domingo, 13 de fevereiro de 2022

FUTURISMO NA BAHIA, O POETA EURICO ALVES


               Eurico Alves, que foi também juiz de Direito, em seu gabinete de trabalho


FUTURISMO NA BAHIA

 

Por Florisvaldo Mattos

 

Na segunda e talvez última sessão do Sarau Poético, com que a Academia de Letras da Bahia comemorou o centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo, agora tratando da repercussão do Modernismo na Bahia, no professor e articulista Gildeci de Oliveira Leite dedicou a sua explanação à análise de poema dos modernistas Godofredo Filho (1904-1992) e Eurico Alves (1909-1974), sendo que, deste, escolheu “Usina”, constante dos “Poemas metálicos”, escritos de 1926 a 1932.

Escolhi a fala do professor Gildeci Leite sobre o poema do feirense, pelo tanto que ontem, em postagem, nele me referi, ao considerá-lo, a meu singelo pensar, tratar-se do nosso único poeta futurista, cuja linha criativa, no rastro do movimento lançado pelo italiano Marinetti, na Paris já vanguardista de 1909, jamais mereceu tratamento significativo, a não ser (pelo que conheço) estudos acadêmicos procedidos pelos professores Rita Olivieri-Gode, Ívia Alves, Silvério Duque e Walter Guimarães Soares, além de colaborações esparsas, em veículos impressos, especialmente na revista “Légua e Meia”, sem esquecer o prefácio de seu companheiro de Arco & Flexa, Carvalho Filho (1908-1994), ao livro “Eurico Alves – Poesia”, editado pela Fundação da Artes em 1990, em que saúda a publicação como ato de merecido reconhecimento. Por isso, parabenizo o professor Gildeci Leite por sua iluminada intervenção no Sarau da ALB.  Como ontem me referi a Eurico Alves como poeta futurista, creio não ser importuno reproduzir esta memória cultural, como segue, 

 

“A Bahia, como se chamava na época, era uma cidade estática, imersa em orgulhosa e soberba atmosfera provinciana, onde não havia lugar para endeusarem-se a máquina, a eletricidade e a velocidade, não obstante a inocente ousadia futurista de um poeta, o feirense Eurico Alves (1909-1974), adepto do grupo da revista Samba, cuja delirante imaginação divisava, em seus Poemas Metálicos (1926-1932), uma cidade imersa na volúpia fumacenta de locomotivas, com longas avenidas ladeadas de arranha-céus, ruas largas, pulsação mágica de fábricas e ardentes chaminés, lanchas e transatlânticos nos portos, guindastes, automóveis, buzinas, apitos, sirenas, guinchos, com céu cinzento sobre massas enormes de cimento armado, reclames, títulos e dísticos luminosos – enfim, uma festa de nítido sonho futurista.

Quem lesse poemas dessa fase de Eurico Alves, que ouso considerar o nosso primeiro e talvez único e legítimo poeta futurista, nos anos seguintes à sua publicação, como também muitas décadas depois, poderia supor que o lastro de sua imaginação provinha de leituras de pensadores franceses, desde que à época o francês ainda funcionava em países da América do Sul como uma segunda língua cultural, ao ponto de um escritor do porte do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) definir os sul-americanos, segundo Bella Jozef (1996), como “europeus no desterro”, pelo tanto que persistia neles de cultura europeia, fazendo imaginar-se que, no caso do Brasil e particularmente da Bahia, a França se situava à frente de qualquer outro. (...)

Por isso, não será demais admitir-se que, na imaginação sonhadora do jovem feirense, a Cidade da Bahia não se apresentava como um símbolo do atraso patenteado por ruas estreitas e becos, por bondes assobiando e rangendo sobre trilhos, postes com lâmpadas de pouca luminosidade, comércio rastejante, sem nem mesmo ostentar reclames a gás neon, e o mais que seus olhos cotidianamente viam. O que seu estro demandava eram versos que sugerissem um cenário igual ao daqueles países cuja paisagem urbana, já celebrada por muitos escritores, filósofos e políticos, que apontavam nitidamente para a modernidade, ostentava um panorama constituído de trabalhadores e transeuntes a congestionar anonimamente ruas e praças das grandes cidades.”

