

Do Cachoeira, que rola a água profunda e clara,

Escumando aos teus pés como um jaguar ferido!

 

 

JOÃO CORDEIRO (1905-1938)

 

 

Autor de um único livro, o romance Corja (Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934), cujo título original deveria ser Boca Suja, inopinadamente mudado por não agradar ao editor, João de Castro Cordeiro foi um dos fundadores da Academia dos Rebeldes e tão assíduo colaborador das duas revistas editadas pela irrequieta confraria, Meridiano e O Momento, que Jorge Amado chegou ao ponto de considerá-lo seu presidente honorário, pelo fato de, sendo ele o único do grupo a ter emprego público remunerado, socorrer os sempre necessitados amigos com empréstimos para suas esbórnias.

Nascido em Salvador, oriundo de família estável de classe média, morreu com apenas 33 anos de idade, sem que haja registro formal de causa que o levara a findar-se tão cedo. Logo que lançado, Corja obteve críticas positivas, tais como as das lentes perspicazes e ácidas de Agripino Grieco, que destacou o realismo da narrativa centrada num cenário popular de ruas e becos baianos, noitadas boêmias e cenas de botecos, que o autor, segundo ele, soube deter “em instantâneos vivazes, colhendo no voo notas típicas de algumas vidas prosaicas ou inquietas”, com toques de sátira à presença de figuras da política e do clero.

A história gira em torno da vida airada e boêmia do personagem Policarpo Praxedes, por meio do qual João Cordeiro oferecia, segundo Edison Carneiro, outro de seus críticos, “a visão exata, e por isso mesmo cruel, da humanidade que se definha nas salgadeiras, nos trapiches, nos armazéns das docas, para pagar com seu suor as amantes, as bebedeiras e os palácios capitalistas”.

Autor da apresentação do romance, Jorge Amado relata que, muitos anos depois, quando presidente do Instituto Nacional do Livro, Herberto Salles cogitou reeditar Corja, inclusive devolvendo-lhe o título original preferido de João Cordeiro, Boca Suja, mas rejeitado pelo editor; porém, defrontou-se com um obstáculo que tem sido a infelicidade de muitos espólios literários e artísticos. Segundo Amado, “os herdeiros, vagos herdeiros, a viúva morrera e não houvera filhos, se assanharam, acreditando que a edição significaria incalculável soma de dinheiro, fortuna em direitos autorais; impossível tratar com eles, a boa ideia de Herberto não se concretizou”. (AMADO, 1992)

Em 1939, criou-se no Rio de Janeiro um Prêmio João Cordeiro, para conceder láurea à melhor estreia literária do ano, cabendo-o na ocasião ao romance Cangerão, do escritor Emil Farhat, que teve como concorrentes Vila de Santa Luzia, romance de fabulação centrada em costumes nordestinos, do jornalista Omer Mont'Alegre, que anos depois exerceria o cargo de redator-chefe do Jornal do Brasil, e Tinha anos sem paisagem, este romance da autoria de Guilherme Figueiredo, também poeta e conceituado tradutor.

 

“João Cordeiro me faz recordar a fase mais interessante da minha vida. Nós éramos uns garotos e fazíamos, sob as ordens de Pinheiro Viegas, a parte de pasquim da literatura baiana. Tínhamos uma Academia dos Rebeldes, que amávamos, apesar de todo o ridículo que a cobria. Tentamos fazer o saneamento intelectual da boa terra”. (AMADO, apud SANTOS, 2001).

“O lado baiano do romance, com o aspecto popular de ruas e becos, noitadas boemias e cenas de tascas, soube o autor detê-lo em instantâneos vivazes, colhendo no voo as notas típicas de algumas vidas prosaicas ou inquietas. Sente-se o pendor para desfigurar satiricamente as personagens da política ou do clero, que evidentemente detesta, mas a morte de Luciano, o noctâmbulo que tem o nome do belo herói de Balzac, emociona os leitores, dando ao volume um bocado de poesia azul, que o Sr. João Cordeiro, envergonhado talvez dos seus cinco minutos de romantismo, se apressa em desfazer, pondo a amante do morto as velas com um sucesso imbecil”.

(Agripino Grieco, in O Jornal. Rio de Janeiro 26 de agosto, 1934, segundo Gilfrancisco Santos).

 

ALVES RIBEIRO (1909-1978)

 

Espírito forjado em terras de sertão profundo, no então município de Camisão, hoje Ipirá, filho de agricultor, depois modesto pecuarista, caçula da família, José Alves Ribeiro aprendeu a ler sem frequentar escola, sendo, desde criança, um esforçado ajudante do pai no serviço de plantio e colheita de cereais, mas aproveitou bem uma viagem a Salvador, ao ser deixado com um tio, cuja casa possuía uma biblioteca, que lhe despertou o interesse por literatura, permitindo-lhe o contato com livros de que nunca ouvira falar. Concluiu os cursos secundário e ginasial e candidatou-se ao vestibular, ingressando na Faculdade Livre de Direito em 1931.

Diplomado, exerceu várias atividades, além da advocacia: professor de Criminologia na Faculdade de Filosofia, por fim ingressando na Justiça do Trabalho, onde faria carreira de competente juiz da 5ª Região, cuja presidência ocupou por mais de uma vez. A atividade literária se inicia com a publicação de primeiros versos, crônicas e ensaios em jornais e revistas, inclusive em Samba – Mensário Moderno de Letras, Artes e Pensamento, em 1928, revista editada pelo grupo chamado Poetas da Baixinha, primeiro registro impresso do modernismo na Bahia, mas neste mesmo ano adere ao grupo de jovens da Academia dos Rebeldes, onde por seu ativismo se torna um dos nomes mais destacados, ao ponto de Jorge Amado, em artigo de 1976, no jornal A Tarde, referindo-se ao primeiro e único número da revista Meridiano, revelar ser de exclusiva autoria de Alves Ribeiro, embora não assinado, o editorial que “traçou os rumos de uma literatura de sentido universal porque plantada na realidade da vida brasileira”, no qual, enfatizava, “o ensaísta adolescente opunha aos modismos europeus que dirigiam os movimentos ditos modernistas (…) uma literatura de problemas, temas, forma e segmento brasileiro”, de onde resultava “sua expressão universal”. (AMADO, 1976)

Não obstante, aconteceria com Alves Ribeiro um fenômeno presente em muitas literaturas, a do artista literário (poeta, ficcionista ou ensaísta) que, atuante em tempos de juventude, de repente silencia, passando à condição de escritor secreto. Após os fecundos anos da Academia dos Rebeldes, só se disporia a publicar livros quase cinquenta anos depois, assim mesmo dois pequeníssimos volumes, Sonetos de Bendizer (Salvador: Gráfica da UFBA, 1975) e Sonetos de Maldizer (Salvador, idem, 1976). Deixou um inédito, A Cinza do Tédio, jamais publicado. Alves Ribeiro morreu em 27 de janeiro de 1978, mas não teve a sorte apregoada pelo inglês John Milton, de não deixarem as gerações humanas, que o sucederam, que esses mínimos livros (com 20 sonetos, o primeiro, e apenas dez, o segundo) caíssem no esquecimento. Demorou mais tempo do que o francês Paul Valéry (1871-1945), que, tendo publicado um livro em 1897 (Essai d´une conquête méthode), só veio ao prelo novamente em 1917, com seu La jeune parque).

 

 

TRÊ POEMAS DE ALVES RIBEIRO

 

 

TORTURAS DO CÉREBRO

 

Vai alta a noite. Velo. Erra o silêncio em torno.

Encerrado em meu quarto, à luz trêmula e baça

Da lâmpada, medito. Em derredor esvoaça

Feio inseto. Asfixia o ar à feição de um forno.

 

Tenho a cabeça zonza. E por mais tente e faça

Não consigo dormir. Paira em tudo um transtorno… 

Vejo paredes, no chão, no teto sem adorno

Vejo, como a acenar-me, o espectro da desgraça.

 

Pego e abro um livro, em vão. Não posso ler. É o tédio.

E debalde procuro encontrar um remédio

À dor atroz… O meu anseio não se acalma.

 

E continuo assim (pena que não se exprime)

A desejar a luz que o cérebro me anime

E sentindo pesar-me a noite dentro d'alma.

 

POEMA INSTANÂNEO

Rua Chile. Movimento.
Mlle. Futurismo passa…
Os olhos piscos de sagui numa febril agitação
toda trejeitos e fingimento,
sorri aos ditos da multidão.
Uma pieguice…
Um rodopio…
Uma pirueta…
Uma negaça…
As pernas – tal e qual um arco de violino
vão arrancando estranhas harmonias,
no seu passinho fino,
original.
A ronda dos elegantes,
junto às vitrines de quinquilharias,
o cinismo nos semblantes
mede-a com olhar sensual.
Uma negaça…
Uma pieguice…
Uma pirueta…
Um rodopio…
E ela segue, nervosa, bamboleante,
agitando o corpo esguio,
os olhos piscos de sagui arisco
por entre a multidão, até perder-se.

 

A LIÇÃO DO MAR

Poeta, si queres aprender o sentido da vida,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar.

Quando te sentires vencido pelo cansaço e pelo desânimo
para as grandes lutas do espírito,
e a terra te parecer inútil e pequenina para o teu sonho,
e os homens todos, uns vermes insignificantes,
- quando tiveres perdido, em suma, o gosto de viver, -
vai procurar o mar e mira-te em suas águas.
Ele é o símbolo do movimento, que não para, da vida, que não para.

Poeta, si queres ser grande e ser perfeito,
dá a teus versos o ritmo das ondas do mar.
Ele é a semente de toda criação,
é a própria fonte da vida,
porque toda vida vem do mar.

O mar é o grande mestre da vida:
a atração de suas moléculas
é o exemplo vivo da união e da força,
sem o que é impossível, na terra,
a conquista da felicidade entre todos os homens.

Por isso é que se compara a multidão ao mar.

Poeta, se queres aprender o sentido da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar
(e os poetas sempre foram os grandes precursores da liberdade,
porque aprenderam a cantar inspirados na música do mar
que é a música da liberdade).

O mar é o princípio da libertação:
de sua contemplação é que nasceu o sonho dos primeiros navegantes e
[dos primeiros revoltados
em busca de novos mundos e de novas formas de vida,
em que os homens pudessem ser mais felizes sobre a terra.

Poeta, si queres aprender o sentido da vida e da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar.

Aracaju. Época, Ano I. nº 2, out/nov. 1948.

 

 

DA COSTA ANDRADE (1906-1974)

 

Um dos nomes que tiveram o privilégio de figurar no primeiro e único número da revista Meridiano (setembro de 1929), José Severiano da Costa Andrade é um piauiense que veio para a Bahia no intuito de estudar e se formar. Foi mais político que homem de Letras, tanto assim que, logo se diplomou em Direito, regressou a Simplício Mendes, sua terra natal, para ser promotor público em Floriano (PI). Ocupou cargos na administração pública, ingressou na política, elegendo-se consecutivamente, por três legislaturas, deputado estadual e, logo, para prefeito da mesma Simplício Mendes, em 1936, quando se casou, para ser pai de dez filhos.

O pesquisador Gilfrancisco Santos completa o perfil de Da Costa Andrade.

“O político: deputado estadual (1955-1959), foi líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN), e, atuante deputado que era, apresentou vários projetos nas áreas sociais, sempre beneficiando o trabalhador rural e em especial os palheiros”. Na área educacional, criou novas escolas, além da criação de vários municípios. Fundou, em 1958, o Partido Republicano – Seção do Piauí. Com a fundação de Brasília, foi nomeado chefe do escritório da Novacap (designação da nova capital do Brasil quando da sua inauguração, em 1960), em Recife, transferindo-se posteriormente com a família para a capital federal, para chefiar o gabinete do ministro da Educação e Cultura Clóvis Salgado. Da Costa Andrade foi um dos principais líderes da sua geração, considerado intelectual de alto nível e poeta de elevada estatura, ao ponto de impressionar, desde os primeiros contatos, o amigo Jorge Amado, que nele se inspirou, para talhar personagens de seus romances. Da Costa Andrade é o Ricardo Braz, de O País do Carnaval, editado em 1931, que marcaria a estreia literária de Jorge Amado”. (SANTOS, 2001)

Destaca-se na área sociocultural como fundador de duas entidades no Piauí: o Cenáculo de Letras, que publicava o periódico A Revista, e a Associação Piauiense de Imprensa.

Como poeta, embora tenha vencido concurso promovido pela revista O Século, em 1927, com um soneto, publicou apenas um livro, Rosal da Vida (Salvador, 1929), posteriormente inserido em publicação organizada e prefaciada por Jorge Amado, Rosal da Vida e Outros Poemas (Teresina: coedição de órgãos públicos, 1996), vinte dois anos após sua morte em Brasília.

 

N O I T E

 

Da Costa Andrade

 

Vejo o crepúsculo distender-se, lento,
como um negro lençol, pela cidade…
É noite: — geme e turbilhona o vento
enquanto eu cismo, em minha soledade…

 

Só nesta hora vêm-me ao pensamento
os quadros de perdida e tenra idade…

Pensar na vida é rude sofrimento,
é aguçar os espinhos da saudade!

 

Um sino dobra, além, triste e pausado;
e o coração de quem sofrendo vive,
pulsa de dor, saudoso e amargurado…

 

Ó Deus! com o teu poder, por caridade,
dá-me de novo bens que outrora tive,

— Faz-me voltar à minha tenra idade!

 

 

OSWALDO DIAS DA COSTA (1907-1979)

 

 

As dificuldades com que no curso de Humanidades do Colégio da Bahia se defrontava, no estudo da Matemática e cálculos de álgebra, podem ter sido o motivo do ingresso de Dias da Costa na Academia dos Rebeldes, em 1929, porém jamais com propósitos essencialmente literários; tinha outros interesses. Ao referir-se a ele, muitos anos depois, chamando-o de “o meu compadre Oswaldo, em tantas circunstâncias meu irmão”, Jorge Amado conta que começou a frequentar o Bar Brunswick, ponto de encontro dos Rebeldes, em Salvador, oferecendo-se como coletor de anúncios em cidades do Recôncavo, onde alardeava ter influências, para o primeiro e único número da revista Meridiano.

Jovem e desempregado, baixo, mas elegante e simpático, confiava na boa acolhida de seus préstimos. Lembra Jorge Amado que, em um fim de tarde, tendo-se sentado à mesa, “entrou direto na conversa maligna”, cheio de sotaques. Ao final, logo que ele saíra, anunciando retornar no dia seguinte, perguntaram a Pinheiro Viegas, que já o conhecia de outras trajetórias, qual a sua opinião sobre Dias da Costa, após o que ele expusera, ao que responde o ferino epigramista: “Para literato, ótimo; para agenciador de anúncios, nulo”. (AMADO, 1992)

Embora sem os prometidos anúncios, a revista circulou com virulento artigo de Dias da Costa contra o parnasianismo que fazia a festa dos poetas de então, tornando-se ele um dos mais destacados, ativos e eficientes membros da confraria, até depois nas atividades de pregação de ideias e combate ao ambiente conservador, ao ponto de Jorge Amado, já de muito vivendo no Rio de Janeiro, convidá-lo, em 1936, para substituí-lo no posto que ocupava na Livraria José Olympio, editora. Daí em diante, morando no Rio, passa a exercer atividades de jornalismo, como redator de agências telegráficas, jornais e revistas.

Como literato, escreveu dois romances, Canção do Beco (São Paulo: Rumo, 1939) e Mirante dos Aflitos (São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, com apresentação de Jorge Amado) e Estórias do Mirante dos Aflitos, uma publicação post-mortem (São Paulo: GRD/Instituto Nacional do Livro, 1980), ao que se supõe no tempo em que o escritor Herberto Salles esteve à frente do INL.

Fora disso, escreveu em colaboração com Jorge Amado e Edison Carneiro o romance intitulado Lenita que, lançado em 1931 por um editor do Rio, resultaria em completo fiasco e logo renegado pelos três. Peripécia adolescente que Jorge assim recorda jocosamente em Navegação de Cabotagem (1992): “Livrinho com todos os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três”. Amado lembra também o “tempo antigo, boêmio e debochado”, de Academia dos Rebeldes, em que ambos, ele e Dias da Costa, costumavam passar uma semana inteira hospedados em bordéis com prostitutas, que consideravam suas “namoradas, xodós, como se dizia”, à época. (AMADO, 1992)

 

OCTÁVIO MOURA (1909-1978)

Um dos redatores do único número da revista O Meridiano, mas também com firmes relações de amizade com alguns dos mais destacados membros da Academia dos Rebeldes, como Jorge Amado, Sosígenes Costa, José Bastos e o mentor de todos, Pinheiro Viegas, Octávio Moura Dias de Almeida deixaria Salvador, na mesma ocasião, para se instalar em Ilhéus, onde assumirá o cargo de redator-chefe do jornal Diário da Tarde, que concomitantemente se fundara em 1928, no qual, graças a seu descortino para com desdobramentos da modernidade, revolucionará o estilo de jornalismo então praticado no efervescente sul cacaueiro, de caráter agressivo, fomentado por acirradas disputas políticas e patrimoniais travadas entre coronéis do cacau.

Tinha 18 anos, quando assumiu o cargo, acompanhado de quatro gráficos que, com ele vieram de Salvador em um navio da “Bahiana”, três deles compositores e um impressor. E lá, em acanhado prédio da Rua Marquês de Paranaguá, curvado sobre a escrivaninha, redigindo, lendo e apurando textos, ou indo e vindo no contato com as oficinas, para levar textos que ele próprio redigia, fossem notícias, sueltos ou editoriais, e oferecer orientações ao setor gráfico. O primeiro número do Diário da Tarde, em 10 de fevereiro de 1928, já trazia seu nome como redator, para logo em seguida passar a redator-chefe e, finalmente, diretor. Octávio Moura desempenhou essas funções por 45 anos ininterruptos, só se afastando das responsabilidades do cargo e do jornal quando a saúde não mais o permitiu.

Reconhecido como jornalista nato, no tempo em que esteve à frente do Diário da Tarde, procurou imprimir à atividade do jornalismo um caráter de serviço voltado para o aperfeiçoamento da sociedade, mesmo ante as limitações que costumavam injuriar a vida dos habitantes de cidades do interior, embora o comércio exportador do cacau incutisse nos ilheenses aspirações de tinturas cosmopolitas e de incremento à cultura, apoiando as criações de prosa e poesia e, assim, contribuindo para tornar Ilhéus o mais expressivo polo cultural da Bahia, depois de Salvador.

Muito disso se deveu à mente arejada e ao dinamismo de Octávio Moura, conforme atesta em depoimento ao Jornal da Manhã (1978) Rubens Esteves Silva, que o viu chegar a Ilhéus, numa manhã de janeiro de 1928, e seria testemunha de como “o novo diretor comandou a folha com brilho invulgar por muitos anos, até quando surgiram indícios da doença e com ela começou a desaparecer aquela vivacidade e ânimo, tão apreciados pelos ilheenses”.

Além de jornalista, foi membro da Academia de Letras de Ilhéus (Cadeira nº 24), junto a outros dois de seus amigos Rebeldes, Jorge Amado e Sosígenes Costa; professor da Escola Técnica de Comércio de Ilhéus e, por fim, dá nome ao troféu que o Clube de Diretores Lojistas (CDL) confere anualmente à Imprensa ilheense. Entre cargos públicos, Octávio Moura exerceu o de adjunto de promotor público na Comarca de Ilhéus e o de inspetor seccional do Ministério da Educação. A ele, devo a publicação de meus primeiros afoitos poemas no Diário da Tarde, em Ilhéus. Pelas mãos gentis e compreensivas, dele publiquei poemas de minha lavra ainda adolescente e estudante colegial, no jornal que dirigia, pelos anos de 1951 e 1952.

