FUTURISMO NA BAHIA
Por Florisvaldo
Mattos
Na segunda e talvez
última sessão do Sarau Poético, com que a Academia de Letras da Bahia comemorou
o centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo, agora tratando da
repercussão do Modernismo na Bahia, no professor e articulista Gildeci de
Oliveira Leite dedicou a sua explanação à análise de poema dos modernistas
Godofredo Filho (1904-1992) e Eurico Alves (1909-1974), sendo que, deste,
escolheu “Usina”, constante dos “Poemas metálicos”, escritos de 1926 a 1932.
Escolhi a fala do
professor Gildeci Leite sobre o poema do feirense, pelo tanto que ontem, em
postagem, nele me referi, ao considerá-lo, a meu singelo pensar, tratar-se do
nosso único poeta futurista, cuja linha criativa, no rastro do movimento
lançado pelo italiano Marinetti, na Paris já vanguardista de 1909, jamais
mereceu tratamento significativo, a não ser (pelo que conheço) estudos
acadêmicos procedidos pelos professores Rita Olivieri-Gode, Ívia Alves,
Silvério Duque e Walter Guimarães Soares, além de colaborações esparsas, em
veículos impressos, especialmente na revista “Légua e Meia”, sem esquecer o
prefácio de seu companheiro de Arco & Flexa, Carvalho Filho (1908-1994), ao
livro “Eurico Alves – Poesia”, editado pela Fundação da Artes em 1990, em que
saúda a publicação como ato de merecido reconhecimento. Por isso, parabenizo o
professor Gildeci Leite por sua iluminada intervenção no Sarau da ALB. Como ontem me referi a Eurico Alves como
poeta futurista, creio não ser importuno reproduzir esta memória cultural, como
segue,
“A Bahia, como se
chamava na época, era uma cidade estática, imersa em orgulhosa e soberba
atmosfera provinciana, onde não havia lugar para endeusarem-se a máquina, a
eletricidade e a velocidade, não obstante a inocente ousadia futurista de um
poeta, o feirense Eurico Alves (1909-1974), adepto do grupo da revista Samba,
cuja delirante imaginação divisava, em seus Poemas Metálicos (1926-1932), uma
cidade imersa na volúpia fumacenta de locomotivas, com longas avenidas ladeadas
de arranha-céus, ruas largas, pulsação mágica de fábricas e ardentes chaminés,
lanchas e transatlânticos nos portos, guindastes, automóveis, buzinas, apitos,
sirenas, guinchos, com céu cinzento sobre massas enormes de cimento armado,
reclames, títulos e dísticos luminosos – enfim, uma festa de nítido sonho
futurista.
Quem lesse poemas
dessa fase de Eurico Alves, que ouso considerar o nosso primeiro e talvez único
e legítimo poeta futurista, nos anos seguintes à sua publicação, como também
muitas décadas depois, poderia supor que o lastro de sua imaginação provinha de
leituras de pensadores franceses, desde que à época o francês ainda funcionava
em países da América do Sul como uma segunda língua cultural, ao ponto de um
escritor do porte do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) definir os
sul-americanos, segundo Bella Jozef (1996), como “europeus no desterro”, pelo
tanto que persistia neles de cultura europeia, fazendo imaginar-se que, no caso
do Brasil e particularmente da Bahia, a França se situava à frente de qualquer
outro. (...)
Por isso, não será
demais admitir-se que, na imaginação sonhadora do jovem feirense, a Cidade da
Bahia não se apresentava como um símbolo do atraso patenteado por ruas
estreitas e becos, por bondes assobiando e rangendo sobre trilhos, postes com
lâmpadas de pouca luminosidade, comércio rastejante, sem nem mesmo ostentar
reclames a gás neon, e o mais que seus olhos cotidianamente viam. O que seu
estro demandava eram versos que sugerissem um cenário igual ao daqueles países
cuja paisagem urbana, já celebrada por muitos escritores, filósofos e
políticos, que apontavam nitidamente para a modernidade, ostentava um panorama
constituído de trabalhadores e transeuntes a congestionar anonimamente ruas e
praças das grandes cidades.”