Adiante, alinho três de seus “Poemas metálicos” e, a título de curiosidade o famoso diálogo poético-epistolar que Eurico Alves e Manuel Bandeira travaram, ambos publicados em livro. Ilustração: fotos de Eurico Alves de uma usina de açúcar.

 

 

DÍNAMO

 

Ralam o ar, rodopiando em roucos ronrons rudos,

as ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu ...

 

Negras fauces monstros de fornalhas, abocanhando as sombras,

num doido torvelinho desordenadamente bruto,

de permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a loucura

de mil garras de fogo — as alavancas víboras —

no vai-e-vem, vem-e-volta,

subindo, descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo chiando ...

 

Tatala, lá fora, ao dorso polido das chaminés,

a crespa asa rascante e do grande morcego chagado

a noite.

 

Correm escuros arrepios no alto céu de ferrugem,

mordendo a usina ...

 

Mas, a um canto, possante, brutal, estouvadamente,

entre o delírio de carótidas veias e artérias de aço,

bates, rebates, fremes, latejas, precípite,

em cólera chispando,

rudo, rouco, raivoso, rasgando a noite,

— dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!

 

Salvador, 1926.

 

USINA

 

Como um punhado de estrelas dentro da noite,

as casas dos empreiteiros

perdem-se na festa verde

das espátulas compridas do canavial contente ...

 

E, ondulando, farfalhando,

o canavial se estende interminavelmente,

como um sonho esmeráldico de fartura,

da usina,

que, no centro,

estridula e apita e jazzbandiza ferros,

numa alucinação fantástica de mil músculos de aço

tinindo e retinindo, zoando e retumbando no abandono do vale.

Macabra mistura de polias, cordames, manivelas e rodas dentadas, furiosamente, diabolicamente, alucinadamente ...

 

Na baixada, como dois braços sondando as estrelas,

as duas chaminés contemplativas se empertigam.

 

                                                    Salvador, 1929.

 

BAHIA

 

Gestos orgulhosos em ânsia de mãos metálicas

Afastando sóis, para a escalada da altura.

Dança alucinada de fumo, no ar, sobre a larga

paisagem cúbica dos arranha-céus.

Gritos petrificados de torres altas, altas, gloriosamente...

alucinações humanas nas avenidas longas, borborinhando...

 

E a pulsação mágica das fábricas

cantando;

e a gritaria ensurdecedora de lanchas e transatlânticos no porto,

guindastes rilhando, arquejando...

Buzinas, apitos, sirenas, guinchos.

E o céu cinzento das massas enorme de cimento armado...

 

Bahia!

 

E, à noite, o caminho de Sant´Iago

Dos reclamos, títulos e dísticos luminosos

 

Salvador, 1930.

 

 

 

 

ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA

Eurico Alves

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...
Serra de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeal em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira de Santana! Alegria!
Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados
         [das noites eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e como o tabaréu até se parece com Nosso Senhor.

§

ESCUSA


Manuel Bandeira

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant'Ana.
Sou poeta da cidade. Meus pulmões viraram máquinas inumanas
       e aprenderam a respirar o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata. Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
      [das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano, Não sou mais digno de respirar o ar puro
      [dos currais da roça.



BAHIA DE TODOS OS SANTOS

A Jorge de Lima

Bahia, minha Bahiazinha,
vou escrever hoje o teu poema, terrinha do meu coração!


Bahia de Todos os Santos,
és u'a morena preguiçosa,
certas horas, dormindo descuidada,
na rede azul que o mar balança.


Não usas, mais, morena, o pano-da-costa listrado
preto e branco,
vermelho e amarelo.
Mãe-natureza te deu um chalé de seda fina,
feito de espumas quentes e folhas verdes.