“Meus amigos de Ilhéus mandaram um tinteiro de prata, com um cacau dourado, como recordação das conferências que ali fiz em novembro de 1934. Ponho tinta nesse tinteiro e a primeira coisa que me apetece é escrever um artigo sobre essas generosas criaturas do sul da Bahia. Começaria pelo jornalista Octávio Moura, tem um ar de menino e já é chefe de família. Pelo físico, parece ninguém e, entanto, subscreve artigos ótimos. Fiem-se nele, na sua cabeleira e nas doçuras de violinista cigano com que fala as lindas raparigas! É um articulista que consegue infundir paixão nas ideias e a alegria de moço, longe de prejudicá-lo, muito concorre para robustecer-lhe o bom senso de polemista. Quando necessário, sabe ele também, nos seus sarcasmos, ser um artista em venenos, fazendo passar mãos quartos de hora àqueles que detesta. Fino registrador sismográfico de tudo o que ocorre de interessante em Ilhéus, Octavio Moura, mau grado uns ares meio boêmios, organiza todo um jornal sozinho e quase sempre o organiza a primor”. (SANTOS, 2010).

Agripino Grieco, in O Jornal (coluna “Gente Amiga”); Rio de Janeiro, 10 de março de 1935, após uma visita a Ilhéus, em 1934, onde pronunciou conferências, a convite de Jorge Amado, e travou contato com intelectuais da Região do Cacau, segundo pesquisa de Gilfrancisco Santos.

 

 

GUILHERME DIAS GOMES (1912-1943)

 

Este é outro dos Rebeldes não nascidos na Bahia, desde que veio à luz em Natal, no Rio Grande do Norte, de pai baiano, engenheiro construtor de estradas, que chegou a trabalhar na tristemente famosa ferrovia Madeira-Mamoré, morto em 1925 em Salvador, onde Guilherme completou seus estudos e viria a se formar em Medicina em 1935, tornando-se em seguida médico do Exército, pelo que teve de fixar residência no Rio de Janeiro, onde viria a falecer ainda jovem, em 8 de outubro de 1943, de impaludismo, no Hospital Central do Exército.

Surpreendentemente, para a época, era um poliglota. Rebelde como ele, amigo e companheiro de tertúlias, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos, em depoimento, Édison Carneiro, garante ter sido ele “um dos poucos brasileiros que, na época, sabiam alemão na Bahia” e que, além disso, “sabia francês, inglês, espanhol, italiano e até se aventurou a estudar japonês e árabe”, acrescentando terem ambos até iniciado “um curso de nagô com Martiniano do Bonfim”.

Literariamente, dele pouco se sabe, além de colaborador da revista O Momento, entre 1931 e 1932. Após intenso trabalho de pesquisa, Gilfrancisco revelou faceta praticamente desconhecida de Guilherme Dias Gomes, a de ter publicado poemas de sua autoria, entre 1931 e 1933, nas revistas O Momento e Etc. e no jornal O Estado da Bahia. Não obstante, seu nome permanece como autor de um romance, até hoje misteriosamente inédito, intitulado Mercado Modelo, para cuja publicação não foram bastantes, ao que se supõe, o enorme prestígio, a fama e o admissível empenho do teatrólogo Dias Gomes (1922-1999), seu irmão mais moço e por ele muito admirado, tanto assim que, certa feita, chegou a confessar, referindo-se à sua vocação de escritor:

“Comecei a escrever para igualar-me a ele. Hoje, acho que fatalmente seria um escritor porque nunca descobri em mim aptidão para qualquer outra atividade. Mas as minhas primeiras experiências literárias foram determinadas pelo desejo de imitar meu irmão”. (SANTOS, 2021)

Em 1935, o amigo de confraria Édison Carneiro assim exprime o realismo da obra:

“O romance de Guilherme Dias Gomes, Mercado Modelo, fica limitado pelos muros da cidade. Explora a vida dos humildes, dos desprotegidos da sorte, tanto dos proletários, como a negra Brasilina, neta de escravos, quanto também do pequeno burguês que, em virtude das altas e baixas do capitalismo, como Belizário Portela, se proletarizou. E se sucedem, através do romance, as cenas de ternuras e de revolta, e a multidão dos tipos criados pelos antagonismos das classes sociais, - a cafetina, o coronel, a prostituta, o traidor do socialismo, o ladrão, o propagandista, o rebelde. São cenas pegadas ao vivo, com a marca registrada dos fatos diários. E, dominando tudo, está o Mercado Modelo, casarão infecto onde a gente mais heteróclita do mundo se acotovela na luta pela vida, vendendo, xingando, suando e alimentando o mesmo ódio sagrado pela classe exploradora”. (SANTOS, apud SOARES, 2012).

Em 1991, o caderno A Tarde Cultural publicou trechos desse inédito romance, por iniciativa do historiador Waldir Freitas de Oliveira, membro da Academia de Letras da Bahia, que obtivera uma cópia da obra fornecida pelo irmão do romancista, Dias Gomes, de que abaixo se oferece mostra, junto a alguns poemas, estes coligidos pelo pesquisador Gilfrancisco Santos.

 

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Excertos do romance inédito Mercado Modelo

 

Mercado. Rampa do peixe. Gente que se abalroa, grita, ajusta preços. Cheiro de maresia, suor, frutos sazonados, estrume, catinga e camarão fresco. O bojo dos saveiros carregados de melancias. Grandes chatas carregadas de moringues, uma lancha repleta de abacaxis. Uma floresta de mastros e de cordas, com bandeirolas alegres tremulando ao vento. A pequena distância, um “yacht”, todo branco e azul, imóvel sobre o espelho líquido da enseada. Junto ao cais, o sargaço e a salsugem de sempre, de mistura com cascas de laranja, tamancos velhos, peixes mortos, rebotalho das redes lançadas ao mar pelos pescadores. E, na rampa, o limo verde e escorregadio tornando o acesso difícil. Os peixeiros, junto ao cais, repartem os pescados cortando-o com o machado em grandes cepos de madeira, num espadanar de espinhas e escamas prateadas. Um grupo de marinheiros alemães procura em vão compreender o preço de umas laranjas. Na beira do cais, um caminhão carregando. Os tijolos vinham no bojo de um dos saveiros, jogados um por um.

 

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     Na sala de jantar, Mestre Júlio conversava cercado de ouvintes.

     É o que estou dizendo. Terno de Reis só naquele tempo. Hoje é anarquia. Umas modinhas muito sem graça. Uma tal de música americana muito mole, muito arrastada, cheia de love you.

Picou com o canivete o fumo para encher o cachimbo. Acendeu. Deu uma tragada para experimentar a permeabilidade do tubo. Cuspiu para o lado.

     Vocês estão vendo essa gente? No meu tempo era outra coisa. Gente boa e muito boa. E tudo muito bem ensaiado. Não era essa sujeira. A gente ia de casa em casa cantando, dançando. As moças vestiam aqueles vestidos bonitos de pastoras. Os rapazes, de branco, chapelão de palha enfeitado de flores. As mulatas com os panos-da-costa e os torços de seda. O zabumba na frente. Chegava assim numa casa, eta diabo!

Pôs o cachimbo no canto da boca, batendo com as mãos em concha enquanto cantava em surdina:

“Ô de casa nobre gente

escutai e ouvireis

lá da banda do Oriente

são chegados os três reis”

     Era um deus nos acuda. Todo mundo corria para a janela. A rapaziada boa aí continuava:

“Nessa noite tão ditosa

é bom que vós não durmais

porque tão alta ventura

não é justo que percais”

     Já a rua estava cheinha de gente que vinha admirar. As pastoras aí faziam o estribilho:

“Inda bem que há de vir

que somos de longe

queremos nos ir”

     E as menorizinhas cantavam:

“Ó senhor dono da casa

quer que vos diga quem é?

é um cravo de amaranto

com uma açucena ao pé”

     O dono da casa já estava todo contente de ser um cravo de amaranto. Estava já abre não abre a porta. E o coro repetia:

“Inda bem que há de vir

que somos de longe

queremos nos ir”

     Então, o pessoal todo cantava junto:

“Senhora dona da casa

mande entrar se faz favor

que do céu estão caindo

pinguinhos de água de flor”

     Não havia jeito. A porta se abria e a gente tinha de tudo. Vatapá. Moqueca. O diabo a quatorze. Hoje não se vê disso. As negras já nem querem usar pano-da-costa!

 

*****

 

     “A vida no Mercado nascia com a alvorada. Já antemanhã, antes do lusco-fusco, padeiros passavam, tiritando de frio, na faina da entrega. Guardas-noturnos se recolhiam cabeceando de sono. Motorneiros da Linha Circular iam para a primeira viagem. E o homem do pão, com o saco às costas e a toalha à cabeça, o português com o tabuleiro repleto de hortaliças, o pescador bronzeado com a rede ao ombro, a negra do mingau que se recolhia da venda noturna, eram vultos imprecisos ainda mergulhados na treva. Mas, pouco a pouco, esta se diluía em crepúsculo. O galo amiudava o canto. Um sino batia soturno, na Cidade Alta. Outro, cristalino, respondia ao longe. E as igrejas despertavam, numa orgia espantosa de sons. Guizalhantes, uns, outros, tristonhos. Uns gostosos, repicados, cantantes, como vindos de grandes cigarras aboletadas nas torres. Outros cavos, como um ressoar de passos em catacumbas antigas”.

 

*****

 

     “Só depois de muitos dias, Honório conseguiu trabalho como carregador num trapiche. Trabalho pesado. Duro, mesmo. Tinha de ficar de corpo nu porque não havia roupa que aguentasse. Os fardos que pegava às costas rasgavam tudo. E tinha que começar a qualquer hora, quando as embarcações aparecessem para descarregar. Sacas de açúcar, de cacau, de café. Rolos de arame farpado. Grandes tambores de gasolina. Tábuas, vigas, pranchões gigantescos. Os companheiros eram todos fortes como ele. Podia-se-lhes contar os músculos fortemente desenhados sobre a pele. Passavam gemendo, muitas vezes, sob o peso dos fardos. Alguns tinham o cabelo gasto ao centro da cabeça, pelo roçar dos volumes da carga.

Se uma embarcação atracava, tinham que descarregá-la ou enchê-la, sem perda de tempo. Lançava-se uma prancha entre a ponte do trapiche e o convés. E, cadencialmente, uns atrás dos outros, traziam na cabeça toda a carga do barco. Dentro do armazém enorme, cujas traves de aço se cruzavam no alto, sustentando o enorme telhado, tudo era lançado nas vagonetes e transportados pelos decauvilles.

O capataz, um francês gordo e vermelho, de roupa cáqui, lápis em punho tomava nota do número de volumes. Adiante, na sessão de pesagem, seu Severino, um velhote de óculos à ponta do nariz, conferia o peso na balança decimal e também tomava nota. Havia um cheiro próprio e indefinível sempre no ar. Cheiro que vinha dos rolos de corda, das latas de tinta, dos fardos de cacau, das sacas de açúcar. Mistura de óleo de peixe, café, breu, com o odor das madeiras de construção.

Às onze e meia, Amaro, um pernambucano taciturno e desconfiado, batia num pedaço de trilho pendurado fora, a hora do almoço. Cada um ia buscar sua lata. Um pouco de carne-do-sertão assada, pirão de água fria ou farinha, um pedaço de rapadura como sobremesa. O dinheiro não dava para luxos. Alguns mais gastadores esbanjavam-no comprando bagos de jaca ou bananas nas mulheres de tabuleiro que estacionavam perto”.

 

*****

     “Era a última das novenas da Conceição e a igreja tem a fachada resplandecente de luzes. Houve a preocupação de realçar todos os ornados de cantaria, da cruz ao chão, com lâmpadas elétricas. Dentro e fora do templo a melodia plangente das ladainhas forrada pelo acompanhamento macio do órgão.

Nelito, na porta, se põe na ponta do pé para descobrir Miúda, ajoelhada no último banco, ao lado de Judite. Faz esforço incrível para não pisar o aleijado que, no meio de tanta gente, se conserva sentado no batente. Sente o bafio pesado da multidão que se comprime de envolta com o cheiro bom do incenso. Senhoras gordas e pesadas, sem noção de espaço, insistem em penetrar na igreja puxando pela mão o marido e os filhos. Mocinhas de branco, trazendo, com ar seráfico, velas bentas, esgueiram-se pedindo pelo amor de Deus não lhe pisem os véus de filó branco. Crioulas, cinzentas de pó de arroz, com laços azuis de fita no pescoço e raminhos de manjericão metidos na carapinha cuidadosamente dividida em pequenas tranças, mesmo de pé desfiam fervorosamente terços sobre terços. Velhos homens do mar, tostados pelo sol que aquece as jangadas e os saveiros abertos, vestidos nos ternos de brim domingueiros, escutam, de chapéu na mão e olhos no altar. No interior, mergulhada na profusão de luzes, enrolada nas espirais de incenso, emoldurada nos ornatos brancos e ouro dos altares, ladeada de castiçais monstruosos de prata maciça e quase sufocada num oceano de flores alvíssimas de papel de seda, a imagem da Virgem destoa do ambiente luxuoso pela simplicidade quase humilde com que mostra nos braços o Jesus Menino”.

     “Regina angelorum!”, reza o padre.

     “Ora pro nobis”, soluça o coro plangente.

 

*****

     “Depois de encher na roça do seu Mário o balaio de laranjas-de-umbigo, espera o bagageiro que deve passar dentro em pouco e chega, efetivamente, superlotado. Martiniano acha meio de se agarrar na parte traseira, ajeita o balaio das laranjas como pode, por baixo do banco. Desfaz o torço que trazia à cabeça e com o pano limpa o suor. O bondinho segue a sua marcha entre o tilintar da campainha e as pagas do condutor, enfurecido pela dificuldade de cobrar as passagens.

Aliás, o taioba é sempre um bonde divertido e Martiniano pensa que a parte mais divertida do seu dia é quando viaja nele. Não há os tais três primeiros bancos onde não se pode fumar, não se exige gravata nem calçado. Não indo nu, tudo está bem. Pode acender o seu cachimbo, espichar o pé descalço doído de tanto caminhar, tirar seu cochilo ou dizer suas pilhérias, porque ninguém repara. E, depois, o taioba é quase um prolongamento ambulante do Mercado. Tudo que o Mercado tem o taioba também tem ou pode ter. Capoeiras de galinha, perus amarrados pelos pés, leitoinhas gordas e gritadeiras, e até cabras e carneiros viajavam nele. Caixotes enormes, balaios, malas de costura, móveis de toda espécie, uma balbúrdia dos pecados. Mas por isso mesmo a viagem era mais alegre.

     Ei, dona Maria. Vosmicê já pagou?

É o condutor, vermelho do esforço que faz para romper caminho, o quépi jogado para trás, as listas de sujeira aparecendo em toda a camisa e principalmente no colarinho e nos punhos. D. Maria (o diabo do condutor acertou o nome!) acha que é desaforo cobrar duas vezes e não responde. Vira o rosto num gesto malcriado.

Um molequinho viaja de graça no estribo, procurando não ser visto. O taioba chegou agora às Sete Portas e para, para tomar carga num armazém. É um volume grande e não se sabe como poderá caber no meio de tanta gente. O espanhol, dono do estabelecimento, está à porta, em mangas de camisa, cabelo lustroso de brilhantina.

      Qualé, seu Serafim!, desista que esse mondrongo não pode caber aqui.

     Tem que caber de qualquer jeito, meu santo.

     Mas como?

     Ora, muito simples. Vocês vão sentados em cima do volume e eu não cobro nada por isso.

     Quá!

E fez-se o que o espanhol queria. O gringo, afinal, era camarada.

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Cinco Poemas de Guilherme Dias Gomes

 

AVIÃO

O avião parece
Uma abelha rútila de aço
Aflita por pegar o sol,
Que é uma rosa de fogo
Transplantada no espaço.

Zumbe, trepida, na ânsia de alcançar
A corola de luz para sugar.

Avião!
Pareces bem o coração da gente
Lutando para beijar o sol
eternamente!
Inutilmente.


(Salvador. O Momento. Ano I, nº5, 15. nov. 1931).

 


POEMA DAS MÃOS

Há poemas inteiros no côncavo das mãos:
Na angústia milenar das falanges lendárias
pela ânsia de agarrar o mais puro e mais alto;
na palma aveludada das mãos que acariciam,
mãos de noiva…

Nas mãos gordas de bebê, leite e seda rodada
com pedaços de luz na carne perfumando;
na mão que anseia e na que renuncia,
há poemas de dor em versos de agonia.

Quanta angústia nas mãos descarnadas do mendigo
que morre à fome, exangue, nas estradas,
e o sol encontra em crispações nervosas,
no horror das últimas geadas!

E nas mãos negras do assassino,
pálidas, escorrendo
longos fios de sangue pelos dedos!

Quantos poemas
no prestígio das mãos esguias que dançam no teclado,
despetalando sons pelo silêncio:

Oh. O mágico fascínio das mãos longas
que bordam lentamente

no coração da gente.
a arabescada doida de belezas bizarras
com a lã policromia das nuvens do poente!

e quando
sentindo em si as desgraças alheias!
nas mãos do pobre, pelos dedos rolos.
deixais cair moedas a mancheias…

Mas vos adoro sobretudo, ó mãos!
nas crispações violentas dos gestos de revolta

(Salvador, Etc., Ano VII. nº 216, 15, Jul., 1933)


GARGALHADA

Solta do peito os Iguaçus do riso
cascateando em borbotões sonoros.
O próprio sol é um gargalhar de lua
e na acácia do jardim,
florida,
os mil milhões de flores
são mil milhões de gargalhadas d’oiro
num desperdício fantástico de vida!…

Traze sempre contigo, o sol de uma gargalhada
e um riso amigo para as misérias todas
e a sombra da tristeza fugirá da estrada,
quando gargalhares tua gargalhada,
numa alegria festiva! De bodas!

(Salvador, Etc., Ano VII nº 218. 15. ago. 1933).


O TEU POEMA

Quisera que este poema
fosse o teu poema.
Que tivesse perfumes esquisitos
estonteantes
das matas verdes da minha terra,
das noites de luar da minha terra.
Quisera que este fosse o teu poema,
Que eu fizesse com raios de sol
e braçadas de flores,
onde cantasse o hino das manhãs radiosas,
Onde todos os pássaros cantassem
e cantassem todos os cantares
as toadas macias da minha terra.
Quisera por nestes versos todos os diamantes
dos garimpos ignotos de minh’alma,
todos os instantes
felizes da minha vida
e oferecer de joelhos
a ti a Deusa dos cabelos revoltos
a minha Deusa.
Então
para bordar estes teus versos
faria viagens arrojadas
por países diversos,
gastaria somas fabulosas
na descoberta de minas inexploradas
de ouro puro.
Mergulhadores desceriam à procura de pérolas.
Caravanas vistosas
levariam meses trazendo todas as riquezas
todas as belezas,
que eu desejaria incrustar no teu poema.
Mas vejo que é inútil o meu esforço,
inútil a minha tortura
(a cidade do sonho tem ruas de amargura),
teu poema está condenado a não sair de mim mesmo,
a morrer na garganta
balbuciante
com a tristeza das flores que não desabrocharam
e dos versos que não foram ditos…

(Salvador. Etc., Ano VII, nº 219. 31.ago.1933).


A MINHA BAILARINA

Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que vejo em meio às gambiarras,
A tecer arabescos em passos lentos,
E leve, bem leve,
Me põe na vida por alguns momentos
A alegria inquieta das cigarras…

Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que sempre vejo em sonho, noite alta.
Olhos verdes de mar
Perdidos a cismar.
A refletir as luzes da ribalta…

 

 

CLÓVIS AMORIM (1912-1970)

 

 

Oriundo do Recôncavo baiano, de onde trazia as marcas dos canaviais, a inclinação para agradável convivência e o gosto pela boemia, poeta satírico e principalmente romancista, Clóvis Gonçalves Amorim foi um dos companheiros mais animados e queridos da Academia dos Rebeldes. Espírito brincalhão e cultor da boa conversa, era sempre aguardado com alegria e festa, quando de seus regressos da cidade de Santo Amaro da Purificação, onde nasceu, por um detalhe mais que hilário, tanto que veio a merecer registro satírico em versos de Jorge Amado: era quando trazia a mesada de 90 mil réis, fornecida pelo pai alambiqueiro, com os quais custeava as rodadas de bebida e acepipes no Bar Brunswick, obrigatório ponto de encontro dos Rebeldes.

