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Jorge Amado, Sosígenes Costa e Carlos Pena Filho, nesta ordem |
Nascido em Belmonte, em 1901, mas vivendo em Ilhéus de 1926 a 1954, quando se mudou para o Rio de Janeiro, onde viria a morrer em 1968, Sosígenes Costa é sempre um poeta lembrado e reverenciado, por sua poesia que merecia reconhecimento nacional, como registra neste comentário o escritor e artista visual Ricardo Domeneck.
Ricardo Domeneck
eu, foi um modernista dos mais brasileiros, quando pensamos em trabalhos como 'Iararana', fincado em um vocabulário de sua terra [e do seu mar]. José Paulo Paes escreveu com grande admiração sobre ele, e foi através de seu livro que o descobri no final do século passado. Contemporâneo de Murilo Mendes, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa (todos nascidos em 1901) e Carlos Drummond de Andrade {apenas um ano mais novo}, sua nunca-vinda para o Rio de Janeiro talvez explique parte de sua invisibilidade nos cânones nacionais. Mas se o seu 'localismo' o torna uma figura que me interessa muito, confesso ser outra parte de seu trabalho que me faz amá-lo. Homossexual raramente incluído no rol dos poetas da minha laia, Sosígenes Costa escreveu poemas de amor de uma exuberância ímpar. Era um escritor de exageros maravilhosos, camp-campistas, como outros aliás de sua-minha laia: Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Roberto Piva. Artifícios de fogo. Amo quando Sosígenes pavoneia. O exagero é por vezes de uma liberdade estonteante. Porque na geleia geral brasileira, ora, alguém também tem que ser músculo e pele se a medula e o osso quiserem andar.
Poesia de
intuição sensível
Florisvaldo Mattos
O tema se
presta a diáfanas cogitações.(1) Entre tantas, cabe-lhe bem a
que equipare a arte da poesia ao exercício de uma ociosidade edênica; celebre,
pela proximidade com a natureza, a plenitude das faculdades sensoriais, unida a
um pensamento desobrigado das operações lógicas, solto, incitando o corpo a
alongar-se sobre a relva, o espírito a espairecer, prazeroso, pelas amplas
avenidas do sonho e da imaginação, sob frondes outonais de um campo cultivado,
ou, de outro modo, convidando o poeta a passear, desgarrado de tudo, em terras
ainda virgens do passo humano, antes apenas visitadas por deuses, faunos e
ninfas. É como figuro Sosígenes Costa, ao percorrer os cenários da sua poesia
gerados por uma laboriosa criatividade.
Imagino-o em Belmonte ou
Ilhéus, pátrias gêmeas de uma fina e rara sensibilidade, de onde lhe sobressai
um íntimo pendor para o devaneio: jovem
e campestre Hipólito, a atravessar, célere e ofegante, claros bosques da
Argólida; ou, talvez, no alto de colinas, em aprazível clareira, sob virentes
copas frouxamente recostado, já maduro Sileno, após Virgílio arrastá-lo do
fundo de uma gruta, a deleitar parvos ouvidos com sons de flauta e cantos.
Palmilhando estradas, praias,
galgando encostas, o rei asceta, "de céus, de plantas, de águas
alumbrado", se apropria de tudo que lhe concede a fecunda terra grapiúna,
o que ela ostenta de lírica e plástica abundância, revolve reminiscências, bebe
o frescor do dia nos mananciais da infância, recompõe vivências, imagina e
transpõe cenários - visuais, aromáticos, sonoros, gustativos, tácteis -, e
constrói laboriosos e vívidos objetos verbais.
A criação poética percorre
todos os quadrantes do cosmo sensorial, onde tudo abstratamente se aglomera, se
ajusta e se transforma em coisa que se vê, cheira, ouve, prova e toca, casando
o espírito com a totalidade do universo.
Lembra o luso de Camões, na
ideada Ilha dos Amores (Os Lusíadas, Canto
IX), a correr pela floresta, onde "se
deixavam/ andar as belas deusas, como incautas, algumas, tocando doces cítaras, outras, harpas e sonoras flautas, e outras mais,
co´os arcos de ouro, a se fingirem
seguidoras de animais, que não seguiam, e
onde, como aduz o bardo, sugerindo e conferindo tonalidade edênica e erotismo à
cena:
Duma os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e da outra as fraldas
delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes, súbito
mostradas.
Uma de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que
indignadas
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa
praia. 2
Em Sosígenes Costa, andarilho
do sensual e do fantástico, encontramos o mesmo estro, em semelhantes e
bucólicos pagos - os de Ilhéus e de Belmonte da sua juventude.
Neste ambiente de natureza
ubérrima, de paraíso inaugural, o poeta move o arguto olhar, contempla vasto
horizonte de céu, terras e águas. Passeia, atravessando matas e vergéis, prados
e jardins, onde luzes, sons e perfumes invadem-lhe o corpo, brisas roçam-lhe a
pele brônzea e macia. Aqui e ali, toca em suaves arbustos, aspira ramos e
folhagens, colhe flores e frutos, a degustar, sob árvores, em latadas de
vaporosos ritos, exóticos manjares, sorvendo o espetáculo que lhe concedem
cristalinas manhãs ou tardes que declinam, placidamente entregue ao gozo da
meditação.
