segunda-feira, 13 de julho de 2020

SOSÍGENES COSTA, POETA SENSORIAL

Jorge Amado, Sosígenes Costa e Carlos Pena Filho, nesta ordem


Nascido em Belmonte, em 1901, mas vivendo em Ilhéus de 1926 a 1954, quando se mudou para o Rio de Janeiro, onde viria a morrer em 1968, Sosígenes Costa é sempre um poeta lembrado e reverenciado, por sua poesia que merecia reconhecimento nacional, como registra neste comentário o escritor e artista visual Ricardo Domeneck.

Ricardo Domeneck

eu, foi um modernista dos mais brasileiros, quando pensamos em trabalhos como 'Iararana', fincado em um vocabulário de sua terra [e do seu mar]. José Paulo Paes escreveu com grande admiração sobre ele, e foi através de seu livro que o descobri no final do século passado. Contemporâneo de Murilo Mendes, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa (todos nascidos em 1901) e Carlos Drummond de Andrade {apenas um ano mais novo}, sua nunca-vinda para o Rio de Janeiro talvez explique parte de sua invisibilidade nos cânones nacionais. Mas se o seu 'localismo' o torna uma figura que me interessa muito, confesso ser outra parte de seu trabalho que me faz amá-lo. Homossexual raramente incluído no rol dos poetas da minha laia, Sosígenes Costa escreveu poemas de amor de uma exuberância ímpar. Era um escritor de exageros maravilhosos, camp-campistas, como outros aliás de sua-minha laia: Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Roberto Piva. Artifícios de fogo. Amo quando Sosígenes pavoneia. O exagero é por vezes de uma liberdade estonteante. Porque na geleia geral brasileira, ora, alguém também tem que ser músculo e pele se a medula e o osso quiserem andar.


Poesia de intuição sensível

Florisvaldo Mattos

          O tema se presta a diáfanas cogitações.(1) Entre tantas, cabe-lhe bem a que equipare a arte da poesia ao exercício de uma ociosidade edênica; celebre, pela proximidade com a natureza, a plenitude das faculdades sensoriais, unida a um pensamento desobrigado das operações lógicas, solto, incitando o corpo a alongar-se sobre a relva, o espírito a espairecer, prazeroso, pelas amplas avenidas do sonho e da imaginação, sob frondes outonais de um campo cultivado, ou, de outro modo, convidando o poeta a passear, desgarrado de tudo, em terras ainda virgens do passo humano, antes apenas visitadas por deuses, faunos e ninfas. É como figuro Sosígenes Costa, ao percorrer os cenários da sua poesia gerados por uma laboriosa criatividade.
Imagino-o em Belmonte ou Ilhéus, pátrias gêmeas de uma fina e rara sensibilidade, de onde lhe sobressai um íntimo pendor para o devaneio: jovem  e campestre Hipólito, a atravessar, célere e ofegante, claros bosques da Argólida; ou, talvez, no alto de colinas, em aprazível clareira, sob virentes copas frouxamente recostado, já maduro Sileno, após Virgílio arrastá-lo do fundo de uma gruta, a deleitar parvos ouvidos com sons de flauta e cantos.
Palmilhando estradas, praias, galgando encostas, o rei asceta, "de céus, de plantas, de águas alumbrado", se apropria de tudo que lhe concede a fecunda terra grapiúna, o que ela ostenta de lírica e plástica abundância, revolve reminiscências, bebe o frescor do dia nos mananciais da infância, recompõe vivências, imagina e transpõe cenários - visuais, aromáticos, sonoros, gustativos, tácteis -, e constrói laboriosos e vívidos objetos verbais.
A criação poética percorre todos os quadrantes do cosmo sensorial, onde tudo abstratamente se aglomera, se ajusta e se transforma em coisa que se vê, cheira, ouve, prova e toca, casando o espírito com a totalidade do universo.
Lembra o luso de Camões, na ideada Ilha dos Amores (Os Lusíadas, Canto IX), a correr pela floresta, onde "se deixavam/ andar as belas deusas, como incautas, algumas, tocando doces cítaras, outras, harpas e sonoras flautas, e outras mais, co´os arcos de ouro, a se fingirem seguidoras de animais, que não seguiam, e onde, como aduz o bardo, sugerindo e conferindo tonalidade edênica e erotismo à cena:

Duma os cabelos de ouro o vento leva, 
Correndo, e da outra as fraldas delicadas; 
Acende-se o desejo, que se ceva 
Nas alvas carnes, súbito mostradas. 
Uma de indústria cai, e já releva, 
Com mostras mais macias que indignadas 
Que sobre ela, empecendo, também caia 
Quem a seguiu pela arenosa praia. 2

Em Sosígenes Costa, andarilho do sensual e do fantástico, encontramos o mesmo estro, em semelhantes e bucólicos pagos - os de Ilhéus e de Belmonte da sua juventude.
Neste ambiente de natureza ubérrima, de paraíso inaugural, o poeta move o arguto olhar, contempla vasto horizonte de céu, terras e águas. Passeia, atravessando matas e vergéis, prados e jardins, onde luzes, sons e perfumes invadem-lhe o corpo, brisas roçam-lhe a pele brônzea e macia. Aqui e ali, toca em suaves arbustos, aspira ramos e folhagens, colhe flores e frutos, a degustar, sob árvores, em latadas de vaporosos ritos, exóticos manjares, sorvendo o espetáculo que lhe concedem cristalinas manhãs ou tardes que declinam, placidamente entregue ao gozo da meditação.
Imagino-o, ainda, deitado de espáduas sobre tranquilos terraços, gramados ou areias claras, a descansar, como ele próprio diz num poema, "em sideral reclinatório", a fitar profundo céu em noite de ares difusos, chuva de sombras e estrelas desabando verticalmente sobre o peito, semelhando a seus olhos de espanto fluidas metamorfoses de cosmo incendiado.
Imagino, e sei o quanto de sonho, sentimento e emoção, de fantasia e enlevo, seus sentidos avidamente captam, no fluir de dias azuis e noites fosfóreas, em estado de industriosa contemplação. E mais: quanto, em solidão, lhe apraz tudo o que ouve, vê, cheira, saboreia e toca, e o que percebe, com cada uma das células de seu corpo - dádivas terrestres, aéreas ou aquáticas, ao fim dessa experiência generosa, translúcida e comunicativa com o meio natural que o rodeia; quanto o poeta se sente mais homem do mundo, na paz que ao espírito lhe transmite toda a sua instruída humanidade.

São estados estes em que a imaginação se harmoniza com a criação, como forma de alcançar-se um grau superior de beleza. O poeta elege um certo ângulo - o da arte, o da memória, da sua própria prospecção mental e cultural - para revelar, com devota percepção e lucidez de linguagem, coisas e cenários, sentimentos e vivências, que lhe povoam a existência e persistem no seu espírito. Pergunto: não fosse por meio desse prodigioso artifício, acaso seria possível ao mísero mortal leitor acercar-se do que pensou e disse Horácio - "Se quiseres que eu chore, tu próprio tens de ter estado triste" - e, com isso, me aperceber de muito do que sinto e não sei dizer, e só a arte pode expressar?3
Esses estados anímicos escapam ao racional, pois só se transmitem através de um jogo de aparências e formas acidentais, que nem mesmo toda a arquitetura do conhecimento lógico, para investigar e formular as leis do universo, seria capaz de atingir. Fenômeno que para nós se afigura irresistível: o poeta põe a alma a se mover como uma sombra do mundo, no intuito de provar que a beleza transita em um território de infinitas opções que somente à arte e à poesia diz respeito.     
Em outra vertente, mas na mesma pulsão imaginativa, lendo versos de Sosígenes Costa, conjeturo quantos artistas e poetas buscam num passado, próximo ou remoto, energias e alquimias que funcionem como poderoso elixir de revitalização espiritual, pois, não se pode negar o quanto, desde os primórdios da cultura moderna, a arte e a poesia se têm empenhado em recuperar signos de épocas passadas, seja para com eles iluminar os caminhos de seu estro, ou simplesmente iluminarem-se, seja para se apossar das luzes e das chamas, que aclaram e agitam a intimidade e a imaginação de cada criador - enfim, para apossar-se de uma ars poética e construir um estilo próprio. 
Deste modo, conjeturo, a partir do renascimento, passando pelo barroco, o arcadismo, o romantismo, o parnasianismo, o simbolismo, até o modernismo, em suas múltiplas correntes estéticas, o retorno de poetas e artistas a antigos cenários, formas, hábitos, costumes e realizações culturais sempre funcionou como ardente instigador da criatividade e um poderoso antídoto às contingências e imposições de um presente propício à desconfiança e à recusa, talvez convencidos de que são a arte e a poesia que verdadeiramente legislam para a humanidade e, por isso, não sujeitas a delimitações, a se tornarem coágulos no tempo.