O pesquisador Gilfrancisco Santos assim descreve o personagem: “Com quase dois metros de altura, Clóvis Amorim chegou a Salvador para cursar o ginásio, mas não conseguiu viver na capital baiana, pois a única coisa que o interessava era o jogo do bicho. Vivia das lembranças dos vícios do Recôncavo baiano: apreciador e apostador nas brigas de galo, se desmanchando nos sambas, cocos e chulas da Bahia”. (SANTOS, 2021)

Clóvis Amorim foi um ativo colaborador da revista O Momento e publicou os romances Alambique e Chão de Massapê, sendo que o primeiro em 1934 (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio); acolhido pela crítica, seria definido como obra enquadrada na estética do novo romance nordestino.

Em artigo no jornal A Bahia, no mesmo ano, o etnólogo Édison Carneiro, rebelde como ele, comentando o romance, dizia tratar-se de um “acontecimento estranho, surpreendente, na literatura nacional”, e explicitava o porquê: “Não há nele a luta do homem por modelar a natureza à sua vontade. Pelo contrário, há uma verdadeira apatia nos personagens desse drama – o da cachaça – até hoje desconhecido do Brasil. O verde dos canaviais, as máquinas de fabricação da boa-pra-tudo, a moleza da vida humana nessas regiões que o Progresso esqueceu, formam como que a única realidade viva que se agita no livro”. (SANTOS, 2021)

O segundo romance só sairia muitos anos depois, em conjunto com a reedição do primeiro por iniciativa do editor Gumercindo da Rocha Dórea, em convênio de sua editora com o Ministério da Educação e Cultura (São Paulo: GRD/MEC, 1980).

Quando faleceu em Salvador, em 18 de agosto de 1970, coube ao poeta e seu amigo Godofredo Filho pronunciar a oração fúnebre, perante os que compareceram ao velório de seu corpo na câmara ardente da capela do cemitério do Campo Santo, na qual afirmava: “Estou certo de que, quando se escrever, amanhã, a verdadeira história literária da Bahia, a figura de Clóvis Amorim como poeta satírico avultará, tal seu físico se agigantava em vida, sobre a planície cinzenta em que pululam tantos pigmeus de nossas letras”.

Abaixo, poemeto de recorte burlesco com que Jorge Amado celebrou, em edição de O Momento, a presença de Clóvis Amorim entre os companheiros Rebeldes: 

 

Mingau à meia-noite,

quando Clóvis Amorim

chegava, alto e destruidor,

de Santo Amaro,

com 90$000 no bolso

e a sua alegria boa. 

 

Foram Clóvis Amorim

e Souza Aguiar

os grandes corações

que trouxeram um pouco de ternura,

de lirismo,

à aridez de nossas vidas literárias

horrivelmente literárias.

 

https://www.destaquenoticias.com.br/guilherme-dias-gomes-um-rebelde-potiguar-na-bahia/?fbclid=IwAR16z3_-SxtsoXBR_A76K9e2XE9jyRDb3oni39r4diXtTaiXjSmT2zEU1zQ

 

ÉDISON CARNEIRO (1912-1972)

 

Depois de Jorge Amado, dentre todos que constituíam a grei da Academia dos Rebeldes, Édison de Sousa Carneiro foi o nome seguramente a alcançar maior amplitude de reconhecimento nacional, talvez por ser quem melhor traduziu a resposta do substrato negro-mestiço identificado com formas de representação da cultura popular, que se amoldavam ao pensamento estético propagado já como desdobramento da Semana de Arte Moderna, a partir de São Paulo.

Ainda aos dezesseis anos de idade, cedo começou a atuar em jornais e revistas locais, assinando artigos e crônicas, até chegar ao posto de redator-chefe de O Estado da Bahia. De origem modesta, pertencia a uma família que não lhe podia oferecer qualquer regalia. Com toques chistosos, Jorge Amado descreve esta condição do amigo Rebelde (1992): “O mais pobre de todos nós seria Édison Carneiro, membro de família numerosa. O pai, professor Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal ganhava para as despesas inadiáveis da prole, consta que jamais pagou o aluguel da casa dos Barris – nós a intitulamos de Brasil, por imensa e suja – com sótão e jardim onde vivia com a mulher e os filhos: todos vestidos com as batas de professores da Politécnica, arrebanhadas pelo catedrático”. AMADO, 1992) Entre os irmãos, estava Nelson Carneiro, futuro advogado e grande tribuno, deputado estadual e federal, e senador, autor da Lei do Divórcio, que chegaria a presidente do Senado, mas muito antes, mal se diplomara em Direito, em Salvador (1900), exerceu a profissão de advogado em Ilhéus, onde chegaria a prefeito, eleito em 1908.

Por efeito da descendência, cedo também Édison Carneiro não só se identificou, como se empolgou com os múltiplos aspectos sociais e místicos dos cultos populares de matriz africana, tornando-se um de seus maiores estudiosos e talvez o seu maior e mais dedicado defensor. Diplomado em Direito, em 1935, mudou-se em 1939 para o Rio de Janeiro, onde já chegou com a fama de competente etnólogo. Em Salvador, ainda como Rebelde, com Jorge Amado e Dias da Costa, lançou e liderou campanha em defesa da liberdade de culto do candomblé, alvo de feroz perseguição policial, com prisões, torturas e espancamentos.

“A polícia invadia os terreiros, quebrava, prendia, espancava. Era terrível. Os pais-de-santo não podiam fazer nada. Alguns políticos influentes tinham uma certa ligação com o candomblé, mas escondiam essa ligação. (…) O apoio dos políticos não era efetivo – davam dinheiro, ajudavam, mas na hora do pau comer, eles tiravam o corpo fora”, relata Jorge Amado, que creditava ao amigo a sua aproximação, interesse e respeito pelo culto do candomblé. Assegura que, ao aderir à luta nesses tempos amargos para os seguidores desses rituais assentados em sentimentos de humanismo plural, não iam aos terreiros “para arrancar informações e, sim, no sentido fraternal de conhecer, de participar, e sempre respeitando muito o lado sigiloso, secreto”. (AMADO, 1992)

Nessa linha participativa, Édison Carneiro funda em 1937 a União das Seitas Afro-Brasileiras, no fundo uma federação das casas de candomblé, fruto de seu trabalho como estudioso da cultura negra. Além de atuar em jornais e revistas da Bahia e do Rio de Janeiro, exerceu funções de redator de publicações do MEC (Ministério da Educação e Cultura) e de diretor da Campanha de Defesa do Folclore. Morreu em 3 de dezembro de 1972, como funcionário da Confederação Nacional da Indústria.

Literariamente, além de sua participação no fiasco editorial do romance juvenil Lenita, escrito juntamente com Jorge Amado e Dias da Costa e publicado em 1929, dele se conhece, assim mesmo por descoberta que se deve ao esforço do pesquisador baiano Gilfrancisco Santos, um conjunto de trinta poemas de construção irreverente, próxima da primeira fornada modernista, publicados sob a forma de folhetim em jornais, em 1928, sob o título de Musa Capenga. No restante, é autor de vasta e consagrada obra etnográfica e folclórica, cuja publicação se inicia com Religiões Negras. Notas de Etnografia (Rio: Civilização Brasileira, 1936), seguindo-se outras 19, entre as quais: Negros Bantus (Rio: Civilização Brasileira, 1937); Castro Alves – Ensaio e Compreensão (Rio: Livraria José Olympio, 1937); O Negro no Brasil (Rio: Civilização Brasileira, 1940); Quilombo de Palmares (São Paulo: Brasiliense, 1947); Candomblés da Bahia (Salvador: Museu do Estado, 1948); Antologia do Negro Brasileiro, 1950; A Insurreição Praieira (Rio: Conquista, 1961); Ladinos e Crioulos (Estudo sobre o Negro no Brasil) - Rio: Civilização Brasileira, 1964 (Apresentação de Manuel Diégues Júnior).

“Foi assim que a cidade da Bahia de Todos os Santos encontrou o seu grande poeta e o seu grande sociólogo. A imaginação o levou aos meios africanos, ao mistério das macumbas, à beleza dos candomblés. O desespero da época fez com que ele produzisse ensaios em vez de poemas. Agora sai seu primeiro livro: Religiões Negras. Apesar de primeiro livro, não é livro de estreante. Aos 24 anos, Édison Carneiro, mesmo sem livro, já era um grande nome.” (AMADO, apud SEIXAS, 2020)

 

 

EXTRATO DE POEMA DE ÉDISON CARNEIRO

 

Ah, negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[…]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial [?].

Vou ao Pau Miúdo
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.

 

 

JORGE AMADO (1912-2001)

 

Escritor brasileiro mais conhecido no exterior, traduzido em dezenas de idiomas, e um dos mais lidos do País, com mais de duas dezenas de livros publicados, Jorge Amado de Faria nasceu na Fazenda Auricídia, em Ferradas, então distrito de Itabuna, que dois anos antes se emancipara de Ilhéus, cidade onde por cerca de dois anos residiria, em solar construído pelo pai, João Amado de Faria, hoje sede da fundação cultural do município. Aos dez anos vai para Salvador estudar no Colégio Antônio Vieira, onde completa o curso secundário. Inaugura sua vocação literária, publicando três poemas na revista A Luva.

Em 1928, aos 16 anos, funda, em Salvador, com outros de quase a mesma idade, a Academia dos Rebeldes, misto de exercício de boemia e aspirações literárias sob influência da grande onda modernista, que poucos anos antes eclodira em São Paulo, tendo como mentor deles o jornalista panfletário Pinheiro Viegas. Escreve para a revista de único número, Meridiano, órgão de propagação das ideias do movimento. Em 1931, muda-se para o Rio de Janeiro, levando debaixo do braço os originais do seu primeiro romance, O País do Carnaval, com uma carta de Pinheiro Viegas recomendando-o ao já então influente crítico literário Agripino Grieco; aí, ingressa na Faculdade Nacional de Direito. Mas antes, ainda em Salvador, cometera estripulia literária, de que depois se arrependerá, representada pelo romance Lenita, escrito a seis mãos, juntamente com dois de seus amigos Rebeldes, cujo fiasco editorial ele próprio narraria, em tom de pilhéria.

“Dias da Costa, Édison Carneiro e eu, em 1929, escrevemos em colaboração um romance sob o título de El-Rey, publicado em folhetim em O Jornal, órgão da Aliança Liberal na Bahia. Um editor do Rio, A. Coelho Branco Filho – jamais esquecerei, pois foi o primeiro a colocar meu nome na capa de um livro, o primeiro a me ficar devendo direitos autorais –, lançou-o em volume em 1930, capa medonhosa, com o título de Lenita. Livrinho com todos os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. ´Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três´” (AMADO, 1992).

Por essa época, além de publicar o primeiro romance, aos dezenove anos, ingressa no Partido Comunista Brasileiro e mete-se, com Édison Carneiro e outros, em campanha pela defesa da liberdade religiosa, visando livrar de proibições e perseguições os cultos de origem africana, como o candomblé, postura que lhe consome anos de dedicação e luta. O segundo romance, bibliograficamente reconhecido, Cacau, sairia em 1933, ano em que se casa com a poeta Matilde Garcia Rosa. Segundo a crônica, o envolvimento político leva-o à prisão e ao exílio, tendo inclusive exemplares de sua obra, como o romance Capitães da Areia, queimados em praça pública pela ditadura Vargas.

Preso por várias vezes, a terceira ocorrida em 1942, recebeu beneplácito discricionário de cumprir a pena confinado em Salvador, onde trabalhou no jornal O Imparcial, então propriedade do coronel Franklin Lins de Albuquerque, senhor do São Francisco e pai de seu amigo e futuro escritor Wilson Lins. Em 1945, casa-se com Zélia Gattai e é eleito deputado federal por São Paulo, para compor uma histórica Assembleia Constituinte, em que figuravam altos representantes da inteligência e da cultura brasileira (entre outros, Afonso Arinos, Armando Fontes, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema, João e Otávio Mangabeira, Luiz Carlos Prestes, Luiz Viana Filho, Nestor Duarte, Plínio Salgado, Prado Kelly, Tarsilo Vieira de Melo), responsável pela alta configuração democrática da Constituição Federal de 1946, ao amparo da qual apresenta projeto de lei em favor da liberdade de culto religioso no país, mas logo depois tem o seu mandato cassado (1947), após ser o PCB lançado na ilegalidade. Segue então para a Europa, passando a residir em Paris e Praga, onde escreve O Mundo da Paz. Pelo conjunto da obra, em 1951, recebe o Prêmio Internacional Stálin, regressando ao Brasil em 1956. Elege-se, em 1961, para a Academia Brasileira de Letras e, dois anos depois, muda-se para Salvador, residindo em bucólica mansão construída nos Altos do Rio Vermelho, hoje museu.

Escreveu para diversos jornais e periódicos do Brasil, entre os quais O Jornal, O Estado da Bahia, O Imparcial, Boletim de Ariel, Dom Casmurro, Diretrizes, A Tarde, Última Hora, Para Todos, Folha da Manhã. A vasta e prolífera escritura de Jorge Amado, quase toda marcada pela crítica social e pelas mazelas e injustiças que oprimem o ser humano mundo afora, pode ser, aleatoriamente, distribuída por três vertentes: a telúrica, cujo cenário são a região do cacau, o Recôncavo e o sertão; a urbana, que tem como referência principal a cidade do Salvador, e a de conteúdo estritamente político e memorialístico.

No primeiro bloco, podem-se alinhar O País do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Terras do Sem-Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1945), Seara Vermelha (1946), Gabriela, cravo e canela (1958), Tieta do Agreste (1977), Tocaia Grande (1984). Do segundo, seriam: Jubiabá (1935), Mar Morto (1935), Capitães da Areia (1937), Bahia de Todos os Santos (1945), Os velhos marinheiros, que inclui a novela A morte e a morte de Quincas Berro D´água (1961), Os pastores da noite (1964), Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tenda dos Milagres, (1969), O sumiço da santa (1988), Tereza Batista cansada de guerra (1972), Farda, fardão, camisola de dormir (1979), A descoberta da América pelos turcos (1992). Enfim, integrariam o último grupo: ABC de Castro Alves (1941), O cavaleiro da esperança (1942), Amor de Castro Alves (1947), O Mundo da Paz (1951), Subterrâneos da Liberdade (I. Os Ásperos Tempos; II. Agonia da Noite; III. A Luz do Túnel, 1954); Navegação de Cabotagem (1992). E, como curiosidade, um de poesia: A Estrada do Mar, 1938.

Jorge Amado morreu em Salvador, em 6 de agosto de 2001, a quatro dias de completar 89 anos. A ligação ainda juvenil com a religião dos orixás fê-lo obá do candomblé Axé Opô Afonjá e, talvez por isso, como anota Alberto da Costa e Silva, “uma das últimas homenagens no seu velório tenha sido prestada por um grupo de mães de santo, que, vestidas inteiramente de branco, lhe encomendaram o corpo”. (SILVA, 2010)

Além de ser um autor de imensa popularidade, com uma obra fiel aos princípios do humanismo e quase toda associada à crítica social e à denúncia das injustiças, Jorge Amado foi também um extraordinário criador de figuras femininas em seus romances, mas, só em 2013, surge o alvissareiro anúncio de que lhe seriam abertas as portas dos estudos universitários, antes sempre a ele misteriosamente fechadas, a começar por São Paulo. Segue abaixo criação de sua raríssima lavra poética.


CANTAR DE AMIGO DE GABRIELA

Jorge Amado


Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Palácio real lhe dei
um trono de pedrarias
sapato bordado a ouro
esmeraldas e rubis
ametistas para os dedos
vestidos de diamantes
escravas para servi-la
um lugar no meu dossel
e a chamarei de Rainha.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Só desejava uma campina
colher as flores do mato.
Só desejava um espelho
de vidro, pra se mirar.
Só desejava do sol
calor, para bem viver.
Só desejava o luar
de prata, pra repousar.
Só desejava o amor
dos homens, pra bem amar.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

No baile real levei
A tua alegre menina
vestida de realeza
com princesas conversou
com doutores praticou
dançou a dança estrangeira
bebeu o vinho mais caro
mordeu uma fruta da Europa
entrou nos braços do Rei
Rainha mais verdadeira.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Manda-a de volta ao fogão
a seu quintal de goiabas
a seu dançar marinheiro
a seu vestido de chita
a suas verdes chinelas
a seu inocente pensar
a seu riso verdadeiro
a sua infância perdida
a seus suspiros no leito
a sua ânsia de amar.
Por que a queres mudar?

 

 

AYDANO DO COUTO FERRAZ (1914-1985)

 

 

Graças à sua vocação para o jornalismo, que exerceu por toda a vida, Aydano Pereira do Couto Ferraz foi um dos mais ativos membros da Academia dos Rebeldes, deixando, como marcas de sua participação no movimento modernista, coletâneas de ficção e poesia sobre o mar. Diplomado em Direito (1937), permaneceu em Salvador até 1939, quando se transferiu para o Rio de Janeiro e lá fixou residência. Exerceu funções de editor em O Jornal e de coordenador de Redação no Correio da Manhã.

Tanto na Bahia como no Rio, com Jorge Amado e Edison Carneiro, empenhou-se na luta em defesa da liberdade religiosa, atuando firmemente contra perseguições às práticas do candomblé. Na esfera pública, ocupou cargos de técnico em educação e de comunicação social, editando revistas do Ministério da Educação e Cultura. Como político, foi por muitos anos ativo dirigente do Partido Comunista Brasileiro.

Escritor e poeta, publicou ainda em Salvador Apicuns (Novelas Praieiras), em 1932, e Cânticos do Mar, em 1935, que receberam boa acolhida por parte da crítica. Como nutria visão utópica e humanista da vida e da sociedade, o mar, o amor, a esperança e a liberdade foram os temas prediletos de sua arte literária. Comentando o seu primeiro livro, o crítico Carlos Chiacchio reconheceu nele “um pintor de marinhas”, e ainda mais se revela um apaixonado pelo mar, no segundo, ao ponto de em seus versos desejá-lo “serenamente enquadrado no horizonte, / limpo de velas, de mastros e de ruídos das dragas do porto. / - Um mar soberano, sem a vassalagem das ondas”.

Publicou mais três livros: Pequena História da Caricatura no Brasil, 1942; Os Poemas Perdidos e seu Reencontro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1984); A Luta do Símbolo (Belo Horizonte, 1985).

 

“Aydano Pereira do Couto Ferraz se realizou amplamente como jornalista, foi diretor de jornal e revistas, mas sobretudo poeta. Teve em vida duas grandes vocações: a poesia e a política. E assim ficou a vida inteira, fiel à sua vocação inicial, à sua primeira vocação.” (SANTOS, 2010).

Isto é, foi sobretudo um poeta, mas um criador cuja obra não foi capaz de empolgar as gerações que o sucederam. No dia seguinte a sua morte em Brasília, o colunista político Carlos Castelo Branco, informou em sua coluna de 7 de agosto de 1985, no Jornal do Brasil:

“O jornalista e escritor baiano Aydano do Couto Ferraz, companheiro de geração e de vida literária de Jorge Amado, foi enterrado ontem em Brasília, onde faleceu na véspera. Aydano teve destacada atuação no Partido Comunista Brasileiro, na fase da atuação legal, de 1945 a 1947, quando exerceu a direção do jornal Imprensa Popular, órgão de propriedade e de doutrinado velho PCB”. (SANTOS, 2010).

 

CANTO DA ESPERANÇA

 

Minha esperança,
A asa azul do sonho
tocava minha fronte solitária
na noite em que te vi.

Se tu foras a aurora,
minha amiga,
não te quisera a ti.
Há que mil anos a aurora se repete!
Hás de ser sempre nova, matutina,
entre as névoas do céu te descobri!