Adiante, alinho
três de seus “Poemas metálicos” e, a título de curiosidade o famoso diálogo
poético-epistolar que Eurico Alves e Manuel Bandeira travaram, ambos publicados
em livro. Ilustração: fotos de Eurico Alves de uma usina de açúcar.
DÍNAMO
Ralam o ar, rodopiando em roucos ronrons rudos,
as ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu
...
Negras fauces monstros de fornalhas, abocanhando as
sombras,
num doido torvelinho desordenadamente bruto,
de permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a
loucura
de mil garras de fogo — as alavancas víboras —
no vai-e-vem, vem-e-volta,
subindo, descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo
chiando ...
Tatala, lá fora, ao dorso polido das chaminés,
a crespa asa rascante e do grande morcego chagado
a noite.
Correm escuros arrepios no alto céu de ferrugem,
mordendo a usina ...
Mas, a um canto, possante, brutal, estouvadamente,
entre o delírio de carótidas veias e artérias de aço,
bates, rebates, fremes, latejas, precípite,
em cólera chispando,
rudo, rouco, raivoso, rasgando a noite,
— dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!
Salvador, 1926.
USINA
Como um punhado de estrelas dentro da noite,
as casas dos empreiteiros
perdem-se na festa verde
das espátulas compridas do canavial contente ...
E, ondulando, farfalhando,
o canavial se estende interminavelmente,
como um sonho esmeráldico de fartura,
da usina,
que, no centro,
estridula e apita e jazzbandiza ferros,
numa alucinação fantástica de mil músculos de aço
tinindo e retinindo, zoando e retumbando no abandono
do vale.
Macabra mistura de polias, cordames, manivelas e rodas
dentadas, furiosamente, diabolicamente, alucinadamente ...
Na baixada, como dois braços sondando as estrelas,
as duas chaminés contemplativas se empertigam.
Salvador,
1929.
BAHIA
Gestos orgulhosos em ânsia de mãos metálicas
Afastando sóis, para a escalada da altura.
Dança alucinada de fumo, no ar, sobre a larga
paisagem cúbica dos arranha-céus.
Gritos petrificados de torres altas, altas,
gloriosamente...
alucinações humanas nas avenidas longas,
borborinhando...
E a pulsação mágica das fábricas
cantando;
e a gritaria ensurdecedora de lanchas e
transatlânticos no porto,
guindastes rilhando, arquejando...
Buzinas, apitos, sirenas, guinchos.
E o céu cinzento das massas enorme de cimento
armado...
Bahia!
E, à noite, o caminho de Sant´Iago
Dos reclamos, títulos e dísticos luminosos
Salvador, 1930.
ELEGIA PARA
MANUEL BANDEIRA
Eurico Alves
Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...
Serra de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil
virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da
terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio
da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a
bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeal em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para
a galopada.
Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a
sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã
nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira de Santana! Alegria!
Alegria nas estradas, que são convites para a
vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para
a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos
selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de
volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há
nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos
cabelos desnastrados
[das noites
eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e como o tabaréu até se parece com Nosso Senhor.
§
ESCUSA
Manuel Bandeira
Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de
cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de
Sant'Ana.
Sou poeta da cidade. Meus pulmões viraram
máquinas inumanas
e aprenderam a
respirar o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata. Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo
os olhos nas cores
[das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano, Não sou mais digno
de respirar o ar puro
[dos currais da roça.
BAHIA DE TODOS OS SANTOS
A Jorge de Lima
Bahia, minha Bahiazinha,
vou escrever hoje o teu poema, terrinha do meu coração!
Bahia de Todos os Santos,
és u'a morena preguiçosa,
certas horas, dormindo descuidada,
na rede azul que o mar balança.
Não usas, mais, morena, o pano-da-costa listrado
preto e branco,
vermelho e amarelo.
Mãe-natureza te deu um chalé de seda fina,
feito de espumas quentes e folhas verdes.