Figuremos então o poeta Sosígenes Costa investido na plenitude de sua humanidade, dentro do mundo, atento, sentimentos em acesa percepção, talvez em sonho ou meia vigília, com tudo o que lhe doou a natureza e que, por algum título difuso de propriedade espiritual, lhe pertence. Munida de seus plenos poderes, a mente como que vegetalizada, mineralizada, maneja os atributos da vida animal, sente-se na posse de uma buliçosa carpintaria sensual, uma forja rútila, uma tecelagem de infinitos padrões e estampa.
Então, de repente, ele se torna, não apenas "um nobre entre os rapazes", como se anuncia, num momento de regalo que lhe proporciona à íris um crepúsculo de seu amado torrão grapiúna, mas um mago que exerce soberania celestial, porque instalado em seu destino de cidadão do mundo, a construir fantásticas e caprichosas arquiteturas, compostas de palavras, ritmos e imagens. E, não satisfeito, delineia cenários grávidos de beleza e mistério, para nós uma doação do espírito refinado ao corpo sensível.
Plena de evocações míticas e místicas, sagradas ou profanas, e carregada de valores estéticos, vejo a poesia de Sosígenes Costa como um imenso e árduo canteiro, onde laboriosamente constrói imagens que se tornam veículos de uma verdade íntima, centrada na crença em um humanismo libertador, pelo qual o poeta estabelece a sua comunhão com o mundo, que não se efetiva de outra maneira senão por meio de categorias sensuais, como forma de apreensão sublimada do real, exercidas apenas através das suas intuições sensíveis, aquelas para as quais não existem definições conceituais, ao recusarem, como lamenta Galvano della Volpe, "a co-presença orgânica ou de qualquer modo eficiente do intelecto, quer como discurso quer como ideias", embora sejam as palavras da poesia, constitutivas das imagens, elas próprias, veículos de conceitos.
Referindo-se à imagem poética e pondo sob suspeita o conhecimento intuitivo que a pressupõe, o filósofo e crítico italiano reputa essa propriedade intelectual como uma persistente "herança romântica", portadora de "misticismo estético", mesmo quando entendida "como símbolo ou veículo de verdade", e a increpa de grave obstáculo que a estética e a crítica literária modernas têm encontrado no seu caminho.
Denunciando o fundamento radical de seu juízo crítico, Della Volpe deplora essa forma de autonomismo contemplativo do prazer artístico e estende indiretamente sua censura ao pensador e crítico marxista Georg Lukács, embora se trate de um correligionário de doutrina filosófica, ao patrocinar a ideia de que "a arte faz intuir sensivelmente" aquilo que a ciência envolve em "elementos abstratos" e "definições conceituais".
Ergue então óbices a essa forma de misticismo estético, para cuja revogação considera urgente convocar as forças da razão, embora reconheça a sua análise como de certa forma "provisória, parcial, limitando-se simplesmente ao critério do alcance imediato", sua submissão enfim, "aos fins do gosto". Felizmente, pois é justamente com tal discernimento - o das intuições sensíveis, estou certo - que age o poeta Sosígenes Costa: das arcadas de sua privilegiada sensibilidade e congruente humanismo, divisa os horizontes do mundo e o intui de forma peculiar, com uma experiência mediada pela fantasia e, desse modo, graças puramente à sua sensibilidade, busca atingir a essência da poesia.4

NOTAS

1 - Capítulo de Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, de Florisvaldo Mattos (págs. 27 a 32). Salvador: Empresa Gráfica da Bahia. Projeto gráfico e editoração eletrônica de Guido Guerra. Ilustrações de Itamar Espinheira (capa, contracapa e página interna). Lançamento previsto para o dia 25 próximo, na Academia de Letras da Bahia, às 18 horas.
2 - Camões, Luís de - Os Lusíadas (Canto IX). Comentados por Slveira Bueno. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s. d.
3 - Uma quase tradução deste preceito de Horácio pode ser encontrada em Manuel Bandeira, no poema "Desencanto", datado de 1912 e escrito em Teresópolis, constante no seu primeiro livro, A Cinza das Horas (1917), em cuja primeira quadra lê-se: "Eu faço versos como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto".
4 - Volpe, Galvano della - Crítica do Gosto, Volumes 1 e 2. Tradução de António Ribeiro. Lisboa:  Editorial Presença (Biblioteca de Ciências Humanas), s/d.