Vê se despertas nesse peito rude
as notas sentidas que ele já exalou.
Fala do mar ao teu irmão poeta,
povoa de primaveras a sua alma,
sonhos no coração,
que em troca de um olhar
dou estes versos,
em troca de um sorriso
- uma canção -

Aydano do Couto Ferraz - (In Os poemas Perdidos e o seu Reencontro. Rio de Janeiro,1950.)

 

 

WALTER RAULINO DA SILVEIRA (1915-1970)

 

 

Último a ingressar nas hostes da Academia dos Rebeldes, mais disposta a acolher nomes inclinados ao exercício da literatura e do jornalismo, sem qualquer interesse por outras linguagens, até mesmo as artes plásticas e a música, o que pode ser debitado, na época, à predominância do conservadorismo nesses campos, baiano de Salvador, Walter Raulino da Silveira viria a projetar-se no cenário cultural como “homem de cinema”, tal a sua precoce identidade com a Sétima Arte, em nível até de pioneirismo regional, e advogado, com larga fama de defensor de operários e favelados, por seu vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, de 1945 a 1957.

Diplomado em 1935, a opção política levou-o a abandonar o cargo de juiz de Direito para abraçar a carreira de advogado trabalhista, chegando a atuar como causídico de 26 sindicatos operários. Na esfera política, exerceu mandato de deputado na Assembleia Legislativa da Bahia de 1955 a 1959.

Grande fomentador cultural, desde a juventude, tornou-se figura exponencial do desenvolvimento do cinema no estado, a partir da fundação do Clube de Cinema da Bahia, em 1950, quando também atuou como colaborador de Caderno da Bahia, revista representativa do movimento artístico e literário que surgira em 1948, revelando nomes como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Rubem Valentim, nas artes plásticas, Vasconcelos Maia, na ficção literária, e Wilson Rocha e Jair Gramacho, na poesia, Heron de Alencar e Darwin Brandão, no jornalismo.

Walter da Silveira publicou seu primeiro texto sobre cinema no jornal da Associação Universitária da Bahia, sob o título de “O Novo Sentido da Arte de Chaplin”, enfocando o gênio do cinema, de cuja obra e imagem pública se tornaria respeitado estudioso e admirador confesso, ao ponto de, já desenganado, antes de morrer de câncer, fazer de Jorge Amado, seu grande amigo, portador de uma carta a Charles Chaplin, junto com um exemplar de livro seu sobre o célebre criador de Carlitos, missão fielmente cumprida.

“Antes de falecer, Walter recebeu duas cartas, remetidas ambas da residência do mestre maior do humanismo em nosso século: uma do escritório, despacho formal da secretária, acusa a chegada do volume e agradece. A outra, carta pessoal de Charles Chaplin: sensibilizado fala do livro, mensagem de estima e afeto, calorosa”. (AMADO, 1992).

O estímulo ao debate cultural em torno da Sétima Arte permitiu-lhe alavancar várias iniciativas, entre as quais a criação de curso de cinema ministrado no âmbito da Universidade Federal da Bahia e a realização do Ciclo Baiano de Cinema, referência para tornar Salvador em polo de vanguarda criativa e matriz de nascimento do Cinema Novo, movimento artístico que irá empolgar o país. Mentor desse afã cultural, Walter da Silveira contribuiu para a formação de uma geração de cineastas na Bahia – Glauber Rocha, Roberto Pires, Paulo Gil Soares, Orlando Senna, Guido Araújo, José Umberto, Olney São Paulo, Luiz Paulino, Tuna Espinheira, entre outros.

Mestre da crítica cinematográfica, publicou artigos sobre cinema e estética em jornais e revistas de Salvador e do Sul do país, além de participar do júri de festivais de cinema, nacionais e internacionais. A sua bibliografia reúne as seguintes obras: Fronteiras do Cinema (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966); Imagem e Roteiro de Charles Chaplin (Salvador: Mensageiro da Fé, 1970); História do Cinema Vista da Província (Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978); O Eterno e o Efêmero (Salvador: Secretaria da Fazenda/ Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/ Oiti Editora e Produções Culturais, 4 vols., org. de José Umberto, 2006).

 

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BIOGRAFIAS SINTÉTICAS

 

Agrupam-se a seguir, sob o rótulo de biografias sintéticas, catorze membros da Academia dos Rebeldes, adotando-se para tanto um critério de seleção entre os mais citados por pesquisadores e comentaristas, como assíduos colaboradores das revistas do grupo, Meridiano e O Momento, que circularam entre 1929 e 1932, participantes das ações socioculturais e desfrutes de boemia do grupo, como também os que, entre eles, cumulativamente ou não, alcançaram proeminência em campos da literatura ou de atividades outras, como o jornalismo, a política e os estudos científicos, obtendo reconhecimento regional, nacional ou mesmo internacional.

Algum curioso leitor poderá observar que, em se tratando de biografias, dispostas pela ordem do ano de nascimento dos biografados, faltam maiores indicativos cronológicos às narrativas. Sem dúvida. Explica-se: no presente caso, o fulcro do interesse por cada um dos nomes da lista procurou centrar-se na expressão e significado do seu desempenho para os fins colimados do projeto intelectual e político que os unia, optando-se por uma exposição sucinta das respectivas trajetórias.

 

PINHEIRO VIEGAS (1865-1937)

 

 Talvez mais por sua fama de jornalista panfletário, conquistada desde o Rio de Janeiro, onde viveu mais bem reconhecido como agitador cultural, intelectual corrosivo e desagregador, do que como mestre e líder de um movimento literário, João Amado Pinheiro Viegas nasceu em Salvador e, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos, morreu num dia de novembro, “abandonado pelos poucos amigos que tinha”, em Itacaranha, subúrbio da capital, sem receber qualquer homenagem póstuma, sequer merecer registro obituário na imprensa, mas talvez como um alívio para “a mediocridade empavonada e vitoriosa, a quem jamais poupou com a sua sátira” (2001).

Jorge Amado, que se dizia surpreso por ter ele o prenome e o primeiro sobrenome iguais ao de seu pai, João Amado, o define como patrono da Academia dos Rebeldes e poeta baudelairiano, “panfletário temido, epigramista virulento, o oposto do convencional e do conservador, personagem de romance espanhol, espadachim”. Entretanto, não foi somente a marca do mentor a se fixar em sua memória. Pinheiro Viegas era mais. “Um homem avançado para os padrões da época”, assinalando que “havia participado da campanha civilista, ao lado de Rui Barbosa e trabalhado vários anos no Rio” (AMADO, 1992). Nômade, pouco se sabe de descrição objetiva desse nomadismo; apenas que percorreu o Brasil, de norte a sul, como poeta e jornalista, e que no Rio fez boemia como integrante da turma de Lima Barreto.

Poeta panfletário e ferino epigramista, quando viveu no Rio de Janeiro, Pinheiro Viegas atuou no jornalismo, alcançando prestígio e admiração, entre leitores e literatos de proa, apesar de poucos saberem de sua vida em privado, à exceção de alguns amigos, entre eles o crítico literário Agripino Grieco (1888-1973), que, de tão próximo, não o esqueceria em suas memórias de 1972, ao evocar visita que fez a seu misérrimo endereço, que companheiros de tertúlias diziam situar-se “lá para as bandas do Cais Pharoux”.

“Uma tarde, fez questão de levar-me ao cubículo infecto da rua do Mercado, onde dormia numa rede, entre duas cadeiras pernibambas, mas onde se destacavam, numa estante, não de todo desgraciosa, volumes riquissimamente encadernados em França, dos seus poetas blasfemos, malditos, Baudelaire, Verlaine, Corbière, Rimbaud, volumes que ele não venderia por preço algum, mesmo em dias de fome agudíssima”. (SANTOS, 2001)

Muitos de seus panfletos em versos se propagaram, fosse a partir da Bahia, fosse do Rio de Janeiro, publicados em veículos diversos, como o de maior repercussão entre eles, sob o título de A Re Pública – Carta ao Marechal Deodoro, que mereceu comentários elogiosos de variada autoria, do qual adiante vão alguns excertos e sobre o qual assim escreveu, em estilo próprio da época, um redator no nº 374, do Pequeno Jornal carioca, em 21 de maio de 1891:

A Re Pública – É o título de um panfleto que temos entre mãos, em estilo epistolar bem metrificado em alexandrinos e dirigido ao Sr. marechal Deodoro, assinado por Pinheiro Viegas. Não sabemos onde foi impresso; com toda a certeza o impressor, cidadão garantido pela nossa Constituição republicana, receou, o que? Alguma empastelação”.

 

Viegas cumpriu os cursos primário e secundário no então Ginásio da Bahia; bacharelou-se em Letras e ingressou no Curso de Direito, abandonando-o, para se dedicar ao jornalismo. Trabalhou em O Imparcial, mas o deixou, quando o jornal foi vendido aos integralistas, força política emergente da época, assumindo o seu comando dois dos, ao tempo, chamados “galinhas-verdes”, em alusão às cores da militância ideológica, Mário Simões, diretor de redação, e Mário Monteiro, diretor financeiro. É, dessa ocasião, epigrama famoso de Viegas, composto para registrar satiricamente o acontecimento.

 

Mário Simões bis Monteiro

Remontaram O Imparcial.

São quatro mãos no dinheiro,

São quatro pés no jornal.

 

Em Salvador, onde verdadeiramente se tornaria conhecido e influente, antes de fundar e liderar a Academia dos Rebeldes, frequentou o grupo de Samba, cujos membros se mostravam engajados no combate ao conservadorismo, mas sem que estivessem efetivamente identificados com a corrente renovadora do modernismo. Apesar de publicações dispersas, seja como poesia, crônica ou panfleto, Pinheiro Viegas deixou apenas um livro de poemas, Brasil Prosa e Verso (Salvador: Gráfica Popular, 1931), mas com autoria sob o pseudônimo de Sophos Arnaud.

 

Abaixo, sete de seus sonetos e excertos de um folheto em alexandrinos, criações essas, hoje, raridades.

 

MEDALHÃO GREGO

 

Escuto Debussy. A noite. O luar. O oceano,
Recordo-o. Onde isso foi. Eu não o sei. Perdi-o.
Era o efebo irreal – grego mármore humano
Olhei-o. Olhou-me. Riu. É um demônio. Eu rio.


Belo mármore jônio impassível – engano!
Os olhos verdes maus, a grenha negra, vi-o.
As suas níveas mãos, nervosas, tinham frio
Nas teclas de marfim e de ébano do piano.

 

A boca – flor de sangue – em claros risos francos
Mostra-me, alegre, os seus trinta e dois dentes brancos.
O amor – interjeição – duas sílabas métricas.

 

Uma por uma eu vi todas as suas baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.

 

 

MÚSICA NOTURNA

 

Abro a janela. Escuto. Enche todo o ambiente

Essa música irreal do violão de um tzigano,

Feita de longos ais do coração humano,

Fora, no ermo, ao luar, desoladoramente.

 

Lembro a imagem lirial da pulcra e eterna ausente,

Longe, o meu país natal, Glauco e múrmuro oceano,

O doce lar tranquilo, o jardim redolente,

Na plaga verde e azul sob o céu pompeano.

 

Do violonista boêmio, o sem pátria no mundo,

Como a dizer à noite e ao plenilúnio: – “Ouvi-me!”

Tem uma alma esse violão toda nervosa e quérula… 

 

Guay em guay, corda a corda, assim ele é sublime:

Escuto-o em pranto, à janela, o silêncio profundo,

A paisagem do exílio ao luar de madrepérola!

 

(Gil Blas. Rio de Janeiro, Ano I, nº26, 7 de agosto, 1919)

 

ESFINGE

 

Leão e mulher, – de pedra o monstro, – é a esfinge obscura

Do cruor do orgulho humano em meio ao labirinto:

– O Tudo e o Nada, a Vida e a Morte, o Sonho e o Instinto,

O Espírito e a Matéria, o Criador e a Criatura.

 

De granito, – enigma eterno, – olhando os sóis na altura,

– Mora o deserto areal de um grande oceano extinto.

Na queda boca imita, – o néctar feito absinto,

– Mostra ao Ser e ao Não-Ser pétrea ironia dura.

 

O Orbe em retorno ao Caos e a Volúpia ao Nirvana,

Abre ao infinito azul as órbitas bizarras,

Da plástica ao psiquê, divina, sendo humana.

 

Rebelde ao Anjo, – a Besta é o delírio e a nevrose:

Tem do Gênio ou do Herói os fantos entre as garras

Sob a lua de um Sonho e ao sol de uma Apoteose!

 

(Gil Blas. Rio de Janeiro, Ano II, nº55, 25 de fevereiro de 1920)    

 

J.N.R.J.

 

Jerusalém. Por fim de surpresa, aparece

(É o moço gênio hebreu mestre de pulcritude!)

E fala a turba ignara afeita ao trato rude

Sobre o credo que exsurge… avulta… aumenta… cresce… 

 

Dizem: - “Eis o Homem Deus!” – Ele sorri. Parece

Branco lírio imperial sobre negra palude.

Tem nos olhos, no rir, no andar, na celsitude,

A beleza toda irreal de um poema ou de uma prece.

 

Como poeta ele adora a natureza. E o verbo

Sai-lhe do lábio, ao vê-la, em surto ao céu e aos astros,

Dentro a cidade hostil no transe mais acerbo…

 

À pobre argila humana é a glória inatingida:

Ao lembrá-lo, no mundo, há de sorrir seus rastros

Quem faz por uma ideia o holocausto da vida.

 

Rio, 1920

 

O CORVO

 

Sobre um tronco pousado e indiferente ao coro

Dos pássaros no azul e as serpes no chão rasas,

Mesto, os olhos de treva – abrindo em duas brasas –

Ei-lo na hora púnica em luto imorredouro.

 

Ele põe-se a grasnar, de chofre, em riso e choro,

A saudade letal das expulsíceas vasas

Qual sarcasmo funéreo à volúpia das asas

E ao pôr do sol de outono a broslar o céu de ouro.

 

Tomba do monte do vale a noite. E então na treva

Tem do corvo de Poe negra nevrose estranha,

Que em silêncio da morte a alma gnomes ceva.

 

Triste ausência da lua morre! Banha

A paisagem de sonho o luar que então se eleva

No espaço de ter turquesa ao topo da montanha.

 

(Vida Carioca. Rio de Janeiro, Ano I, nº2, 22 de janeiro de 1921)

 

SPLEEN

 

O laudano ao café. Lethes. O eterno sono.

Ponto final do amor de poema ou de novela.

Entra em meu quarto o luar de ouro fosco de outono.

Espero-te. Não vens. Cismo, chego à janela.

 

Tic, tac, o relógio é monótono absono.

No teu autorretrato antigo em aquarela,

Tenho a ilusão de ver-te a pose de abandono.

Sendo humana, és divina! e sendo cruel, és bela!

 

Certo de minha dor hoje um poema eu não faço…

Lápis verde escreve em uma folha de almaço

Maus versos, versos maus, nesses meus hieroglifos.

 

Cai-me o papel das mãos: - São meus quatorze versos!

Meu gato Angord, de gris-verdes olhos perversos –

Do chão num salto, apanha-o e rasga-o entre os seus grifos.

 

(O Mundo Literário. Rio de Janeiro, 5 de junho, 1923)

 

ELA

 

Entra. Despe-se. E nua, a rir, sem cerimônia.

(Ela é a visão celeste e a femina terrena),

Negros olhos de ônix, solta a bruma melena,

Anda, à noite, em meu quarto, ao léu da minha insônia.

 

Cismo: é a Tzigana, a musa, a madona, a demônia,

A mandrágora, a eufórbia, a reflesia a açucena,

Grande, soberba, irreal, pulcra, nívea, serena,

Frio alabastro nu de vedra estátua Jônia.

 

Alva argêntea, lunar, dúbia, eu sonho, imprecisa,

(Para a sua psique só mesmo a sua plástica!)

Ela faz-me lembrar, Da Vinci, a Mona Lisa.

 

Cai-lhe sobre a nudez o amplo peplo vermelho.

 Depois, nada!…  Ilusão! E eu só vejo fantástica,

A máscara da lua, a rir, no meu espelho.

 

(Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 09 de outubro, 1935)

 

 

MONSTRO VERDE

 

Meia noite. No bar, ele ao piano, o Diabo!
O espelho contra o espelho é um fogo de artifício.
O meu copo de abismo é o meu mundo fictício.
Sou pachá, mandarim, sibarita, nababo.

Rindo, vejo, em redor, então, em menoscabo,
O quadro nu plebeu do amor venal de ofício.
Ébrio só de ilusões!… mais ilusões… e, ao cabo,
O absinto, o Monstro Verde, adoro-o! ele é o meu vício!…

Lá fora, o céu de inverno, o vento, a chuva, o frio.
Os verdes olhos maus, a grenha bruna — vi-o.
Mais belo é o mundo assim em linhas assimétricas.

De chofre, vejo, então, todas as suas baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas.
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.

 

TEBAIDA

 

A paisagem vernal de sonho e de aquarela.

O monte, o vale, o rio, o céu, são meus vizinhos.

Da janela eu contemplo o dia quase ao termo:

É a cabeça de um Deus a sangrar sob espinhos.

 

Triste e só, por não vê-la, eu vou ficando enfermo.

Creio vê-la outra vez, meu coração me bate,

Os seus olhos azuis nos verdes do meu ermo.

 

O palor de alabastro, a coma de ouro mate,

Penso vê-la outra vez, antes eu nunca a visse!

Leda, a boca a sorrir, é uma rosa escarlate.

 

É a carícia nupcial e a sororal meiguice:

Enlaçada, sutil, deslumbrante e bela,

Na música do céu das coisas que me disse.

A paisagem vernal de sonho e de aquarela.

 

A RE PÚBLICA - CARTA AO MARECHAL DEODORO

                    (Excertos)

 

Marechal, sou plebeu, um simples democrata.

Um forte coração, uma alma intemerata,

Eu jamais me curvei a um rei ou ditador

Nunca tive ambições de ser comendador.

Barão, duque, marquês. Detesto a fidalguia.

Odeio o sangue azul e esta aristocracia,

Que campeia entre nós, assim, com altivez!…

É grande cobardia, estranha insensatez.

Ninguém vir protestar contra o nefando crime,

Que a todos nos suplanta e a todos nos oprime!

            (…)

Por que vós consentis assim impunemente

Aviltar a nação com jugo prepotente

Dos vossos cortesãos, ministros e fascistas,

Democratas que são no fundo monarquistas,

Hipócritas, sandeus, bandidos, argentários,

Palhaços e ladrões, fidalgos, mercenários

Infames histriões, curvados abissínios,

Que vem das podridões e dos esterquilínios?

            (…)

Para salvar da Pátria a triste ruinaria

Das ondas colossais da velha oligarquia

É preciso titãs, preciso é, lutadores…

Abaixo a Ditadura! Abaixo os Ditadores!

Para longe de nós os triviais mandões,

Que vendem com desplante as terras das Missões

Por um punhado d’ouro aos monstros do egoísmo!…

Para longe da Pátria os corvos do cinismo,

As hostes da desonra, as hostes assassinas,

Que vivem de explorar tesouros nas ruínas!…

Preciso é reagir, preciso é dar batalha,

Contra o velho terror da grande e vil gentalha,

Que tem mil europeus, palácios e festins,

Como os grandes pachás e os nobres mandarins,

Que traz gravata branca e luvas de pelica

E tem ostentações de messalina rica…

            (…)

A miséria, o terror, a fraude e a corrupção!

Fermentam no Brasil grande Revolução!