És faceira,
apetitosa,
e dengosa,
de seios túmidos e pontudos como jabuticaba, verdes e enormes.
Os palacetes Martins Catharino,
o velho e o novo, são as tuas pomas encardidas
que o sol morde com sensação,
o dia inteiro

Eu gosto de ti,
minha Bahia, porque és u´a morena educada,
que tudo sabe e tudo faz.

Eu gosto de ti, quando nos matos, nos candomblés,
tu te remexes devagarinho,

ou ligeirinho,
numa tontura,
numa luxúria,
desesperada.

Eu te amo no "Baiano de Tênis",
quando te imposturas pra cima da gente.
És melindrosa, neste momento,
de ruge e pó no teu rostinho
estrangeirinho
                  de bangalô.

E mais me encantas,
quando te encontro
lá na cozinha,
encarvoada,
lambuzada
de azeite doce e de dendê.

Bahia,
o teu vatapá gostoso
está me parecendo, digo sério,
um manjar do céu. E foi provando-o
que o escritor disse que a Paris só falta
um vatapá baiano.

E me ri muito, naquela noite, na "Petisqueira",
vendo um carioca almofadinha
comendo
e chorando
com o ardor
da pimenta de cheiro
e da malagueta.
E todo sulista
quer provar,
embora chorando, do teu efó apimentado,
deste caruru que sabes fazer com sururu,
e do vatapá doirado e do acarajé amassado por ti.

                Ai! minha Bahia, que coisa gostosa é acarajé!...

É um pomo de ouro,
          amarelinho,
          redondinho,
          delicioso,
que Ogum deixou pra gente.
O, acarajé, minha gentinha,
não tem, não tem aquele
gosto ruim de beijo chupado
que Jorge de Lima diz.
Um acarajé tem o gosto gostoso
de um lábio pintado de menina novinha.
E aquele ardor que nos fica na língua
foi a dentadinha que a menina nos deu.

Ai! Bahia!
as tuas
frutas,
alaranja,
o araçá,
o caju,
a jabuticaba, o coco verde comido em Amaralina
foi Nosso Senhor que deixou cair do céu.

Bahia, Bahiazinha guerreira,
morena fértil que tem filhas bonitas, como o Brasil de Álvaro Moreyra!
Feira de Santana,
(minha terra)!
           Cachoeira,
           terra do meu amigo
           Clóvis da Silveira Lima;
                          Santo Amaro
                          que faz lembrar
                          os não sei quantos filhos
                          que deixou aquele barão;
                                          Alagoinhas,
                                          onde mora o velho poeta Assis Tavares;
                                          Ilhéus,
          a menina orgulhosa e rica e vaidosa
          que só tem vestido de seda radium,
          enfeitado de madrepérola e lantejoila,
                    e arminho,
comprado às custas dos seus caxixes! ...

Bahia!

Lá o sino tocou:
é a Bahia que vai rezar
lá na Sé,
na Catedral-Basílica,
em São Francisco
e no Bonfim.
E o convento da Piedade
e o de São Bento
são dois frades rezando,
com o capuz às costas.

"Dlindão!... dlão!...
dilindlão! dilindlão!..."

A Bahia é religiosa,
     ela crê em Nosso Senhor.
          Ela não tem inveja da França,
                porque tem Nossa Senhora das Candeias,
                       que apareceu a u'a menina
                                 da roça.

                                                           Bahia!
Estou ouvindo a música dos teus benditos alegres,
nas romarias que fazes às Candeias,
                    pelo rio
                    e pelo mar.
Estou vendo a ponte de São João,
que parece um braço magro de mulher velha e pelancuda,
fazendo carícia ao mar,
se balançando com o peso dos trens
                   que vão levar
                   os romeiros
                   aos pés da Virgem
                   Mãe
                            de Deus.

Me perdoa, minha Bahia,
o mal que te fiz,
fazendo mal o teu poema.

Publicado em Arco e Flexa, Salvador. I:42-46, novembro de 1929.

 

(Salvador, 13 de fevereiro de 2022, inclusive no Facebook)

 


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