SONETOS PAVÔNICOS

Em 2014, o poeta e editor Carlos Machado publicou em seu portal poesia.net, nº 317, uma coletânea de poemas de Sosígenes Costa, destacando os seus chamados sonetos pavônicos. Veja-se o link abaixo.

http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet317.htm


OUTROS POEMAS DE SOSÍGENES COSTA


CREPÚSCULO DE MIRRA

A tarde fecha a cintilante umbela.
Vêm os aromas como uma grinalda
ornar a sombra arroxeada e bela
e ungir os nossos sonhos de esmeralda.

Nuvens de mirra e oriental canela
formam na sombra a singular grinalda.
E a tarde fecha a cintilante umbela
e o vento as asas do dragão desfralda.

A própria lua vem lançando aroma.
Nasce vermelha como a flor de um cardo
e sobre a mirra dos vergéis assoma.

E a noite chega no seu grifo pardo,
cheirando a incenso como o rei de Roma
e como Herodes rescendendo a nardo.
(1937)

A MAGNIFICÊNCIA DA TARDE

Voa ao poente a túnica da brisa
se desmanchando em chuva de lilases.
A tarde, ante essa mágica, se irisa
e exibe cores francamente audazes.

A natureza, certo, romantiza...
Há nos jardins fascinações de oásis
e os encantos do olhar de Mona Lisa
estão nas rosas e nos grous lilases.

De súbito, o crepúsculo termina.
O céu agora todo se reveste
de uma capa de príncipe da China.

E na ponta de um cônico cipreste,
a lua nova paira, curva e fina,
como o chifre de um búfalo celeste.
(1937)

ABRIU-SE UM CRAVO NO MAR

A noite vem do mar cheirando a cravo.
Em cima do dragão vem a sereia.
O mar espuma como um touro bravo
e como um cão morde a brilhante areia.

A noite vem do mar cheirando a cravo.
Com palidez de lírio, a lua cheia
surge brilhando e a água do mar prateia
e o mar cintila como um pombo flavo.

O odor do cravo pela noite aumenta.
A noite, em vez de azul, está cinzenta.
Sente-se o aroma até no lupanar.

O mar atira no rochedo o açoite.
Aquele aroma aumenta pela noite.
É o cravo que o dragão trouxe do mar.
(1930)

RESSUREIÇÃO NO AROMA

Vi seu cabelo em roxo amortalhado,
os pés na sombra e em roxa sombra o manto.
Lavei seus pés com o sonho do amaranto
e o aroma alado e o incenso sacrossanto.

Deitei verbena em seu lilás toucado
e ei-lo em dourado aroma aureolado.
Tornou-se a própria alma do noivado
assim lavado nesse aroma santo.

Transfigurado em sonho de amaranto,
na rosa ungido completou-se o encanto,
e ei-lo na própria aurora amortalhado.

Lilás de mirra já lhe aclara o manto.
Beijo os seus pés. Já estão no aroma alado
e agora adeja sobre o aroma o santo.
(1959)

O PÔR DO SOL DO PAPAGAIO

O papa-vento nos jardins de maio
e o verde papa no seu mar de leite.
O mar, já não é azul, é verde-gaio
num clarão que é relâmpago de azeite.

Se o mar é belo sem que a tarde o enfeite
quanto mais se o enfeitar o sol de maio.
O mar do papa-vento é o papagaio
e o céu do verde papa é o papa-leite.

Latadas cristalinas em desmaio.
Tombam flores do céu, meu papagaio.
E o papa-vento é de cristal e leite.

Deite leite, meu mar, pro papagaio.
Que o papagaio em verde se deleite
e não se enfeite de outra cor em maio.
(1928-1959)

OS ENIGMAS DA RAINHA DE SABÁ

Vai Salomão entre os leões que doma
decifrar para os magos da Caldeia
o enigma dos anjos de Sodoma
quando Belkis em pleno templo assoma.

Toda a atenção se volve na assembleia
para o esplendor da imperatriz do aroma.
E ela expõe a parábola sabeia
e os encantos guardou numa redoma.

Difícil para o arúspice de Roma,
não para Salomão, rei da Judeia.
Para o rei sábio o enigma é um axioma.