 

A Cruzada. São Luiz do Maranhão, Ano II, nº 211, 26 de junho de 1891)

 

 

SOSÍGENES COSTA (1901-1968)

 

Foi preciso que transcorressem nove anos de sua morte e quase vinte da edição única em vida de seu livro Obra Poética (Rio de Janeiro: Leitura, 1959), pela qual recebeu o Prêmio Jabuti, em1960, para que se viesse situar esse grande poeta grapiúna, conforme feliz observação de Jorge Amado, “no lugar que lhe compete na lírica brasileira”, fazendo desembocar a sua obra no reconhecimento da crítica e história literárias. E, por fim, tudo se daria num galope, quase frenético. Pelas mãos do paulista José Paulo Paes, em 1977, a editora Cultrix publica Pavão, Parlenda, Paraíso, com penetrante análise crítica e pequena antologia do poeta nascido em Belmonte (BA). Logo em seguida, pela mesma editora, em 1978, Paes reedita a Obra Poética ampliada, completando-se a faina de sua inserção, com a edição de Iararana (São Paulo: Cultrix, 1979), a epopeia cabocla do cacau, em que, submetendo esta consagrada forma poética “aos signos dessacralizadores da paródia”, segundo Cid Seixas, o poeta vai além dos inventos pioneiros de Mário de Andrade, em Macunaíma, ou de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, justamente por sua patente “rebeldia diferencial”. (SEIXAS, 2004)

Essa longa imersão na indiferença da crítica e, praticamente hoje, nas geleiras do esquecimento, em muito, se deveu e se deve ao temperamento enormemente retraído do belmontino, que viveu em Ilhéus, onde fixou residência em 1926, para ocupar a função de telegrafista dos Correios e, depois, de secretário da Associação Comercial de Ilhéus, quase sem ser percebido, até mudar-se para o Rio de Janeiro, aposentado, em 1954. Com a fama de “arredio, pedante e asceta”, fazia supor houvesse “erguido ao seu redor um muro de discrição e silêncio”, segundo observou Hélio Pólvora, para concluir: “Além de proteger-se contra contaminações maldosas da ambiência, tinha necessidade de solidão para criar” (PÓLVORA, 2001).

Talvez por ter preferido viver em Ilhéus, praticamente isolado, garante Jorge Amado, a militância de Sosígenes Costa limitou a sua participação na Academia dos Rebeldes aos dois últimos anos da década de 1920 e ao início da década de 1930, mas, pela sua qualidade de poeta, era dele que se valiam os outros amigos Rebeldes, nas emulações da época, para enfrentar a constelação de nomes que fulguravam nos outros dois grupos concorrentes (Samba e Arco & Flexa), como Godofredo Filho, Carvalho Filho e Hélio Simões, opondo-lhes “sua poesia original, suntuosa, bela, capitosa, como vinho generoso” (AMADO, 1992), que, por mais incrível que possa parecer, está hoje praticamente esquecida, embora ultimamente tenham sido publicadas duas antologias de poemas seus, ambas organizadas pelo escritor Aleilton Fonseca: a primeira, pela Global Editora, de São Paulo; a outra, pela Academia de Letras da Bahia, em convênio com a Assembleia Legislativa da Bahia (2017). Sosígenes Costa morreu no Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1968, faltando cinco dias para completar 67 anos de idade. Merecia viver muito mais.

 

 

“Um dos melhores poetas do norte do país é Sosígenes Costa. Solteirão, esquisito. (,,,) Está no mundo com um ar de pernalta pensante. Funcionário dos Telégrafos e escriturário de uma associação comercial, desforra-se dos seus magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de pedrarias e sedas, como raros dos seus confrades se permitem. Na imaginação desse asceta há sempre um pecaminoso rumor de saias proibidas. (…) Vinga-se do seu isolamento e da sua imobilidade em visões como as não tiveram Sardanapalo e Sindbad, o Marítimo. Recorda sempre os belos dias que passou em Belmonte e fala dessa cidadezinha do interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as gambiarras, fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as decorações florais. (…) Modernista, ainda crê na rima rica e um excesso de luz que lhe torna certas passagens obscuras, numa espécie de névoa de ouro. Esse filho da roça pensa nas Vênus de Paris e alude constantemente a pavões e castelos. (...) Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pagem da Musa e príncipe da Morte’, mas é um panteísta bem vivo ao inebriar-se na gama de amarelos do sol dos trópicos. Sua amada tem ‘trinta anéis de pérolas ovais’, mas o seu noturno de Ilhéus a ‘descrição’, é algo de bem contemporâneo”".

(Agripino Grieco (1888-1973), trechos, em transcrição de Gilfrancisco Santos).

 

 

SEIS SONETOS PAVÔNICOS, DE SOSÍGENES COSTA

 

O PRIMEIRO SONETO PAVÔNICO

Foge a tarde entre o bando de gazelas.
A noite agora vem do precipício.
Sóis poentes, douradas aquarelas!
Mirabolantes fogos de artifício!

Maravilhado assisto das janelas.
Os coqueiros, pavões de um rei fictício,
abrem as caudas verdes e amarelas,
ante da tarde o rútilo suplício.

Cai uma chuva de oiro sobre os cravos.
O grifo sai do mar com a lua cheia
e as pombas choram pelos pombos bravos.

Um suspiro de amor do peito arranco.
A luz desmaia. E o céu todo se arreia
Em vez de estrela de narciso branco.

(1923)

 

TORNOU-ME O PÔR DO SOL UM NOBRE ENTRE OS RAPAZES

Queima sândalo e incenso o poente amarelo,
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr do sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.

(1924)

 

CREPÚSCULO

Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões. Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor dourada agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente, mas a aurora.

 

(1926)

 

SONETO AO ANJO

Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.

Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.

Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.

Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.

(1930)

PAVÃO VERMELHO

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

(1937-1959)

PAVÃO AZUL

No jardim do castelo desse bruxo
d'asas d'ouro e olhos verdes de dragão,
tu és à beira de um lilás repuxo
um grande lírio de ouro e de açafrão.

Transformado em pavão por esse bruxo,
vivo te amando em tardes de verão,
dentre as rosas e os pássaros de luxo
do jardim desse bruxo castelão.

Tenho medo que um dia o jardineiro…
Mas nunca, estou bem certo, do canteiro
há de colher-te, ó minha flor taful.

Porque ele sabe que em manhã serena,
não suportando a ausência da açucena,
há de morrer esse pavão azul.

(s/ data)

 

CRIAÇÕES OUTRAS DE SG AINDA ADOLESCENTE

 

GARÇAS

 

Como um bando de preces japonesas

Que se desatam sob o céu de Nikko,

Garças em flor, de maravilhas presas,

Fogem pr´a as brotas do capuz de um pico.

 

Agora tudo é lindo! Que belezas

As régias garças no bailado rico…

Plumas enconcham – pérolas retesas

Que tanto haurir… Daqui donde me fico.

 

E tão bailantes! Sobre o amor do musgo,

Com quem por causa delas sempre rusgo,

Sinto desejos de bailar assim…

 

Mas sou tão verme! É que do baile ao friso,

Pr´a se imitar as garças é preciso

Ter graça azul em um corpo de jasmim!

 

                        Belmonte, 1920

 

O CISNE

 

Na indolência de um deus, lá vem à gruta, ao lago

O cisne. O azul de golpe empalidece! Tudo

De pérolas quer ser e tudo fica mudo

Ante tanto brancor, brancor que aos golpes trago.

 

Agita a pluma, dobra o colo… é de veludo!

Põe frisos n´água e segue a machucar (que estrago!)

Um nenúfar… Entanto, a linfa o espelho mago,

Sem se importar da flor que se quebrou. Estudo

 

Agora o cisne e quanto é o branco vejo esteta.

No cisne o branco é tudo. O cisne mais parece

O amor da estrela, o amor do alvor, o alvor da prece!

 

Nisso… Ele canta… E após deixar almas de poeta

Em cada som que tange, o cisne morre… Parte,

- O cisne, taça branca em que bebe a arte.

 

                        Belmonte, 1920

 

MINÚSCULO

 

Na mesa onde costumo fazer versos,

Acha-se um vaso de um valor venusto,

Um vaso pequenino, um nada, um susto,

Que encho de trevos e jasmins dispersos.

 

É uma graça vê-lo como um busto,

Trazendo tão pequenino os universos

Dos bons miosótis em paixões dispersos

- Tantas corolas que se apruma de custo.

 

Inda outro dia me deram três rosas:

Vermelhas, sanguejantes, amorosas,

Que nele pus num salto com meiguice.

 

E toda gente que chegou me disse:

- Não parece esse vaso um loiro anão

Que não pudesse com o próprio coração?!

 

                        Belmonte, 1920

 

CONTEMPLAÇÃO

 

Eu só imenso… O vulto em bronze… O braço aberto

Contemplo como esfinge a festa das estrelas!

O azul sacode a luz… E eu todo me desperto

Pras convulsões brutais da arte… A arte! Pelas

 

Frondes a brisa rola… Há pirilampos n´alma…

A rosa que ergo à boca aperto-a… Dando ais.

Aperto-a… E é tanta luz e tanta, tanta calma

Que eu penso: Vou p´ra o azul e não volto mais.

 

O zéfiro me lambe… E beijos é o que eu sinto,

Sinto beijar-me a estrela e beijo a estrela e beijo,

E beijo mesmo o céu… Oh! Crede, não vos minto.

 

Sinto-me estátua e a gente, a gente que não vejo

Ao ver-me assim murmura: Um vesano, um pateta!

E a natureza diz: Meu filho, meu poeta!

                                                                                   Belmonte, 1920

INGAUHYRA*

 

A casa velha arruinada. Em ente,

A horta plantada de pimenta e rosas.

Os bois comendo as ervas perfumadas.

Ao fundo o rico cacaual da gente.

 

O pasto. As laranjeiras. Lentamente

Evoco tudo, oh musa! Como rosas!

O cocho com cacau passando rente

 porta. E a noite, que nebulosas!

 

Os cascos das galinhas no terreiro.

O porco. E o rio? E a côncava canoa

Onde a gente brincava o dia inteiro?

 

Recordo tudo na fazenda nossa…

E uma dor dentro d´alma me magoa.

Que saudade, meu Deus, de minha roça!

 

Belmonte, 13-07-1921

*Ingauhyra era o nome da fazenda dos pais de Sosígenes Costa: Innocêncio Ignácio da Costa e Brasília Marinho da Costa.

 

EPITÁFIO PARA O TÚMULO DE FANNY

 

Chorão que choras tão forte

Não chores que aqui estou.

Não faças chorar na morte

Quem na vida não chorou.

                        1920

OBSERVAÇÃO: os cinco últimos poemas foram colhidos no livro Sosígenes Costa – Cobra  de duas cabeças – Poesia e prosa encontradas e inéditas, publicado em 2011, pela editora Mondrongo (Ilhéus-BA), em celebração aos 110 anos do nascimento de Sosígenes Costa, em Belmonte-BA, fruto de pesquisa realizada por Herculano Assis, organização do editor e escritor Gustavo Felicíssimo, com apresentação de Heitor Brasileiro Filho e Jorge de Souza Araújo.

 

 

JOSÉ BASTOS (1905-1937)

 

Quando em fins dos anos 1940, numa pacata Itabuna, inocentes alunos da primeira turma do Ginásio da Divina Providência, intrigados, perguntavam quem era aquele que dava nome à Praça José Bastos, ali pertinho, ouviam dos mais velhos tratar-se de um poeta que, morto cerca de dez anos antes, cantara em seus versos a cidade e o seu Rio Cachoeira.

Depois de interromper o aprendizado das primeiras letras na cidade onde nascera, José Bastos torna-se precocemente arrimo de família, com a morte do pai, em 1918, vendo-se obrigado a empregar-se em uma livraria, onde a curiosidade e o contato com os livros lhe despertam o interesse pela literatura, principalmente pela poesia parnasiana.

Publica seu primeiro soneto, “Náiade exilada”, em 1924, no jornal O Intransigente, seguindo para Salvador, onde conclui o curso secundário. Retorna a Itabuna em 1927 e ingressa no jornalismo, começando a trabalhar no jornal A Época, então propriedade de Gileno Amado, advogado e já um dos coronéis do cacau e prestigioso chefe político local; lá, publica a maior parte de sua poesia.

Já integrante do movimento desencadeado pela Academia dos Rebeldes, figurando mesmo entre os colaboradores do único número da revista Meridiano e, depois, de O Momento, em 1930, José Bastos publica em Salvador seu único livro Horas Líricas – depois reeditado, por ocasião do cinquentenário de Itabuna: Tipografia D´Agenciadora, 1960.

“Com esse livro em mãos, o poeta foi para o Rio de Janeiro, onde pretendia inserir-se na vida cultural da antiga capital do país, não conseguindo seu intento. Melancólico e doente, vítima da tuberculose, ateia fogo em toda a sua produção ainda inédita, em verso e prosa, da qual apenas do título se tem notícia: Terra Verde”. Dessa forma, o estudioso de literatura e poeta Gustavo Felicíssimo registra esse triste momento da biografia de José Bastos, cuja poesia, para ele, “não é outra, senão o reflexo de um rigoroso senso estético, quanto a linguagem e estrutura, não variando muito quanto à forma (o soneto), fruto de uma escola parnasiana, da qual Olavo Bilac foi, no Brasil, seu artífice mais talentoso”, e, sem dúvida, seu espelho.

Versejou, com decência e equilíbrio, temas da natureza, como também mitológicos, e morreu parnasiano, como sempre fora. “É perceptível que o atendimento rigoroso e brutal ao cânone do seu tempo tornou a poesia de José Bastos um tanto engessada, porém é claro que suas virtudes, como poeta, superam, em muito, qualquer crítica destrutível que sobre sua obra seja lançada” (FELICÍSSIMO, 2010).

 

 

ITABUNA

 

José Bastos

 

Minha terra natal! Que te abrasas e inundas

De tanto sol! Assim, entre agrestes verdores

Do Cachoeira escutando os bravios rumores

Como a iara gentil dessas águas profundas!

 

Quantas poesias tens nas árvores jucundas

Que te cercam além! Nas casas multicores,

Que se alteiam brilhando, entre ramos e flores,

E enchem de encanto e vida estas plagas fecundas!

 

Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso

De um dia ter nascido em teu seio faustoso,

Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!

 

De me haver embalado à cantiga e ao gemido

Do Cachoeira, que rola a água profunda e clara,

Escumando aos teus pés como um jaguar ferido!

 

 

JOÃO CORDEIRO (1905-1938)

 

 

Autor de um único livro, o romance Corja (Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934), cujo título original deveria ser Boca Suja, inopinadamente mudado por não agradar ao editor, João de Castro Cordeiro foi um dos fundadores da Academia dos Rebeldes e tão assíduo colaborador das duas revistas editadas pela irrequieta confraria, Meridiano e O Momento, que Jorge Amado chegou ao ponto de considerá-lo seu presidente honorário, pelo fato de, sendo ele o único do grupo a ter emprego público remunerado, socorrer os sempre necessitados amigos com empréstimos para suas esbórnias.

Nascido em Salvador, oriundo de família estável de classe média, morreu com apenas 33 anos de idade, sem que haja registro formal de causa que o levara a findar-se tão cedo. Logo que lançado, Corja obteve críticas positivas, tais como as das lentes perspicazes e ácidas de Agripino Grieco, que destacou o realismo da narrativa centrada num cenário popular de ruas e becos baianos, noitadas boêmias e cenas de botecos, que o autor, segundo ele, soube deter “em instantâneos vivazes, colhendo no voo notas típicas de algumas vidas prosaicas ou inquietas”, com toques de sátira à presença de figuras da política e do clero.

A história gira em torno da vida airada e boêmia do personagem Policarpo Praxedes, por meio do qual João Cordeiro oferecia, segundo Edison Carneiro, outro de seus críticos, “a visão exata, e por isso mesmo cruel, da humanidade que se definha nas salgadeiras, nos trapiches, nos armazéns das docas, para pagar com seu suor as amantes, as bebedeiras e os palácios capitalistas”.

Autor da apresentação do romance, Jorge Amado relata que, muitos anos depois, quando presidente do Instituto Nacional do Livro, Herberto Salles cogitou reeditar Corja, inclusive devolvendo-lhe o título original preferido de João Cordeiro, Boca Suja, mas rejeitado pelo editor; porém, defrontou-se com um obstáculo que tem sido a infelicidade de muitos espólios literários e artísticos. Segundo Amado, “os herdeiros, vagos herdeiros, a viúva morrera e não houvera filhos, se assanharam, acreditando que a edição significaria incalculável soma de dinheiro, fortuna em direitos autorais; impossível tratar com eles, a boa ideia de Herberto não se concretizou”. (AMADO, 1992)

Em 1939, criou-se no Rio de Janeiro um Prêmio João Cordeiro, para conceder láurea à melhor estreia literária do ano, cabendo-o na ocasião ao romance Cangerão, do escritor Emil Farhat, que teve como concorrentes Vila de Santa Luzia, romance de fabulação centrada em costumes nordestinos, do jornalista Omer Mont'Alegre, que anos depois exerceria o cargo de redator-chefe do Jornal do Brasil, e Tinha anos sem paisagem, este romance da autoria de Guilherme Figueiredo, também poeta e conceituado tradutor.

 

“João Cordeiro me faz recordar a fase mais interessante da minha vida. Nós éramos uns garotos e fazíamos, sob as ordens de Pinheiro Viegas, a parte de pasquim da literatura baiana. Tínhamos uma Academia dos Rebeldes, que amávamos, apesar de todo o ridículo que a cobria. Tentamos fazer o saneamento intelectual da boa terra”. (AMADO, apud SANTOS, 2001).

“O lado baiano do romance, com o aspecto popular de ruas e becos, noitadas boemias e cenas de tascas, soube o autor detê-lo em instantâneos vivazes, colhendo no voo as notas típicas de algumas vidas prosaicas ou inquietas. Sente-se o pendor para desfigurar satiricamente as personagens da política ou do clero, que evidentemente detesta, mas a morte de Luciano, o noctâmbulo que tem o nome do belo herói de Balzac, emociona os leitores, dando ao volume um bocado de poesia azul, que o Sr. João Cordeiro, envergonhado talvez dos seus cinco minutos de romantismo, se apressa em desfazer, pondo a amante do morto as velas com um sucesso imbecil”.

(Agripino Grieco, in O Jornal. Rio de Janeiro 26 de agosto, 1934, segundo Gilfrancisco Santos).

 

ALVES RIBEIRO (1909-1978)

 

Espírito forjado em terras de sertão profundo, no então município de Camisão, hoje Ipirá, filho de agricultor, depois modesto pecuarista, caçula da família, José Alves Ribeiro aprendeu a ler sem frequentar escola, sendo, desde criança, um esforçado ajudante do pai no serviço de plantio e colheita de cereais, mas aproveitou bem uma viagem a Salvador, ao ser deixado com um tio, cuja casa possuía uma biblioteca, que lhe despertou o interesse por literatura, permitindo-lhe o contato com livros de que nunca ouvira falar. Concluiu os cursos secundário e ginasial e candidatou-se ao vestibular, ingressando na Faculdade Livre de Direito em 1931.