És faceira,
apetitosa,
e dengosa,
de seios túmidos e pontudos como jabuticaba, verdes e enormes.
Os palacetes Martins Catharino,
o velho e o novo, são as tuas pomas encardidas
que o sol morde com sensação,
o dia inteiro
Eu gosto de
ti,
minha Bahia, porque és u´a morena educada,
que tudo sabe e tudo faz.
Eu gosto de
ti, quando nos matos, nos candomblés,
tu te remexes devagarinho,
ou
ligeirinho,
numa tontura,
numa luxúria,
desesperada.
Eu te amo no "Baiano de Tênis",
quando te imposturas pra cima da gente.
És melindrosa, neste momento,
de ruge e pó no teu rostinho
estrangeirinho
de
bangalô.
E mais me encantas,
quando te encontro
lá na cozinha,
encarvoada,
lambuzada
de azeite doce e de dendê.
Bahia,
o teu vatapá gostoso
está me parecendo, digo sério,
um manjar do céu. E foi provando-o
que o escritor disse que a Paris só falta
um vatapá baiano.
E me ri
muito, naquela noite, na "Petisqueira",
vendo um carioca almofadinha
comendo
e chorando
com o ardor
da pimenta de cheiro
e da malagueta.
E todo sulista
quer provar,
embora chorando, do teu efó apimentado,
deste caruru que sabes fazer com sururu,
e do vatapá doirado e do acarajé amassado por ti.
Ai!
minha Bahia, que coisa gostosa é acarajé!...
É um pomo de ouro,
amarelinho,
redondinho,
delicioso,
que Ogum deixou pra gente.
O, acarajé, minha gentinha,
não tem, não tem aquele
gosto ruim de beijo chupado
que Jorge de Lima diz.
Um acarajé tem o gosto gostoso
de um lábio pintado de menina novinha.
E aquele ardor que nos fica na língua
foi a dentadinha que a menina nos deu.
Ai! Bahia!
as tuas
frutas,
alaranja,
o araçá,
o caju,
a jabuticaba, o coco verde comido em Amaralina
foi Nosso Senhor que deixou cair do céu.
Bahia, Bahiazinha guerreira,
morena fértil que tem filhas bonitas, como o Brasil de Álvaro Moreyra!
Feira de Santana,
(minha terra)!
Cachoeira,
terra do meu
amigo
Clóvis da
Silveira Lima;
Santo
Amaro
que
faz lembrar
os
não sei quantos filhos
que
deixou aquele barão;
Alagoinhas,
onde
mora o velho poeta Assis Tavares;
Ilhéus,
a menina orgulhosa
e rica e vaidosa
que só tem vestido
de seda radium,
enfeitado de
madrepérola e lantejoila,
e
arminho,
comprado às custas dos seus caxixes! ...
Bahia!
Lá o sino
tocou:
é a Bahia que vai rezar
lá na Sé,
na Catedral-Basílica,
em São Francisco
e no Bonfim.
E o convento da Piedade
e o de São Bento
são dois frades rezando,
com o capuz às costas.
"Dlindão!...
dlão!...
dilindlão! dilindlão!..."
A Bahia é religiosa,
ela crê em Nosso Senhor.
Ela não tem inveja
da França,
porque
tem Nossa Senhora das Candeias,
que
apareceu a u'a menina
da
roça.
Bahia!
Estou ouvindo a música dos teus benditos alegres,
nas romarias que fazes às Candeias,
pelo
rio
e
pelo mar.
Estou vendo a ponte de São João,
que parece um braço magro de mulher velha e pelancuda,
fazendo carícia ao mar,
se balançando com o peso dos trens
que
vão levar
os
romeiros
aos
pés da Virgem
Mãe
de
Deus.
Me perdoa, minha Bahia,
o mal que te fiz,
fazendo mal o teu poema.
Publicado em Arco e Flexa, Salvador. I:42-46,
novembro de 1929.
(Salvador, 13 de fevereiro de 2022, inclusive no Facebook)
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