E conquistando a deusa da azureia
decifra-lhe os enigmas do aroma
e todos seus encantos de Medeia.
(1959)

O ANJO DA APOTEOSE

Sua mão de cerusa erguia a cerofala,
quando o vi da capela a entrar no peristilo.
Prefiro em suas mãos os fogos de Bengala
e a lâmpada de opala e o pincel de Murilo.

Embora lembre a estrela e o sol na ravenala
o círio em suas mãos me faz triste e intranquilo.
Se o arcanjo é a borboleta, eu passo a preferi-lo
queimando em grande pompa os fogos de Bengal.

Nas pompas de berilo este anjo é o setestrelo.
Cintila no meu sonho. Ele é a expressão da gala.
O gênio desta chama. É doce amá-lo e vê-lo.

Quando entanto eu morrer, perdendo o mundo e a opala,
quero junto de mim, com todo amor e zelo,
sua mão de cerusa erguendo a cerofala.
(1935)

SÃO JOÃO

Só come gafanhoto e sozinho na mata,
sem olhar a mulher, sem cortar o cabelo,
de mel silvestre à cata. Algo tem de garoto,
vestido só nos rins de couro de camelo.

O corvo traz-lhe pão. Quer mel e gafanhoto.
Peludo, a barba grande, o olhar é setestrelo.
Amedronta os leões. Profeta no seu zelo
clama contra a mulher de Herodes, o maroto.

Dizem que Salomé tentou no amor prendê-lo.
A filha da serpente! Ele é decerto Elias.
A mulher é devassa e o marido é maroto.

Dá prova de excelente e santo e heroico e douto
esse que desprezando Herodes e Herodias
se veste de camelo e come gafanhoto.
(1928)

CREPÚSCULO

Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões. Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do ocaso, ficam quase solferinas.
A cor dourada agora tudo invade,
Tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente, mas a aurora.
(1926)

OS PÁSSAROS DE BRONZE

Bronze no ocaso e vinhos no horizonte.
E o mar de bronze e sobre o bronze os vinhos.
No rei das aves o poder do arconte
e o sangue azul nos rubros passarinhos.

No meu telhado eu vejo em vossa fronte,
meu cardeal, o rubro entre os arminhos.
Pintou Bronzino esses três reis da fonte:
bronze nas asas, no diadema os vinhos.

O bronze imperial lá está na ponte.
E o bronze voa e esses três reis sozinhos.
Bronzes ao longe e outros no mar defronte.

E o bronze abrasa os pássaros marinhos.
E os reis do ocaso, as aves de Belmonte,
cantando ostentam seus brasões e arminhos.
(1959)

A VIRGEM

Sei de Virgem que leva de joelhos
adorando os poentes de Belmonte,
quando em vez de dourados ou vermelhos,
ornam de cravos roxos o horizonte.

Virgem descalça de gentis artelhos
ama os poentes quando vem da fonte
com os lindos seios quais pequenos coelhos
e o olhar de imagem, merencório e insonte.

Ela idolatra no poente a mágoa
que o roxo espelha em floração de lírios.
Ama com os olhos marejados de água

os poentes roxos, nunca os poentes tírios
e o pranto enxuga no candor da anágua,
vendo-os nas sobras apagando os círios.
(1935)

OBSESSÃO DO AMARELO

A areia é fulva, o monte é flavo e a flora
de bronze e de ouro. Sideral capela
adorna o bosque que dourado agora
mais lindo esplende entre os topázios dela.

De um ruivo estranho o lírio se colora
e o trevo exibe um jalde de aquarela.
O áureo matiz até na passiflora
dominadoramente se revela.

Chinês pincel esse esplendor dirige,
lançando agora em cima da folhagem
tanto amarelo que a pupila aflige.

E na paixão mongólica e selvagem
pelos tons de ouro a natureza exige
que os próprios troncos amarelo trajem.
(1927)

ESTÃO AS PROSTITUTAS NO POENTE

Estão as prostitutas no poente
olhando as rosas e adorando as aves.
Oh! como são doridas e suaves
as suas almas onde há chama ardente.

Estão as humilhadas no poente.
Chegam do mar as orgulhosas naves
trazendo bronze pra a fornalha ardente
lá do país que despedaça as aves.

Cansadas de sofrer, as dolorosas
se embriagam de sonho, amando as rosas
e amando os lírios em ideais noivados.