Diplomado, exerceu várias atividades, além da advocacia: professor de Criminologia na Faculdade de Filosofia, por fim ingressando na Justiça do Trabalho, onde faria carreira de competente juiz da 5ª Região, cuja presidência ocupou por mais de uma vez. A atividade literária se inicia com a publicação de primeiros versos, crônicas e ensaios em jornais e revistas, inclusive em Samba – Mensário Moderno de Letras, Artes e Pensamento, em 1928, revista editada pelo grupo chamado Poetas da Baixinha, primeiro registro impresso do modernismo na Bahia, mas neste mesmo ano adere ao grupo de jovens da Academia dos Rebeldes, onde por seu ativismo se torna um dos nomes mais destacados, ao ponto de Jorge Amado, em artigo de 1976, no jornal A Tarde, referindo-se ao primeiro e único número da revista Meridiano, revelar ser de exclusiva autoria de Alves Ribeiro, embora não assinado, o editorial que “traçou os rumos de uma literatura de sentido universal porque plantada na realidade da vida brasileira”, no qual, enfatizava, “o ensaísta adolescente opunha aos modismos europeus que dirigiam os movimentos ditos modernistas (…) uma literatura de problemas, temas, forma e segmento brasileiro”, de onde resultava “sua expressão universal”. (AMADO, 1976)

Não obstante, aconteceria com Alves Ribeiro um fenômeno presente em muitas literaturas, a do artista literário (poeta, ficcionista ou ensaísta) que, atuante em tempos de juventude, de repente silencia, passando à condição de escritor secreto. Após os fecundos anos da Academia dos Rebeldes, só se disporia a publicar livros quase cinquenta anos depois, assim mesmo dois pequeníssimos volumes, Sonetos de Bendizer (Salvador: Gráfica da UFBA, 1975) e Sonetos de Maldizer (Salvador, idem, 1976). Deixou um inédito, A Cinza do Tédio, jamais publicado. Alves Ribeiro morreu em 27 de janeiro de 1978, mas não teve a sorte apregoada pelo inglês John Milton, de não deixarem as gerações humanas, que o sucederam, que esses mínimos livros (com 20 sonetos, o primeiro, e apenas dez, o segundo) caíssem no esquecimento. Demorou mais tempo do que o francês Paul Valéry (1871-1945), que, tendo publicado um livro em 1897 (Essai d´une conquête méthode), só veio ao prelo novamente em 1917, com seu La jeune parque).

 

 

TRÊ POEMAS DE ALVES RIBEIRO

 

 

TORTURAS DO CÉREBRO

 

Vai alta a noite. Velo. Erra o silêncio em torno.

Encerrado em meu quarto, à luz trêmula e baça

Da lâmpada, medito. Em derredor esvoaça

Feio inseto. Asfixia o ar à feição de um forno.

 

Tenho a cabeça zonza. E por mais tente e faça

Não consigo dormir. Paira em tudo um transtorno… 

Vejo paredes, no chão, no teto sem adorno

Vejo, como a acenar-me, o espectro da desgraça.

 

Pego e abro um livro, em vão. Não posso ler. É o tédio.

E debalde procuro encontrar um remédio

À dor atroz… O meu anseio não se acalma.

 

E continuo assim (pena que não se exprime)

A desejar a luz que o cérebro me anime

E sentindo pesar-me a noite dentro d'alma.

 

POEMA INSTANÂNEO

Rua Chile. Movimento.
Mlle. Futurismo passa…
Os olhos piscos de sagui numa febril agitação
toda trejeitos e fingimento,
sorri aos ditos da multidão.
Uma pieguice…
Um rodopio…
Uma pirueta…
Uma negaça…
As pernas – tal e qual um arco de violino
vão arrancando estranhas harmonias,
no seu passinho fino,
original.
A ronda dos elegantes,
junto às vitrines de quinquilharias,
o cinismo nos semblantes
mede-a com olhar sensual.
Uma negaça…
Uma pieguice…
Uma pirueta…
Um rodopio…
E ela segue, nervosa, bamboleante,
agitando o corpo esguio,
os olhos piscos de sagui arisco
por entre a multidão, até perder-se.

 

A LIÇÃO DO MAR

Poeta, si queres aprender o sentido da vida,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar.

Quando te sentires vencido pelo cansaço e pelo desânimo
para as grandes lutas do espírito,
e a terra te parecer inútil e pequenina para o teu sonho,
e os homens todos, uns vermes insignificantes,
- quando tiveres perdido, em suma, o gosto de viver, -
vai procurar o mar e mira-te em suas águas.
Ele é o símbolo do movimento, que não para, da vida, que não para.

Poeta, si queres ser grande e ser perfeito,
dá a teus versos o ritmo das ondas do mar.
Ele é a semente de toda criação,
é a própria fonte da vida,
porque toda vida vem do mar.

O mar é o grande mestre da vida:
a atração de suas moléculas
é o exemplo vivo da união e da força,
sem o que é impossível, na terra,
a conquista da felicidade entre todos os homens.

Por isso é que se compara a multidão ao mar.

Poeta, se queres aprender o sentido da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar
(e os poetas sempre foram os grandes precursores da liberdade,
porque aprenderam a cantar inspirados na música do mar
que é a música da liberdade).

O mar é o princípio da libertação:
de sua contemplação é que nasceu o sonho dos primeiros navegantes e
[dos primeiros revoltados
em busca de novos mundos e de novas formas de vida,
em que os homens pudessem ser mais felizes sobre a terra.

Poeta, si queres aprender o sentido da vida e da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar.

Aracaju. Época, Ano I. nº 2, out/nov. 1948.

 

 

DA COSTA ANDRADE (1906-1974)

 

Um dos nomes que tiveram o privilégio de figurar no primeiro e único número da revista Meridiano (setembro de 1929), José Severiano da Costa Andrade é um piauiense que veio para a Bahia no intuito de estudar e se formar. Foi mais político que homem de Letras, tanto assim que, logo se diplomou em Direito, regressou a Simplício Mendes, sua terra natal, para ser promotor público em Floriano (PI). Ocupou cargos na administração pública, ingressou na política, elegendo-se consecutivamente, por três legislaturas, deputado estadual e, logo, para prefeito da mesma Simplício Mendes, em 1936, quando se casou, para ser pai de dez filhos.

O pesquisador Gilfrancisco Santos completa o perfil de Da Costa Andrade.

“O político: deputado estadual (1955-1959), foi líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN), e, atuante deputado que era, apresentou vários projetos nas áreas sociais, sempre beneficiando o trabalhador rural e em especial os palheiros”. Na área educacional, criou novas escolas, além da criação de vários municípios. Fundou, em 1958, o Partido Republicano – Seção do Piauí. Com a fundação de Brasília, foi nomeado chefe do escritório da Novacap (designação da nova capital do Brasil quando da sua inauguração, em 1960), em Recife, transferindo-se posteriormente com a família para a capital federal, para chefiar o gabinete do ministro da Educação e Cultura Clóvis Salgado. Da Costa Andrade foi um dos principais líderes da sua geração, considerado intelectual de alto nível e poeta de elevada estatura, ao ponto de impressionar, desde os primeiros contatos, o amigo Jorge Amado, que nele se inspirou, para talhar personagens de seus romances. Da Costa Andrade é o Ricardo Braz, de O País do Carnaval, editado em 1931, que marcaria a estreia literária de Jorge Amado”. (SANTOS, 2001)

Destaca-se na área sociocultural como fundador de duas entidades no Piauí: o Cenáculo de Letras, que publicava o periódico A Revista, e a Associação Piauiense de Imprensa.

Como poeta, embora tenha vencido concurso promovido pela revista O Século, em 1927, com um soneto, publicou apenas um livro, Rosal da Vida (Salvador, 1929), posteriormente inserido em publicação organizada e prefaciada por Jorge Amado, Rosal da Vida e Outros Poemas (Teresina: coedição de órgãos públicos, 1996), vinte dois anos após sua morte em Brasília.

 

N O I T E

 

Da Costa Andrade

 

Vejo o crepúsculo distender-se, lento,
como um negro lençol, pela cidade…
É noite: — geme e turbilhona o vento
enquanto eu cismo, em minha soledade…

 

Só nesta hora vêm-me ao pensamento
os quadros de perdida e tenra idade…

Pensar na vida é rude sofrimento,
é aguçar os espinhos da saudade!

 

Um sino dobra, além, triste e pausado;
e o coração de quem sofrendo vive,
pulsa de dor, saudoso e amargurado…

 

Ó Deus! com o teu poder, por caridade,
dá-me de novo bens que outrora tive,

— Faz-me voltar à minha tenra idade!

 

 

OSWALDO DIAS DA COSTA (1907-1979)

 

 

As dificuldades com que no curso de Humanidades do Colégio da Bahia se defrontava, no estudo da Matemática e cálculos de álgebra, podem ter sido o motivo do ingresso de Dias da Costa na Academia dos Rebeldes, em 1929, porém jamais com propósitos essencialmente literários; tinha outros interesses. Ao referir-se a ele, muitos anos depois, chamando-o de “o meu compadre Oswaldo, em tantas circunstâncias meu irmão”, Jorge Amado conta que começou a frequentar o Bar Brunswick, ponto de encontro dos Rebeldes, em Salvador, oferecendo-se como coletor de anúncios em cidades do Recôncavo, onde alardeava ter influências, para o primeiro e único número da revista Meridiano.

Jovem e desempregado, baixo, mas elegante e simpático, confiava na boa acolhida de seus préstimos. Lembra Jorge Amado que, em um fim de tarde, tendo-se sentado à mesa, “entrou direto na conversa maligna”, cheio de sotaques. Ao final, logo que ele saíra, anunciando retornar no dia seguinte, perguntaram a Pinheiro Viegas, que já o conhecia de outras trajetórias, qual a sua opinião sobre Dias da Costa, após o que ele expusera, ao que responde o ferino epigramista: “Para literato, ótimo; para agenciador de anúncios, nulo”. (AMADO, 1992)

Embora sem os prometidos anúncios, a revista circulou com virulento artigo de Dias da Costa contra o parnasianismo que fazia a festa dos poetas de então, tornando-se ele um dos mais destacados, ativos e eficientes membros da confraria, até depois nas atividades de pregação de ideias e combate ao ambiente conservador, ao ponto de Jorge Amado, já de muito vivendo no Rio de Janeiro, convidá-lo, em 1936, para substituí-lo no posto que ocupava na Livraria José Olympio, editora. Daí em diante, morando no Rio, passa a exercer atividades de jornalismo, como redator de agências telegráficas, jornais e revistas.

Como literato, escreveu dois romances, Canção do Beco (São Paulo: Rumo, 1939) e Mirante dos Aflitos (São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, com apresentação de Jorge Amado) e Estórias do Mirante dos Aflitos, uma publicação post-mortem (São Paulo: GRD/Instituto Nacional do Livro, 1980), ao que se supõe no tempo em que o escritor Herberto Salles esteve à frente do INL.

Fora disso, escreveu em colaboração com Jorge Amado e Edison Carneiro o romance intitulado Lenita que, lançado em 1931 por um editor do Rio, resultaria em completo fiasco e logo renegado pelos três. Peripécia adolescente que Jorge assim recorda jocosamente em Navegação de Cabotagem (1992): “Livrinho com todos os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três”. Amado lembra também o “tempo antigo, boêmio e debochado”, de Academia dos Rebeldes, em que ambos, ele e Dias da Costa, costumavam passar uma semana inteira hospedados em bordéis com prostitutas, que consideravam suas “namoradas, xodós, como se dizia”, à época. (AMADO, 1992)

 

OCTÁVIO MOURA (1909-1978)

Um dos redatores do único número da revista O Meridiano, mas também com firmes relações de amizade com alguns dos mais destacados membros da Academia dos Rebeldes, como Jorge Amado, Sosígenes Costa, José Bastos e o mentor de todos, Pinheiro Viegas, Octávio Moura Dias de Almeida deixaria Salvador, na mesma ocasião, para se instalar em Ilhéus, onde assumirá o cargo de redator-chefe do jornal Diário da Tarde, que concomitantemente se fundara em 1928, no qual, graças a seu descortino para com desdobramentos da modernidade, revolucionará o estilo de jornalismo então praticado no efervescente sul cacaueiro, de caráter agressivo, fomentado por acirradas disputas políticas e patrimoniais travadas entre coronéis do cacau.

Tinha 18 anos, quando assumiu o cargo, acompanhado de quatro gráficos que, com ele vieram de Salvador em um navio da “Bahiana”, três deles compositores e um impressor. E lá, em acanhado prédio da Rua Marquês de Paranaguá, curvado sobre a escrivaninha, redigindo, lendo e apurando textos, ou indo e vindo no contato com as oficinas, para levar textos que ele próprio redigia, fossem notícias, sueltos ou editoriais, e oferecer orientações ao setor gráfico. O primeiro número do Diário da Tarde, em 10 de fevereiro de 1928, já trazia seu nome como redator, para logo em seguida passar a redator-chefe e, finalmente, diretor. Octávio Moura desempenhou essas funções por 45 anos ininterruptos, só se afastando das responsabilidades do cargo e do jornal quando a saúde não mais o permitiu.

Reconhecido como jornalista nato, no tempo em que esteve à frente do Diário da Tarde, procurou imprimir à atividade do jornalismo um caráter de serviço voltado para o aperfeiçoamento da sociedade, mesmo ante as limitações que costumavam injuriar a vida dos habitantes de cidades do interior, embora o comércio exportador do cacau incutisse nos ilheenses aspirações de tinturas cosmopolitas e de incremento à cultura, apoiando as criações de prosa e poesia e, assim, contribuindo para tornar Ilhéus o mais expressivo polo cultural da Bahia, depois de Salvador.

Muito disso se deveu à mente arejada e ao dinamismo de Octávio Moura, conforme atesta em depoimento ao Jornal da Manhã (1978) Rubens Esteves Silva, que o viu chegar a Ilhéus, numa manhã de janeiro de 1928, e seria testemunha de como “o novo diretor comandou a folha com brilho invulgar por muitos anos, até quando surgiram indícios da doença e com ela começou a desaparecer aquela vivacidade e ânimo, tão apreciados pelos ilheenses”.

Além de jornalista, foi membro da Academia de Letras de Ilhéus (Cadeira nº 24), junto a outros dois de seus amigos Rebeldes, Jorge Amado e Sosígenes Costa; professor da Escola Técnica de Comércio de Ilhéus e, por fim, dá nome ao troféu que o Clube de Diretores Lojistas (CDL) confere anualmente à Imprensa ilheense. Entre cargos públicos, Octávio Moura exerceu o de adjunto de promotor público na Comarca de Ilhéus e o de inspetor seccional do Ministério da Educação. A ele, devo a publicação de meus primeiros afoitos poemas no Diário da Tarde, em Ilhéus. Pelas mãos gentis e compreensivas, dele publiquei poemas de minha lavra ainda adolescente e estudante colegial, no jornal que dirigia, pelos anos de 1951 e 1952.

“Meus amigos de Ilhéus mandaram um tinteiro de prata, com um cacau dourado, como recordação das conferências que ali fiz em novembro de 1934. Ponho tinta nesse tinteiro e a primeira coisa que me apetece é escrever um artigo sobre essas generosas criaturas do sul da Bahia. Começaria pelo jornalista Octávio Moura, tem um ar de menino e já é chefe de família. Pelo físico, parece ninguém e, entanto, subscreve artigos ótimos. Fiem-se nele, na sua cabeleira e nas doçuras de violinista cigano com que fala as lindas raparigas! É um articulista que consegue infundir paixão nas ideias e a alegria de moço, longe de prejudicá-lo, muito concorre para robustecer-lhe o bom senso de polemista. Quando necessário, sabe ele também, nos seus sarcasmos, ser um artista em venenos, fazendo passar mãos quartos de hora àqueles que detesta. Fino registrador sismográfico de tudo o que ocorre de interessante em Ilhéus, Octavio Moura, mau grado uns ares meio boêmios, organiza todo um jornal sozinho e quase sempre o organiza a primor”. (SANTOS, 2010).

Agripino Grieco, in O Jornal (coluna “Gente Amiga”); Rio de Janeiro, 10 de março de 1935, após uma visita a Ilhéus, em 1934, onde pronunciou conferências, a convite de Jorge Amado, e travou contato com intelectuais da Região do Cacau, segundo pesquisa de Gilfrancisco Santos.

 

 

GUILHERME DIAS GOMES (1912-1943)

 

Este é outro dos Rebeldes não nascidos na Bahia, desde que veio à luz em Natal, no Rio Grande do Norte, de pai baiano, engenheiro construtor de estradas, que chegou a trabalhar na tristemente famosa ferrovia Madeira-Mamoré, morto em 1925 em Salvador, onde Guilherme completou seus estudos e viria a se formar em Medicina em 1935, tornando-se em seguida médico do Exército, pelo que teve de fixar residência no Rio de Janeiro, onde viria a falecer ainda jovem, em 8 de outubro de 1943, de impaludismo, no Hospital Central do Exército.

Surpreendentemente, para a época, era um poliglota. Rebelde como ele, amigo e companheiro de tertúlias, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos, em depoimento, Édison Carneiro, garante ter sido ele “um dos poucos brasileiros que, na época, sabiam alemão na Bahia” e que, além disso, “sabia francês, inglês, espanhol, italiano e até se aventurou a estudar japonês e árabe”, acrescentando terem ambos até iniciado “um curso de nagô com Martiniano do Bonfim”.

Literariamente, dele pouco se sabe, além de colaborador da revista O Momento, entre 1931 e 1932. Após intenso trabalho de pesquisa, Gilfrancisco revelou faceta praticamente desconhecida de Guilherme Dias Gomes, a de ter publicado poemas de sua autoria, entre 1931 e 1933, nas revistas O Momento e Etc. e no jornal O Estado da Bahia. Não obstante, seu nome permanece como autor de um romance, até hoje misteriosamente inédito, intitulado Mercado Modelo, para cuja publicação não foram bastantes, ao que se supõe, o enorme prestígio, a fama e o admissível empenho do teatrólogo Dias Gomes (1922-1999), seu irmão mais moço e por ele muito admirado, tanto assim que, certa feita, chegou a confessar, referindo-se à sua vocação de escritor:

“Comecei a escrever para igualar-me a ele. Hoje, acho que fatalmente seria um escritor porque nunca descobri em mim aptidão para qualquer outra atividade. Mas as minhas primeiras experiências literárias foram determinadas pelo desejo de imitar meu irmão”. (SANTOS, 2021)

Em 1935, o amigo de confraria Édison Carneiro assim exprime o realismo da obra:

“O romance de Guilherme Dias Gomes, Mercado Modelo, fica limitado pelos muros da cidade. Explora a vida dos humildes, dos desprotegidos da sorte, tanto dos proletários, como a negra Brasilina, neta de escravos, quanto também do pequeno burguês que, em virtude das altas e baixas do capitalismo, como Belizário Portela, se proletarizou. E se sucedem, através do romance, as cenas de ternuras e de revolta, e a multidão dos tipos criados pelos antagonismos das classes sociais, - a cafetina, o coronel, a prostituta, o traidor do socialismo, o ladrão, o propagandista, o rebelde. São cenas pegadas ao vivo, com a marca registrada dos fatos diários. E, dominando tudo, está o Mercado Modelo, casarão infecto onde a gente mais heteróclita do mundo se acotovela na luta pela vida, vendendo, xingando, suando e alimentando o mesmo ódio sagrado pela classe exploradora”. (SANTOS, apud SOARES, 2012).

Em 1991, o caderno A Tarde Cultural publicou trechos desse inédito romance, por iniciativa do historiador Waldir Freitas de Oliveira, membro da Academia de Letras da Bahia, que obtivera uma cópia da obra fornecida pelo irmão do romancista, Dias Gomes, de que abaixo se oferece mostra, junto a alguns poemas, estes coligidos pelo pesquisador Gilfrancisco Santos.

 

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Excertos do romance inédito Mercado Modelo

 

Mercado. Rampa do peixe. Gente que se abalroa, grita, ajusta preços. Cheiro de maresia, suor, frutos sazonados, estrume, catinga e camarão fresco. O bojo dos saveiros carregados de melancias. Grandes chatas carregadas de moringues, uma lancha repleta de abacaxis. Uma floresta de mastros e de cordas, com bandeirolas alegres tremulando ao vento. A pequena distância, um “yacht”, todo branco e azul, imóvel sobre o espelho líquido da enseada. Junto ao cais, o sargaço e a salsugem de sempre, de mistura com cascas de laranja, tamancos velhos, peixes mortos, rebotalho das redes lançadas ao mar pelos pescadores. E, na rampa, o limo verde e escorregadio tornando o acesso difícil. Os peixeiros, junto ao cais, repartem os pescados cortando-o com o machado em grandes cepos de madeira, num espadanar de espinhas e escamas prateadas. Um grupo de marinheiros alemães procura em vão compreender o preço de umas laranjas. Na beira do cais, um caminhão carregando. Os tijolos vinham no bojo de um dos saveiros, jogados um por um.

 

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     Na sala de jantar, Mestre Júlio conversava cercado de ouvintes.