Imagino-o, ainda, deitado de
espáduas sobre tranquilos terraços, gramados ou areias claras, a descansar,
como ele próprio diz num poema, "em sideral reclinatório", a fitar
profundo céu em noite de ares difusos, chuva de sombras e estrelas desabando
verticalmente sobre o peito, semelhando a seus olhos de espanto fluidas
metamorfoses de cosmo incendiado.
Imagino, e sei o quanto de
sonho, sentimento e emoção, de fantasia e enlevo, seus sentidos avidamente
captam, no fluir de dias azuis e noites fosfóreas, em estado de industriosa
contemplação. E mais: quanto, em solidão, lhe apraz tudo o que ouve, vê,
cheira, saboreia e toca, e o que percebe, com cada uma das células de seu corpo
- dádivas terrestres, aéreas ou aquáticas, ao fim dessa experiência generosa,
translúcida e comunicativa com o meio natural que o rodeia; quanto o poeta se
sente mais homem do mundo, na paz que ao espírito lhe transmite toda a sua
instruída humanidade.
São estados estes em que a
imaginação se harmoniza com a criação, como forma de alcançar-se um grau
superior de beleza. O poeta elege um certo ângulo - o da arte, o da memória, da
sua própria prospecção mental e cultural - para revelar, com devota percepção e
lucidez de linguagem, coisas e cenários, sentimentos e vivências, que lhe
povoam a existência e persistem no seu espírito. Pergunto: não fosse por meio
desse prodigioso artifício, acaso seria possível ao mísero mortal leitor
acercar-se do que pensou e disse Horácio - "Se quiseres que eu chore, tu
próprio tens de ter estado triste" - e, com isso, me aperceber de muito do
que sinto e não sei dizer, e só a arte pode expressar?3
Esses estados anímicos escapam
ao racional, pois só se transmitem através de um jogo de aparências e formas
acidentais, que nem mesmo toda a arquitetura do conhecimento lógico, para
investigar e formular as leis do universo, seria capaz de atingir. Fenômeno que
para nós se afigura irresistível: o poeta põe a alma a se mover como uma sombra
do mundo, no intuito de provar que a beleza transita em um território de
infinitas opções que somente à arte e à poesia diz respeito.
Em outra vertente, mas na mesma
pulsão imaginativa, lendo versos de Sosígenes Costa, conjeturo quantos artistas
e poetas buscam num passado, próximo ou remoto, energias e alquimias que
funcionem como poderoso elixir de revitalização espiritual, pois, não se pode
negar o quanto, desde os primórdios da cultura moderna, a arte e a poesia se
têm empenhado em recuperar signos de épocas passadas, seja para com eles
iluminar os caminhos de seu estro, ou simplesmente iluminarem-se, seja para se
apossar das luzes e das chamas, que aclaram e agitam a intimidade e a
imaginação de cada criador - enfim, para apossar-se de uma ars poética e construir um estilo próprio.
Deste modo, conjeturo, a partir
do renascimento, passando pelo barroco, o arcadismo, o romantismo, o
parnasianismo, o simbolismo, até o modernismo, em suas múltiplas correntes
estéticas, o retorno de poetas e artistas a antigos cenários, formas, hábitos,
costumes e realizações culturais sempre funcionou como ardente instigador da
criatividade e um poderoso antídoto às contingências e imposições de um
presente propício à desconfiança e à recusa, talvez convencidos de que são a
arte e a poesia que verdadeiramente legislam para a humanidade e, por isso, não
sujeitas a delimitações, a se tornarem coágulos no tempo.
Figuremos então o poeta Sosígenes Costa investido na
plenitude de sua humanidade, dentro do mundo, atento, sentimentos em acesa
percepção, talvez em sonho ou meia vigília, com tudo o que lhe doou a natureza
e que, por algum título difuso de propriedade espiritual, lhe pertence. Munida
de seus plenos poderes, a mente como que vegetalizada, mineralizada, maneja os
atributos da vida animal, sente-se na posse de uma buliçosa carpintaria
sensual, uma forja rútila, uma tecelagem de infinitos padrões e estampa.
Então, de repente, ele se torna, não apenas "um
nobre entre os rapazes", como se anuncia, num momento de regalo que lhe
proporciona à íris um crepúsculo de seu amado torrão grapiúna, mas um mago que
exerce soberania celestial, porque instalado em seu destino de cidadão do
mundo, a construir fantásticas e caprichosas arquiteturas, compostas de
palavras, ritmos e imagens. E, não satisfeito, delineia cenários grávidos de
beleza e mistério, para nós uma doação do espírito refinado ao corpo sensível.