Oh! se embebedam desse doce vinho.
E o fogo marcha com seus pés dourados
nas suas almas onde a dor fez ninho.
(1936)

O TRIUNFO DO AMARELO

Luta o amarelo contra o verde, agora,
no esforço de vencê-lo e confundi-lo.
E assim derrama, esdrúxulo, na flora
sépia, topázio, abóbora, berilo.

Transforma o bronze e anula o jade; e aquilo,
que é verde negro, aurífero, colora.
No esforço de vencê-lo e confundi-lo
luta o amarelo contra o verde, agora.

Aves azuis se pintam chinesmente
de jalde. E a própria flor da rubra amora
toda se pinta de âmbar louro, ardente.

E a luz do sol, sinfônica e sonora,
dos céus rolando, em mágica torrente,
a gama inteira do amarelo explora.
(1928)

A CANÇÃO DO MENINO DO EGITO

Quando surgir o sol no mar dos crocodilos,
irei caçar os grous com setas de açafrão.
E, assim que o pôr do sol ornar-me de berilos,
Voltarei ao país das flores do lodão.

Enquanto eu caço os grous e os pássaros tranquilos,
tu ficas nos jardins, beijando o meu pavão.
Só voltarei de tarde, ornado de berilos,
voando pelo mar, montado num dragão.

De lá trarei a flor que dá no Mar Vermelho
e a fênix traz no bico e atira sobre o espelho
do lago, pra que o grifo admire a perfeição.

Também trarei o nardo e a pedra preciosa
e os lótus cor de prata e os trevos cor de rosa,
quando caçar os grous com setas de açafrão.
(1935)

A PROCISSÃO DE CLEÓPATRA

A rainha do Egito, entre os lótus de opala,
finalmente surgiu no poente amarelo.
Na ânsia de contemplá-la o céu se faz mais belo
e o Nilo, que se azula, ao próprio céu se iguala.

E Cleópatra cintila, irreal, sem paralelo,
na charola do sol, pelo Nilo de opala.
É proclamada o arcanjo! E esplende o Nilo em gala
e em luz se desenrola esse momento belo.

Ela vem sobre o andor na barca de berilo.
Exalta-a ao som da lira a alexandrina escola.
E a procissão da deusa é uma lição de estilo.

Em graças de corola e entre os lótus de opala!
E a vê-la como arcanjo, em glória sobre o Nilo,
abre as portas o sonho e a magia se exala.
(1924)

NO JEQUITINHONHA

Desvaneceu-se a névoa. Ao sol a veia
do rio é prata. O pássaro procura,
tonto de luz, a sombra. Até clareia                                            
o interior da brenha sempre escura.

Fulgor. Ar morno. Abelhas na espessura
a flor azul, de pólen de ouro cheia,
buscam rodando. A abóboda é tão pura!
o vento gira músico e meneia

as frondes. Cresce a luz. Aumenta a gala.
As bromélias desprendem cheiro brando,
brilhantes como fogos de Bengala.

E pelas ramas pêndulas, repletos
de fruta, orvalho e mel, vão orquestrando
clarins as aves, crótalo os insetos.


A BARCAROLA DA NOITE
              Para Alves Ribeiro  

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.

A noite vem entrando a barra
trazendo o aroma lá das ilhas.
Sonoro como uma cigarra,
o mar dedilha uma guitarra,
improvisando redondilhas.
A cor do ocaso é tão bizarra
que lembra o pó das cochonilhas.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos barcos.
Surgem redondas como a lua
rosas de fogo pelos arcos.
Um véu de opala além flutua
e andam santelmos pelos charcos.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas
e as açucenas de Navarra
e as orquideias das Antilhas.

A noite vem numa falua
entrando a barra, entre as galeras.
As sombras trazem para a rua
rosas de estranhas primaveras.
Eis que ansiosas pela lua
as ondas gritam como feras.
O mar no entanto cintilando
parece a flor de um miosótis
e o olhar de opala das quimeras.

Os ventos passam fustigando
como demônios com chicotes.
Surge uma estrela recordando
O anel lilás dos sacerdotes.
Os ventos passam fustigando
as próprias árvores austeras
e vão aos uivos como um bando
de velocíssimas panteras.

A noite vem entrando a barra
mais aromal do que as baunilhas.
Com suavidades de guitarra,
o mar oscula as verdes ilhas.
O vento traz a cimitarra,
com que cortou jasmins nas ilhas,
e corta as ondas lá da barra.
Como serpentes em rodilhas,
as ondas silvam junto às ilhas
e vão florindo pela barra
ramos de brancas granadilhas.
E o mar parece uma cigarra,
todo rendado de escumilhas.