     É o que estou dizendo. Terno de Reis só naquele tempo. Hoje é anarquia. Umas modinhas muito sem graça. Uma tal de música americana muito mole, muito arrastada, cheia de love you.

Picou com o canivete o fumo para encher o cachimbo. Acendeu. Deu uma tragada para experimentar a permeabilidade do tubo. Cuspiu para o lado.

     Vocês estão vendo essa gente? No meu tempo era outra coisa. Gente boa e muito boa. E tudo muito bem ensaiado. Não era essa sujeira. A gente ia de casa em casa cantando, dançando. As moças vestiam aqueles vestidos bonitos de pastoras. Os rapazes, de branco, chapelão de palha enfeitado de flores. As mulatas com os panos-da-costa e os torços de seda. O zabumba na frente. Chegava assim numa casa, eta diabo!

Pôs o cachimbo no canto da boca, batendo com as mãos em concha enquanto cantava em surdina:

“Ô de casa nobre gente

escutai e ouvireis

lá da banda do Oriente

são chegados os três reis”

     Era um deus nos acuda. Todo mundo corria para a janela. A rapaziada boa aí continuava:

“Nessa noite tão ditosa

é bom que vós não durmais

porque tão alta ventura

não é justo que percais”

     Já a rua estava cheinha de gente que vinha admirar. As pastoras aí faziam o estribilho:

“Inda bem que há de vir

que somos de longe

queremos nos ir”

     E as menorizinhas cantavam:

“Ó senhor dono da casa

quer que vos diga quem é?

é um cravo de amaranto

com uma açucena ao pé”

     O dono da casa já estava todo contente de ser um cravo de amaranto. Estava já abre não abre a porta. E o coro repetia:

“Inda bem que há de vir

que somos de longe

queremos nos ir”

     Então, o pessoal todo cantava junto:

“Senhora dona da casa

mande entrar se faz favor

que do céu estão caindo

pinguinhos de água de flor”

     Não havia jeito. A porta se abria e a gente tinha de tudo. Vatapá. Moqueca. O diabo a quatorze. Hoje não se vê disso. As negras já nem querem usar pano-da-costa!

 

*****

 

     “A vida no Mercado nascia com a alvorada. Já antemanhã, antes do lusco-fusco, padeiros passavam, tiritando de frio, na faina da entrega. Guardas-noturnos se recolhiam cabeceando de sono. Motorneiros da Linha Circular iam para a primeira viagem. E o homem do pão, com o saco às costas e a toalha à cabeça, o português com o tabuleiro repleto de hortaliças, o pescador bronzeado com a rede ao ombro, a negra do mingau que se recolhia da venda noturna, eram vultos imprecisos ainda mergulhados na treva. Mas, pouco a pouco, esta se diluía em crepúsculo. O galo amiudava o canto. Um sino batia soturno, na Cidade Alta. Outro, cristalino, respondia ao longe. E as igrejas despertavam, numa orgia espantosa de sons. Guizalhantes, uns, outros, tristonhos. Uns gostosos, repicados, cantantes, como vindos de grandes cigarras aboletadas nas torres. Outros cavos, como um ressoar de passos em catacumbas antigas”.

 

*****

 

     “Só depois de muitos dias, Honório conseguiu trabalho como carregador num trapiche. Trabalho pesado. Duro, mesmo. Tinha de ficar de corpo nu porque não havia roupa que aguentasse. Os fardos que pegava às costas rasgavam tudo. E tinha que começar a qualquer hora, quando as embarcações aparecessem para descarregar. Sacas de açúcar, de cacau, de café. Rolos de arame farpado. Grandes tambores de gasolina. Tábuas, vigas, pranchões gigantescos. Os companheiros eram todos fortes como ele. Podia-se-lhes contar os músculos fortemente desenhados sobre a pele. Passavam gemendo, muitas vezes, sob o peso dos fardos. Alguns tinham o cabelo gasto ao centro da cabeça, pelo roçar dos volumes da carga.

Se uma embarcação atracava, tinham que descarregá-la ou enchê-la, sem perda de tempo. Lançava-se uma prancha entre a ponte do trapiche e o convés. E, cadencialmente, uns atrás dos outros, traziam na cabeça toda a carga do barco. Dentro do armazém enorme, cujas traves de aço se cruzavam no alto, sustentando o enorme telhado, tudo era lançado nas vagonetes e transportados pelos decauvilles.

O capataz, um francês gordo e vermelho, de roupa cáqui, lápis em punho tomava nota do número de volumes. Adiante, na sessão de pesagem, seu Severino, um velhote de óculos à ponta do nariz, conferia o peso na balança decimal e também tomava nota. Havia um cheiro próprio e indefinível sempre no ar. Cheiro que vinha dos rolos de corda, das latas de tinta, dos fardos de cacau, das sacas de açúcar. Mistura de óleo de peixe, café, breu, com o odor das madeiras de construção.

Às onze e meia, Amaro, um pernambucano taciturno e desconfiado, batia num pedaço de trilho pendurado fora, a hora do almoço. Cada um ia buscar sua lata. Um pouco de carne-do-sertão assada, pirão de água fria ou farinha, um pedaço de rapadura como sobremesa. O dinheiro não dava para luxos. Alguns mais gastadores esbanjavam-no comprando bagos de jaca ou bananas nas mulheres de tabuleiro que estacionavam perto”.

 

*****

     “Era a última das novenas da Conceição e a igreja tem a fachada resplandecente de luzes. Houve a preocupação de realçar todos os ornados de cantaria, da cruz ao chão, com lâmpadas elétricas. Dentro e fora do templo a melodia plangente das ladainhas forrada pelo acompanhamento macio do órgão.

Nelito, na porta, se põe na ponta do pé para descobrir Miúda, ajoelhada no último banco, ao lado de Judite. Faz esforço incrível para não pisar o aleijado que, no meio de tanta gente, se conserva sentado no batente. Sente o bafio pesado da multidão que se comprime de envolta com o cheiro bom do incenso. Senhoras gordas e pesadas, sem noção de espaço, insistem em penetrar na igreja puxando pela mão o marido e os filhos. Mocinhas de branco, trazendo, com ar seráfico, velas bentas, esgueiram-se pedindo pelo amor de Deus não lhe pisem os véus de filó branco. Crioulas, cinzentas de pó de arroz, com laços azuis de fita no pescoço e raminhos de manjericão metidos na carapinha cuidadosamente dividida em pequenas tranças, mesmo de pé desfiam fervorosamente terços sobre terços. Velhos homens do mar, tostados pelo sol que aquece as jangadas e os saveiros abertos, vestidos nos ternos de brim domingueiros, escutam, de chapéu na mão e olhos no altar. No interior, mergulhada na profusão de luzes, enrolada nas espirais de incenso, emoldurada nos ornatos brancos e ouro dos altares, ladeada de castiçais monstruosos de prata maciça e quase sufocada num oceano de flores alvíssimas de papel de seda, a imagem da Virgem destoa do ambiente luxuoso pela simplicidade quase humilde com que mostra nos braços o Jesus Menino”.

     “Regina angelorum!”, reza o padre.

     “Ora pro nobis”, soluça o coro plangente.

 

*****

     “Depois de encher na roça do seu Mário o balaio de laranjas-de-umbigo, espera o bagageiro que deve passar dentro em pouco e chega, efetivamente, superlotado. Martiniano acha meio de se agarrar na parte traseira, ajeita o balaio das laranjas como pode, por baixo do banco. Desfaz o torço que trazia à cabeça e com o pano limpa o suor. O bondinho segue a sua marcha entre o tilintar da campainha e as pagas do condutor, enfurecido pela dificuldade de cobrar as passagens.

Aliás, o taioba é sempre um bonde divertido e Martiniano pensa que a parte mais divertida do seu dia é quando viaja nele. Não há os tais três primeiros bancos onde não se pode fumar, não se exige gravata nem calçado. Não indo nu, tudo está bem. Pode acender o seu cachimbo, espichar o pé descalço doído de tanto caminhar, tirar seu cochilo ou dizer suas pilhérias, porque ninguém repara. E, depois, o taioba é quase um prolongamento ambulante do Mercado. Tudo que o Mercado tem o taioba também tem ou pode ter. Capoeiras de galinha, perus amarrados pelos pés, leitoinhas gordas e gritadeiras, e até cabras e carneiros viajavam nele. Caixotes enormes, balaios, malas de costura, móveis de toda espécie, uma balbúrdia dos pecados. Mas por isso mesmo a viagem era mais alegre.

     Ei, dona Maria. Vosmicê já pagou?

É o condutor, vermelho do esforço que faz para romper caminho, o quépi jogado para trás, as listas de sujeira aparecendo em toda a camisa e principalmente no colarinho e nos punhos. D. Maria (o diabo do condutor acertou o nome!) acha que é desaforo cobrar duas vezes e não responde. Vira o rosto num gesto malcriado.

Um molequinho viaja de graça no estribo, procurando não ser visto. O taioba chegou agora às Sete Portas e para, para tomar carga num armazém. É um volume grande e não se sabe como poderá caber no meio de tanta gente. O espanhol, dono do estabelecimento, está à porta, em mangas de camisa, cabelo lustroso de brilhantina.

      Qualé, seu Serafim!, desista que esse mondrongo não pode caber aqui.

     Tem que caber de qualquer jeito, meu santo.

     Mas como?

     Ora, muito simples. Vocês vão sentados em cima do volume e eu não cobro nada por isso.

     Quá!

E fez-se o que o espanhol queria. O gringo, afinal, era camarada.

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Cinco Poemas de Guilherme Dias Gomes

 

AVIÃO

O avião parece
Uma abelha rútila de aço
Aflita por pegar o sol,
Que é uma rosa de fogo
Transplantada no espaço.

Zumbe, trepida, na ânsia de alcançar
A corola de luz para sugar.

Avião!
Pareces bem o coração da gente
Lutando para beijar o sol
eternamente!
Inutilmente.


(Salvador. O Momento. Ano I, nº5, 15. nov. 1931).

 


POEMA DAS MÃOS

Há poemas inteiros no côncavo das mãos:
Na angústia milenar das falanges lendárias
pela ânsia de agarrar o mais puro e mais alto;
na palma aveludada das mãos que acariciam,
mãos de noiva…

Nas mãos gordas de bebê, leite e seda rodada
com pedaços de luz na carne perfumando;
na mão que anseia e na que renuncia,
há poemas de dor em versos de agonia.

Quanta angústia nas mãos descarnadas do mendigo
que morre à fome, exangue, nas estradas,
e o sol encontra em crispações nervosas,
no horror das últimas geadas!

E nas mãos negras do assassino,
pálidas, escorrendo
longos fios de sangue pelos dedos!

Quantos poemas
no prestígio das mãos esguias que dançam no teclado,
despetalando sons pelo silêncio:

Oh. O mágico fascínio das mãos longas
que bordam lentamente

no coração da gente.
a arabescada doida de belezas bizarras
com a lã policromia das nuvens do poente!

e quando
sentindo em si as desgraças alheias!
nas mãos do pobre, pelos dedos rolos.
deixais cair moedas a mancheias…

Mas vos adoro sobretudo, ó mãos!
nas crispações violentas dos gestos de revolta

(Salvador, Etc., Ano VII. nº 216, 15, Jul., 1933)


GARGALHADA

Solta do peito os Iguaçus do riso
cascateando em borbotões sonoros.
O próprio sol é um gargalhar de lua
e na acácia do jardim,
florida,
os mil milhões de flores
são mil milhões de gargalhadas d’oiro
num desperdício fantástico de vida!…

Traze sempre contigo, o sol de uma gargalhada
e um riso amigo para as misérias todas
e a sombra da tristeza fugirá da estrada,
quando gargalhares tua gargalhada,
numa alegria festiva! De bodas!

(Salvador, Etc., Ano VII nº 218. 15. ago. 1933).


O TEU POEMA

Quisera que este poema
fosse o teu poema.
Que tivesse perfumes esquisitos
estonteantes
das matas verdes da minha terra,
das noites de luar da minha terra.
Quisera que este fosse o teu poema,
Que eu fizesse com raios de sol
e braçadas de flores,
onde cantasse o hino das manhãs radiosas,
Onde todos os pássaros cantassem
e cantassem todos os cantares
as toadas macias da minha terra.
Quisera por nestes versos todos os diamantes
dos garimpos ignotos de minh’alma,
todos os instantes
felizes da minha vida
e oferecer de joelhos
a ti a Deusa dos cabelos revoltos
a minha Deusa.
Então
para bordar estes teus versos
faria viagens arrojadas
por países diversos,
gastaria somas fabulosas
na descoberta de minas inexploradas
de ouro puro.
Mergulhadores desceriam à procura de pérolas.
Caravanas vistosas
levariam meses trazendo todas as riquezas
todas as belezas,
que eu desejaria incrustar no teu poema.
Mas vejo que é inútil o meu esforço,
inútil a minha tortura
(a cidade do sonho tem ruas de amargura),
teu poema está condenado a não sair de mim mesmo,
a morrer na garganta
balbuciante
com a tristeza das flores que não desabrocharam
e dos versos que não foram ditos…

(Salvador. Etc., Ano VII, nº 219. 31.ago.1933).


A MINHA BAILARINA

Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que vejo em meio às gambiarras,
A tecer arabescos em passos lentos,
E leve, bem leve,
Me põe na vida por alguns momentos
A alegria inquieta das cigarras…

Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que sempre vejo em sonho, noite alta.
Olhos verdes de mar
Perdidos a cismar.
A refletir as luzes da ribalta…

 

 

CLÓVIS AMORIM (1912-1970)

 

 

Oriundo do Recôncavo baiano, de onde trazia as marcas dos canaviais, a inclinação para agradável convivência e o gosto pela boemia, poeta satírico e principalmente romancista, Clóvis Gonçalves Amorim foi um dos companheiros mais animados e queridos da Academia dos Rebeldes. Espírito brincalhão e cultor da boa conversa, era sempre aguardado com alegria e festa, quando de seus regressos da cidade de Santo Amaro da Purificação, onde nasceu, por um detalhe mais que hilário, tanto que veio a merecer registro satírico em versos de Jorge Amado: era quando trazia a mesada de 90 mil réis, fornecida pelo pai alambiqueiro, com os quais custeava as rodadas de bebida e acepipes no Bar Brunswick, obrigatório ponto de encontro dos Rebeldes.

O pesquisador Gilfrancisco Santos assim descreve o personagem: “Com quase dois metros de altura, Clóvis Amorim chegou a Salvador para cursar o ginásio, mas não conseguiu viver na capital baiana, pois a única coisa que o interessava era o jogo do bicho. Vivia das lembranças dos vícios do Recôncavo baiano: apreciador e apostador nas brigas de galo, se desmanchando nos sambas, cocos e chulas da Bahia”. (SANTOS, 2021)

Clóvis Amorim foi um ativo colaborador da revista O Momento e publicou os romances Alambique e Chão de Massapê, sendo que o primeiro em 1934 (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio); acolhido pela crítica, seria definido como obra enquadrada na estética do novo romance nordestino.

Em artigo no jornal A Bahia, no mesmo ano, o etnólogo Édison Carneiro, rebelde como ele, comentando o romance, dizia tratar-se de um “acontecimento estranho, surpreendente, na literatura nacional”, e explicitava o porquê: “Não há nele a luta do homem por modelar a natureza à sua vontade. Pelo contrário, há uma verdadeira apatia nos personagens desse drama – o da cachaça – até hoje desconhecido do Brasil. O verde dos canaviais, as máquinas de fabricação da boa-pra-tudo, a moleza da vida humana nessas regiões que o Progresso esqueceu, formam como que a única realidade viva que se agita no livro”. (SANTOS, 2021)

O segundo romance só sairia muitos anos depois, em conjunto com a reedição do primeiro por iniciativa do editor Gumercindo da Rocha Dórea, em convênio de sua editora com o Ministério da Educação e Cultura (São Paulo: GRD/MEC, 1980).

Quando faleceu em Salvador, em 18 de agosto de 1970, coube ao poeta e seu amigo Godofredo Filho pronunciar a oração fúnebre, perante os que compareceram ao velório de seu corpo na câmara ardente da capela do cemitério do Campo Santo, na qual afirmava: “Estou certo de que, quando se escrever, amanhã, a verdadeira história literária da Bahia, a figura de Clóvis Amorim como poeta satírico avultará, tal seu físico se agigantava em vida, sobre a planície cinzenta em que pululam tantos pigmeus de nossas letras”.

Abaixo, poemeto de recorte burlesco com que Jorge Amado celebrou, em edição de O Momento, a presença de Clóvis Amorim entre os companheiros Rebeldes: 

 

Mingau à meia-noite,

quando Clóvis Amorim

chegava, alto e destruidor,

de Santo Amaro,

com 90$000 no bolso

e a sua alegria boa. 

 

Foram Clóvis Amorim

e Souza Aguiar

os grandes corações

que trouxeram um pouco de ternura,

de lirismo,

à aridez de nossas vidas literárias

horrivelmente literárias.

 

https://www.destaquenoticias.com.br/guilherme-dias-gomes-um-rebelde-potiguar-na-bahia/?fbclid=IwAR16z3_-SxtsoXBR_A76K9e2XE9jyRDb3oni39r4diXtTaiXjSmT2zEU1zQ

 

ÉDISON CARNEIRO (1912-1972)

 

Depois de Jorge Amado, dentre todos que constituíam a grei da Academia dos Rebeldes, Édison de Sousa Carneiro foi o nome seguramente a alcançar maior amplitude de reconhecimento nacional, talvez por ser quem melhor traduziu a resposta do substrato negro-mestiço identificado com formas de representação da cultura popular, que se amoldavam ao pensamento estético propagado já como desdobramento da Semana de Arte Moderna, a partir de São Paulo.

Ainda aos dezesseis anos de idade, cedo começou a atuar em jornais e revistas locais, assinando artigos e crônicas, até chegar ao posto de redator-chefe de O Estado da Bahia. De origem modesta, pertencia a uma família que não lhe podia oferecer qualquer regalia. Com toques chistosos, Jorge Amado descreve esta condição do amigo Rebelde (1992): “O mais pobre de todos nós seria Édison Carneiro, membro de família numerosa. O pai, professor Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal ganhava para as despesas inadiáveis da prole, consta que jamais pagou o aluguel da casa dos Barris – nós a intitulamos de Brasil, por imensa e suja – com sótão e jardim onde vivia com a mulher e os filhos: todos vestidos com as batas de professores da Politécnica, arrebanhadas pelo catedrático”. AMADO, 1992) Entre os irmãos, estava Nelson Carneiro, futuro advogado e grande tribuno, deputado estadual e federal, e senador, autor da Lei do Divórcio, que chegaria a presidente do Senado, mas muito antes, mal se diplomara em Direito, em Salvador (1900), exerceu a profissão de advogado em Ilhéus, onde chegaria a prefeito, eleito em 1908.

Por efeito da descendência, cedo também Édison Carneiro não só se identificou, como se empolgou com os múltiplos aspectos sociais e místicos dos cultos populares de matriz africana, tornando-se um de seus maiores estudiosos e talvez o seu maior e mais dedicado defensor. Diplomado em Direito, em 1935, mudou-se em 1939 para o Rio de Janeiro, onde já chegou com a fama de competente etnólogo. Em Salvador, ainda como Rebelde, com Jorge Amado e Dias da Costa, lançou e liderou campanha em defesa da liberdade de culto do candomblé, alvo de feroz perseguição policial, com prisões, torturas e espancamentos.

“A polícia invadia os terreiros, quebrava, prendia, espancava. Era terrível. Os pais-de-santo não podiam fazer nada. Alguns políticos influentes tinham uma certa ligação com o candomblé, mas escondiam essa ligação. (…) O apoio dos políticos não era efetivo – davam dinheiro, ajudavam, mas na hora do pau comer, eles tiravam o corpo fora”, relata Jorge Amado, que creditava ao amigo a sua aproximação, interesse e respeito pelo culto do candomblé. Assegura que, ao aderir à luta nesses tempos amargos para os seguidores desses rituais assentados em sentimentos de humanismo plural, não iam aos terreiros “para arrancar informações e, sim, no sentido fraternal de conhecer, de participar, e sempre respeitando muito o lado sigiloso, secreto”. (AMADO, 1992)

Nessa linha participativa, Édison Carneiro funda em 1937 a União das Seitas Afro-Brasileiras, no fundo uma federação das casas de candomblé, fruto de seu trabalho como estudioso da cultura negra. Além de atuar em jornais e revistas da Bahia e do Rio de Janeiro, exerceu funções de redator de publicações do MEC (Ministério da Educação e Cultura) e de diretor da Campanha de Defesa do Folclore. Morreu em 3 de dezembro de 1972, como funcionário da Confederação Nacional da Indústria.

Literariamente, além de sua participação no fiasco editorial do romance juvenil Lenita, escrito juntamente com Jorge Amado e Dias da Costa e publicado em 1929, dele se conhece, assim mesmo por descoberta que se deve ao esforço do pesquisador baiano Gilfrancisco Santos, um conjunto de trinta poemas de construção irreverente, próxima da primeira fornada modernista, publicados sob a forma de folhetim em jornais, em 1928, sob o título de Musa Capenga. No restante, é autor de vasta e consagrada obra etnográfica e folclórica, cuja publicação se inicia com Religiões Negras. Notas de Etnografia (Rio: Civilização Brasileira, 1936), seguindo-se outras 19, entre as quais: Negros Bantus (Rio: Civilização Brasileira, 1937); Castro Alves – Ensaio e Compreensão (Rio: Livraria José Olympio, 1937); O Negro no Brasil (Rio: Civilização Brasileira, 1940); Quilombo de Palmares (São Paulo: Brasiliense, 1947); Candomblés da Bahia (Salvador: Museu do Estado, 1948); Antologia do Negro Brasileiro, 1950; A Insurreição Praieira (Rio: Conquista, 1961); Ladinos e Crioulos (Estudo sobre o Negro no Brasil) - Rio: Civilização Brasileira, 1964 (Apresentação de Manuel Diégues Júnior).

“Foi assim que a cidade da Bahia de Todos os Santos encontrou o seu grande poeta e o seu grande sociólogo. A imaginação o levou aos meios africanos, ao mistério das macumbas, à beleza dos candomblés. O desespero da época fez com que ele produzisse ensaios em vez de poemas. Agora sai seu primeiro livro: Religiões Negras. Apesar de primeiro livro, não é livro de estreante. Aos 24 anos, Édison Carneiro, mesmo sem livro, já era um grande nome.” (AMADO, apud SEIXAS, 2020)

 

 

EXTRATO DE POEMA DE ÉDISON CARNEIRO

 

Ah, negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[…]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial [?].

Vou ao Pau Miúdo
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.

 

 

JORGE AMADO (1912-2001)

 

Escritor brasileiro mais conhecido no exterior, traduzido em dezenas de idiomas, e um dos mais lidos do País, com mais de duas dezenas de livros publicados, Jorge Amado de Faria nasceu na Fazenda Auricídia, em Ferradas, então distrito de Itabuna, que dois anos antes se emancipara de Ilhéus, cidade onde por cerca de dois anos residiria, em solar construído pelo pai, João Amado de Faria, hoje sede da fundação cultural do município. Aos dez anos vai para Salvador estudar no Colégio Antônio Vieira, onde completa o curso secundário. Inaugura sua vocação literária, publicando três poemas na revista A Luva.

Em 1928, aos 16 anos, funda, em Salvador, com outros de quase a mesma idade, a Academia dos Rebeldes, misto de exercício de boemia e aspirações literárias sob influência da grande onda modernista, que poucos anos antes eclodira em São Paulo, tendo como mentor deles o jornalista panfletário Pinheiro Viegas. Escreve para a revista de único número, Meridiano, órgão de propagação das ideias do movimento. Em 1931, muda-se para o Rio de Janeiro, levando debaixo do braço os originais do seu primeiro romance, O País do Carnaval, com uma carta de Pinheiro Viegas recomendando-o ao já então influente crítico literário Agripino Grieco; aí, ingressa na Faculdade Nacional de Direito. Mas antes, ainda em Salvador, cometera estripulia literária, de que depois se arrependerá, representada pelo romance Lenita, escrito a seis mãos, juntamente com dois de seus amigos Rebeldes, cujo fiasco editorial ele próprio narraria, em tom de pilhéria.

“Dias da Costa, Édison Carneiro e eu, em 1929, escrevemos em colaboração um romance sob o título de El-Rey, publicado em folhetim em O Jornal, órgão da Aliança Liberal na Bahia. Um editor do Rio, A. Coelho Branco Filho – jamais esquecerei, pois foi o primeiro a colocar meu nome na capa de um livro, o primeiro a me ficar devendo direitos autorais –, lançou-o em volume em 1930, capa medonhosa, com o título de Lenita. Livrinho com todos os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. ´Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três´” (AMADO, 1992).

Por essa época, além de publicar o primeiro romance, aos dezenove anos, ingressa no Partido Comunista Brasileiro e mete-se, com Édison Carneiro e outros, em campanha pela defesa da liberdade religiosa, visando livrar de proibições e perseguições os cultos de origem africana, como o candomblé, postura que lhe consome anos de dedicação e luta. O segundo romance, bibliograficamente reconhecido, Cacau, sairia em 1933, ano em que se casa com a poeta Matilde Garcia Rosa. Segundo a crônica, o envolvimento político leva-o à prisão e ao exílio, tendo inclusive exemplares de sua obra, como o romance Capitães da Areia, queimados em praça pública pela ditadura Vargas.

Preso por várias vezes, a terceira ocorrida em 1942, recebeu beneplácito discricionário de cumprir a pena confinado em Salvador, onde trabalhou no jornal O Imparcial, então propriedade do coronel Franklin Lins de Albuquerque, senhor do São Francisco e pai de seu amigo e futuro escritor Wilson Lins. Em 1945, casa-se com Zélia Gattai e é eleito deputado federal por São Paulo, para compor uma histórica Assembleia Constituinte, em que figuravam altos representantes da inteligência e da cultura brasileira (entre outros, Afonso Arinos, Armando Fontes, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema, João e Otávio Mangabeira, Luiz Carlos Prestes, Luiz Viana Filho, Nestor Duarte, Plínio Salgado, Prado Kelly, Tarsilo Vieira de Melo), responsável pela alta configuração democrática da Constituição Federal de 1946, ao amparo da qual apresenta projeto de lei em favor da liberdade de culto religioso no país, mas logo depois tem o seu mandato cassado (1947), após ser o PCB lançado na ilegalidade. Segue então para a Europa, passando a residir em Paris e Praga, onde escreve O Mundo da Paz. Pelo conjunto da obra, em 1951, recebe o Prêmio Internacional Stálin, regressando ao Brasil em 1956. Elege-se, em 1961, para a Academia Brasileira de Letras e, dois anos depois, muda-se para Salvador, residindo em bucólica mansão construída nos Altos do Rio Vermelho, hoje museu.

Escreveu para diversos jornais e periódicos do Brasil, entre os quais O Jornal, O Estado da Bahia, O Imparcial, Boletim de Ariel, Dom Casmurro, Diretrizes, A Tarde, Última Hora, Para Todos, Folha da Manhã. A vasta e prolífera escritura de Jorge Amado, quase toda marcada pela crítica social e pelas mazelas e injustiças que oprimem o ser humano mundo afora, pode ser, aleatoriamente, distribuída por três vertentes: a telúrica, cujo cenário são a região do cacau, o Recôncavo e o sertão; a urbana, que tem como referência principal a cidade do Salvador, e a de conteúdo estritamente político e memorialístico.

No primeiro bloco, podem-se alinhar O País do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Terras do Sem-Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1945), Seara Vermelha (1946), Gabriela, cravo e canela (1958), Tieta do Agreste (1977), Tocaia Grande (1984). Do segundo, seriam: Jubiabá (1935), Mar Morto (1935), Capitães da Areia (1937), Bahia de Todos os Santos (1945), Os velhos marinheiros, que inclui a novela A morte e a morte de Quincas Berro D´água (1961), Os pastores da noite (1964), Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tenda dos Milagres, (1969), O sumiço da santa (1988), Tereza Batista cansada de guerra (1972), Farda, fardão, camisola de dormir (1979), A descoberta da América pelos turcos (1992). Enfim, integrariam o último grupo: ABC de Castro Alves (1941), O cavaleiro da esperança (1942), Amor de Castro Alves (1947), O Mundo da Paz (1951), Subterrâneos da Liberdade (I. Os Ásperos Tempos; II. Agonia da Noite; III. A Luz do Túnel, 1954); Navegação de Cabotagem (1992). E, como curiosidade, um de poesia: A Estrada do Mar, 1938.

Jorge Amado morreu em Salvador, em 6 de agosto de 2001, a quatro dias de completar 89 anos. A ligação ainda juvenil com a religião dos orixás fê-lo obá do candomblé Axé Opô Afonjá e, talvez por isso, como anota Alberto da Costa e Silva, “uma das últimas homenagens no seu velório tenha sido prestada por um grupo de mães de santo, que, vestidas inteiramente de branco, lhe encomendaram o corpo”. (SILVA, 2010)

Além de ser um autor de imensa popularidade, com uma obra fiel aos princípios do humanismo e quase toda associada à crítica social e à denúncia das injustiças, Jorge Amado foi também um extraordinário criador de figuras femininas em seus romances, mas, só em 2013, surge o alvissareiro anúncio de que lhe seriam abertas as portas dos estudos universitários, antes sempre a ele misteriosamente fechadas, a começar por São Paulo. Segue abaixo criação de sua raríssima lavra poética.


CANTAR DE AMIGO DE GABRIELA

Jorge Amado


Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Palácio real lhe dei
um trono de pedrarias
sapato bordado a ouro
esmeraldas e rubis
ametistas para os dedos
vestidos de diamantes
escravas para servi-la
um lugar no meu dossel
e a chamarei de Rainha.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Só desejava uma campina
colher as flores do mato.
Só desejava um espelho
de vidro, pra se mirar.
Só desejava do sol
calor, para bem viver.
Só desejava o luar
de prata, pra repousar.
Só desejava o amor
dos homens, pra bem amar.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

No baile real levei
A tua alegre menina
vestida de realeza
com princesas conversou
com doutores praticou
dançou a dança estrangeira
bebeu o vinho mais caro
mordeu uma fruta da Europa
entrou nos braços do Rei
Rainha mais verdadeira.

 

Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?

 

Manda-a de volta ao fogão
a seu quintal de goiabas
a seu dançar marinheiro
a seu vestido de chita
a suas verdes chinelas
a seu inocente pensar
a seu riso verdadeiro
a sua infância perdida
a seus suspiros no leito
a sua ânsia de amar.
Por que a queres mudar?

 

 

AYDANO DO COUTO FERRAZ (1914-1985)

 

 

Graças à sua vocação para o jornalismo, que exerceu por toda a vida, Aydano Pereira do Couto Ferraz foi um dos mais ativos membros da Academia dos Rebeldes, deixando, como marcas de sua participação no movimento modernista, coletâneas de ficção e poesia sobre o mar. Diplomado em Direito (1937), permaneceu em Salvador até 1939, quando se transferiu para o Rio de Janeiro e lá fixou residência. Exerceu funções de editor em O Jornal e de coordenador de Redação no Correio da Manhã.

Tanto na Bahia como no Rio, com Jorge Amado e Edison Carneiro, empenhou-se na luta em defesa da liberdade religiosa, atuando firmemente contra perseguições às práticas do candomblé. Na esfera pública, ocupou cargos de técnico em educação e de comunicação social, editando revistas do Ministério da Educação e Cultura. Como político, foi por muitos anos ativo dirigente do Partido Comunista Brasileiro.

Escritor e poeta, publicou ainda em Salvador Apicuns (Novelas Praieiras), em 1932, e Cânticos do Mar, em 1935, que receberam boa acolhida por parte da crítica. Como nutria visão utópica e humanista da vida e da sociedade, o mar, o amor, a esperança e a liberdade foram os temas prediletos de sua arte literária. Comentando o seu primeiro livro, o crítico Carlos Chiacchio reconheceu nele “um pintor de marinhas”, e ainda mais se revela um apaixonado pelo mar, no segundo, ao ponto de em seus versos desejá-lo “serenamente enquadrado no horizonte, / limpo de velas, de mastros e de ruídos das dragas do porto. / - Um mar soberano, sem a vassalagem das ondas”.

Publicou mais três livros: Pequena História da Caricatura no Brasil, 1942; Os Poemas Perdidos e seu Reencontro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1984); A Luta do Símbolo (Belo Horizonte, 1985).

 

“Aydano Pereira do Couto Ferraz se realizou amplamente como jornalista, foi diretor de jornal e revistas, mas sobretudo poeta. Teve em vida duas grandes vocações: a poesia e a política. E assim ficou a vida inteira, fiel à sua vocação inicial, à sua primeira vocação.” (SANTOS, 2010).

Isto é, foi sobretudo um poeta, mas um criador cuja obra não foi capaz de empolgar as gerações que o sucederam. No dia seguinte a sua morte em Brasília, o colunista político Carlos Castelo Branco, informou em sua coluna de 7 de agosto de 1985, no Jornal do Brasil:

“O jornalista e escritor baiano Aydano do Couto Ferraz, companheiro de geração e de vida literária de Jorge Amado, foi enterrado ontem em Brasília, onde faleceu na véspera. Aydano teve destacada atuação no Partido Comunista Brasileiro, na fase da atuação legal, de 1945 a 1947, quando exerceu a direção do jornal Imprensa Popular, órgão de propriedade e de doutrinado velho PCB”. (SANTOS, 2010).

 

CANTO DA ESPERANÇA

 

Minha esperança,
A asa azul do sonho
tocava minha fronte solitária
na noite em que te vi.

Se tu foras a aurora,
minha amiga,
não te quisera a ti.
Há que mil anos a aurora se repete!
Hás de ser sempre nova, matutina,
entre as névoas do céu te descobri!

Vê se despertas nesse peito rude
as notas sentidas que ele já exalou.
Fala do mar ao teu irmão poeta,
povoa de primaveras a sua alma,
sonhos no coração,
que em troca de um olhar
dou estes versos,
em troca de um sorriso
- uma canção -

Aydano do Couto Ferraz - (In Os poemas Perdidos e o seu Reencontro. Rio de Janeiro,1950.)

 

 

WALTER RAULINO DA SILVEIRA (1915-1970)

 

 

Último a ingressar nas hostes da Academia dos Rebeldes, mais disposta a acolher nomes inclinados ao exercício da literatura e do jornalismo, sem qualquer interesse por outras linguagens, até mesmo as artes plásticas e a música, o que pode ser debitado, na época, à predominância do conservadorismo nesses campos, baiano de Salvador, Walter Raulino da Silveira viria a projetar-se no cenário cultural como “homem de cinema”, tal a sua precoce identidade com a Sétima Arte, em nível até de pioneirismo regional, e advogado, com larga fama de defensor de operários e favelados, por seu vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, de 1945 a 1957.

Diplomado em 1935, a opção política levou-o a abandonar o cargo de juiz de Direito para abraçar a carreira de advogado trabalhista, chegando a atuar como causídico de 26 sindicatos operários. Na esfera política, exerceu mandato de deputado na Assembleia Legislativa da Bahia de 1955 a 1959.

Grande fomentador cultural, desde a juventude, tornou-se figura exponencial do desenvolvimento do cinema no estado, a partir da fundação do Clube de Cinema da Bahia, em 1950, quando também atuou como colaborador de Caderno da Bahia, revista representativa do movimento artístico e literário que surgira em 1948, revelando nomes como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Rubem Valentim, nas artes plásticas, Vasconcelos Maia, na ficção literária, e Wilson Rocha e Jair Gramacho, na poesia, Heron de Alencar e Darwin Brandão, no jornalismo.

Walter da Silveira publicou seu primeiro texto sobre cinema no jornal da Associação Universitária da Bahia, sob o título de “O Novo Sentido da Arte de Chaplin”, enfocando o gênio do cinema, de cuja obra e imagem pública se tornaria respeitado estudioso e admirador confesso, ao ponto de, já desenganado, antes de morrer de câncer, fazer de Jorge Amado, seu grande amigo, portador de uma carta a Charles Chaplin, junto com um exemplar de livro seu sobre o célebre criador de Carlitos, missão fielmente cumprida.

“Antes de falecer, Walter recebeu duas cartas, remetidas ambas da residência do mestre maior do humanismo em nosso século: uma do escritório, despacho formal da secretária, acusa a chegada do volume e agradece. A outra, carta pessoal de Charles Chaplin: sensibilizado fala do livro, mensagem de estima e afeto, calorosa”. (AMADO, 1992).

O estímulo ao debate cultural em torno da Sétima Arte permitiu-lhe alavancar várias iniciativas, entre as quais a criação de curso de cinema ministrado no âmbito da Universidade Federal da Bahia e a realização do Ciclo Baiano de Cinema, referência para tornar Salvador em polo de vanguarda criativa e matriz de nascimento do Cinema Novo, movimento artístico que irá empolgar o país. Mentor desse afã cultural, Walter da Silveira contribuiu para a formação de uma geração de cineastas na Bahia – Glauber Rocha, Roberto Pires, Paulo Gil Soares, Orlando Senna, Guido Araújo, José Umberto, Olney São Paulo, Luiz Paulino, Tuna Espinheira, entre outros.

Mestre da crítica cinematográfica, publicou artigos sobre cinema e estética em jornais e revistas de Salvador e do Sul do país, além de participar do júri de festivais de cinema, nacionais e internacionais. A sua bibliografia reúne as seguintes obras: Fronteiras do Cinema (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966); Imagem e Roteiro de Charles Chaplin (Salvador: Mensageiro da Fé, 1970); História do Cinema Vista da Província (Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978); O Eterno e o Efêmero (Salvador: Secretaria da Fazenda/ Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/ Oiti Editora e Produções Culturais, 4 vols., org. de José Umberto, 2006).

 

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SEIXAS, Cid – 1928: Modernismo e maturidade – A Literatura na Bahia. Disponível em: http://www.e-book.uefs.br/pdf/1928.pdf e em:

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SILVA, Alberto da Costa e. Jorge Amado Essencial (Seleção e Prefácio). São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2010.

 

SOARES, Ângelo Barroso Costa. Academia dos Rebeldes: Modernismo à moda baiana. 2006. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2006. Disponível em www.dominiopublico.gov.br e http://livros01.livrosgratis.com.br/cp000515.pdf. Captados: 28/08/2020.



BIOGRAFIAS SINTÉTICAS

Agrupam-se a seguir, sob o rótulo de biografias sintéticas, catorze membros da Academia dos Rebeldes, adotando-se para tanto um critério de seleção entre os mais citados por pesquisadores e comentaristas, como assíduos colaboradores das revistas do grupo, Meridiano e O Momento, que circularam entre 1929 e 1932, participantes das ações socioculturais e desfrutes de boemia, como também os que, entre eles, cumulativamente ou não, alcançaram proeminência em campos da literatura ou de atividades outras, como o jornalismo, a política e os estudos científicos, obtendo reconhecimento regional, nacional ou mesmo internacional.
Algum curioso leitor poderá observar que, em se tratando de biografias, dispostas pela ordem do ano de nascimento dos biografados, faltam maiores indicativos cronológicos às narrativas. Sem dúvida. Explica-se: no presente caso, o fulcro do interesse por cada um dos nomes da lista procurou centrar-se na expressão e significado do seu desempenho para os fins colimados do projeto intelectual e político que os unia, optando-se por uma exposição sucinta das respectivas trajetórias.

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Florisvaldo Mattos é poeta, escritor, jornalista e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. Tem diversas obras publicadas entre poesia e artigos. Artigo publicado na seção Artigos e Ensaios, da Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 59 (outubro de 2021), pp. 149 a 182, e incluso em livro já no prelo.

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