A noite vem entrando a barra
para dormir aqui no porto.
Parou dos ventos a fanfarra.
Os ventos foram para o horto,
dentro do bojo das galeras.

Trazem das ilhas as galeras
flores brilhantes como archotes.
Trazem das ilhas as galeras
cravos com mirra nas anteras
e os lindos ramos das gérberas
e os orientais estefanotes.

Trazem das ilhas as galeras
cerusa em cândidos pacotes,
vinhos em umas e em crateras
e esses estranhos rapazotes
com o ar de deuses de outras eras.

A noite vem numa falua
e a brisa vem do mar nos botes.
O mar cintila e espera a lua
e tem a cor de um miosótis.
A luz do ocaso é tão bizarra
que lembra a chama dos archotes.
A noite vem entrando a barra
tão negra como os hotentotes.
(1930)    


BÚFALO DE FOGO
              Para Jorge Amado

Anoiteceu. Roxa mantilha
suspende o céu do seu zimbório.
Que noite azul! que maravilha!
Sinto-me, entanto, merencório.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo fosfóreo,
enquanto as flores da baunilha
são como um cândido incensório.

Estão as casas figurando
como que um bando de camelas
a descansar sob as estrelas
em sideral reclinatório.
Longe, o farol de quando em quando
luze no plano das estrelas
como uma opala num zimbório.

Quem foi que trouxe os dromedários
para este vale que se encanta?
Foram decerto os visionários;
aqueles homens legendários,
trouxeram, pois, os dromedários.
Não foram, pois, esses sicários
e nem tampouco o sicofanta.

Anoiteceu. Roxa mantilha
suspende o céu do seu zimbório.
Que noite azul! que maravilha!
Sinto-me entanto, merencório.

Envenenou-me a mancenilha.
Ah! porque sei que o ideal é inglório,
tenho a tristeza de uma ilha
perdida em pélago hiperbóreo.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
Qual grande búfalo fosfóreo,
caído em rútila armadilha
como um tesouro venatório.

Andam no mar os ceroferários
com as cerofalas dos Templários
como no enterro de uma infanta.
O mar se encheu de lampadários
e brilha com os hostiários
e os mais preciosos relicários
e um colossal fogo de planta.
Oh! este mar dos lampadários
não brilha como os serpentários
e as pedrarias dos corsários
nem como as roupas do hierofanta.
Nem como o anel dos argentários
e os ouropéis do sacripanta.
E a onda glauco Stradivarius,
forma um violino e então descanta.
Sobe um perfume dos sacrários:
incenso ou mirra sacrossanta.
Vem ver o vento os dromedários,
correndo mais do que Atalanta.

Estou no cimo deste monte,
a cavaleiro da cidade.
Ora, maior do que um mastodonte,
Avança a treva para o monte,
passa por cima da cidade
e cinge o monte e agora o invade.
Saiu do mar o mastodonte
e cobre agora a imensidade.
Por que não vem Belerofonte
matar Tifon que os céus invade
com o ar sombrio de Caronte
e do infernal Marquês de Sade?
Mata esse monstro, Laocoonte.
Pede um punhal à imensidade.
Como um brilhante anel de arconte,
cintila à noite esta cidade.
Dentro da curva do horizonte,
Ilhéus recorda, ao pé do monte,
um grande búfalo bifronte
com olhos rútilos de jade.

Anoiteceu. Tudo rebrilha.
Sinto-me entanto, merencório.
A estrela está dos céus na trilha
brilhando mais do que um cibório.
Caindo em gotas na baunilha,
o orvalho é um lírico suspensório.
Oh! surge a negra mancenilha
no olhar de dom Juan Tenório.
Formosa pérola casquilha,
lembra a corola da baunilha
um madrigal em redondilha
e um angélico incensório.
A noite pôs sobre a mantilha
negro adereço de avelório
e pôs também a gargantilha,
grande colar de estrelas flóreo.
Como as formosas de Sevilha,
a noite vai ao desponsório.

Não quis brilhar para o noivado
da noite, a lua, aquela joia.
Não quis, romântica Lindoia,
pelo infinito constelado
rodar a rútila tipoia.
Não quis sair do mar dourado
brilhando mais do que o papado
e que a coroa de um ducado                                                                 
e que um soneto elogiado
de um velho bardo de Pistoia.

Não quis a lua andar no prado
que está no céu todo estrelado
e tem mais brilho que um noivado
e os quadros rútilos de Goya.
Não quis a lua, o rosto amado,
boiar dos céus na claraboia,
como um semblante decepado
de uma princesa de Saboia.
Não quis brilhar para o noivado
a lua. Helena astral de Troia.
Dentro da noite, iluminado,
despede Ilhéus clarões de joia,
qual grande búfalo encantado,
com cem pupilas de jiboia.

Dentro da noite sussurrante
pela canção das brandas auras,
Ilhéus recorda, neste instante,
um grande búfalo gigante
que, perseguido por centauras,
por ter os olhos de brilhante
e ser mais rápido que as auras,
veio agachar-se, palpitante,
ao pé do morro, entre as centauras.

Anoiteceu. Pede a mantilha
o céu à noite em doce rogo.
O bravo pélago dedilha
cantos mongólicos de Togo.
Protervos ventos em matilha,
como cem feras em regougo,
fazem da noite na Bastilha
revoluções de demagogo.
Ventos, ladrões de uma quadrilha,
depois do crime, vão pro jogo.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo de fogo.
(1928)

IMAGENS DA CHINA

No tempo da Cidade Proibida
foi um espetáculo sem rival na terra
a apoteose da China então toda celeste
deslizando lentamente em voo azul de seda,
na genial caracterização da borboleta.
Através dos salões e jardins daquele Santuário
Ela era a encarnação do rútilo e do alado.

A própria fulguração do sol vestia aquele enorme adejo
e a China nele pairava, asa ofuscante do dragão,
através dos espaços daquele mundo azul-celeste.
Houve, porém, a queda desse firmamento e dessa esfera.
Desapareceu um dia esse mundo dourado e palpitante.
Seu legado, porém, é verdadeira maravilha.
Tesouro agora nos museus da China
e no sentido da cultura uma joia universal.
Naquele mundo desaparecido e alado
cujo dragão ainda se pressente
movendo as asas através dos leques
eu vejo ali o dedo do poeta.
Na criação daquele mundo requintado,
verdadeiro império do adejante e do celeste,
que só se encontra paralelo no salão do rei de França,
em tudo ali eu vejo a marca do gênio do poeta.

Encerrou-se esse poema de seda e porcelana
e ainda hoje esse mundo se agita em suas asas:
o dragão palpita nesse mar de turquesa,
e o peixe se move dentro dessa pedra preciosa
e o jade não passa de cintilação dos lagos.
Uma estrela se descobre há séculos na China
e é apenas um lótus ainda ali no lago.
Sete pagodes cercando eternamente a estrela.
Sete lanternas iluminando esse grão de beleza.
E, dominando esse eterno reino de fascínio e de cintilação humana,
a própria paz celestial num pavilhão de porcelana.

Meu pensamento voa sobre a China.
Num labirinto de quiosques e de lagos
entre oceanos de arroz e mares amarelos,
jardins com mais lagos do que flores.
A água como um sonho de beleza
e a rosa dos ventos como a rosa dos lagos.
E vê-se até imensa gôndola de mármore
encalhada como palácio à beira d´água.
Veneziana, anadiomênica,
além desse detalhe portentoso,
a principal cultura dentro d´água
e a indústria no casulo do dragão.
E em tudo ali o dedo do poeta
e ainda um resto do esplendor do tempo borboleta
do tempo zéfiro, do tempo em sumo alado.

Vi um dia agitando docemente aquelas asas,
na fulguração do seu verão de leques e cigarras,
Pequim com seus jardins e lagos entre muros
e seus jardins suspensos de verão,
com suas ilhas que são os jardins dos mares,
com seus dragões que são as cores do arco-íris,
com seus peixes que são filos do dragão,
e o branco pagode então fechado,
onde se encerra o culto lama
e embaixo também se encerra
o passado da mosca
e a religião do ópio
e o próprio trabalho hercúleo
com que limparam estrebarias
deixadas pelos imperadores.
Muralhas defendendo
essa essência de viver em leves forma adejantes
e suspensas nas águas e debruçadas sobre as flores.
Muralhas fechadas, muralhas abertas.
Muralhas da China! Abençoadas muralhas!
Muralhas que amedrontam como um touro.
Frontes fechadas de touro, agora abertas.
E em todos esses símbolos o dedo do poeta.

(1957)



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