Plena de evocações míticas e místicas, sagradas ou
profanas, e carregada de valores estéticos, vejo a poesia de Sosígenes Costa
como um imenso e árduo canteiro, onde laboriosamente constrói imagens que se
tornam veículos de uma verdade íntima, centrada na crença em um humanismo
libertador, pelo qual o poeta estabelece a sua comunhão com o mundo, que não se
efetiva de outra maneira senão por meio de categorias sensuais, como forma de
apreensão sublimada do real, exercidas apenas através das suas intuições
sensíveis, aquelas para as quais não existem definições conceituais, ao
recusarem, como lamenta Galvano della Volpe, "a co-presença orgânica ou de
qualquer modo eficiente do intelecto, quer como discurso quer como
ideias", embora sejam as palavras da poesia, constitutivas das imagens,
elas próprias, veículos de conceitos.
Referindo-se à imagem poética e pondo sob suspeita o
conhecimento intuitivo que a pressupõe, o filósofo e crítico italiano reputa
essa propriedade intelectual como uma persistente "herança
romântica", portadora de "misticismo estético", mesmo quando
entendida "como símbolo ou veículo de verdade", e a increpa de grave
obstáculo que a estética e a crítica literária modernas têm encontrado no seu
caminho.
Denunciando o fundamento radical de seu juízo
crítico, Della Volpe deplora essa forma de autonomismo contemplativo do prazer
artístico e estende indiretamente sua censura ao pensador e crítico marxista
Georg Lukács, embora se trate de um correligionário de doutrina filosófica, ao
patrocinar a ideia de que "a arte faz intuir sensivelmente" aquilo
que a ciência envolve em "elementos abstratos" e "definições
conceituais".
Ergue então óbices a essa forma de misticismo
estético, para cuja revogação considera urgente convocar as forças da razão,
embora reconheça a sua análise como de certa forma "provisória, parcial,
limitando-se simplesmente ao critério do alcance imediato", sua submissão
enfim, "aos fins do gosto". Felizmente, pois é justamente com tal
discernimento - o das intuições sensíveis, estou certo - que age o poeta
Sosígenes Costa: das arcadas de sua privilegiada sensibilidade e congruente
humanismo, divisa os horizontes do mundo e o intui de forma peculiar, com uma
experiência mediada pela fantasia e, desse modo, graças puramente à sua
sensibilidade, busca atingir a essência da poesia.4
NOTAS
1 - Capítulo de Travessia de oásis - A sensualidade na
poesia de Sosígenes Costa, de Florisvaldo Mattos (págs. 27 a 32). Salvador:
Empresa Gráfica da Bahia. Projeto gráfico e editoração eletrônica de Guido
Guerra. Ilustrações de Itamar Espinheira (capa, contracapa e página interna).
Lançamento previsto para o dia 25 próximo, na Academia de Letras da Bahia, às
18 horas.
2 - Camões, Luís de - Os Lusíadas (Canto IX). Comentados por
Slveira Bueno. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s. d.
3 - Uma quase tradução deste
preceito de Horácio pode ser encontrada em Manuel Bandeira, no poema
"Desencanto", datado de 1912 e escrito em Teresópolis, constante no
seu primeiro livro, A Cinza das Horas
(1917), em cuja primeira quadra lê-se: "Eu faço versos como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha
o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto".
4 - Volpe, Galvano della - Crítica do Gosto, Volumes 1 e 2.
Tradução de António Ribeiro. Lisboa:
Editorial Presença (Biblioteca de Ciências Humanas), s/d.
SONETOS PAVÔNICOS
Em 2014, o poeta e editor Carlos Machado publicou em seu portal poesia.net, nº 317, uma coletânea de poemas de Sosígenes Costa, destacando os seus chamados sonetos pavônicos. Veja-se o link abaixo.
http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet317.htm
OUTROS POEMAS DE SOSÍGENES COSTA
CREPÚSCULO DE MIRRA
A
tarde fecha a cintilante umbela.
Vêm
os aromas como uma grinalda
ornar
a sombra arroxeada e bela
e
ungir os nossos sonhos de esmeralda.
Nuvens
de mirra e oriental canela
formam
na sombra a singular grinalda.
E
a tarde fecha a cintilante umbela
e
o vento as asas do dragão desfralda.
A
própria lua vem lançando aroma.
Nasce
vermelha como a flor de um cardo
e
sobre a mirra dos vergéis assoma.
E
a noite chega no seu grifo pardo,
cheirando
a incenso como o rei de Roma
e
como Herodes rescendendo a nardo.
(1937)
A MAGNIFICÊNCIA DA TARDE
Voa
ao poente a túnica da brisa
se
desmanchando em chuva de lilases.
A
tarde, ante essa mágica, se irisa
e
exibe cores francamente audazes.
A
natureza, certo, romantiza...
Há
nos jardins fascinações de oásis
e
os encantos do olhar de Mona Lisa
estão
nas rosas e nos grous lilases.
De
súbito, o crepúsculo termina.
O
céu agora todo se reveste
de
uma capa de príncipe da China.
E
na ponta de um cônico cipreste,
a
lua nova paira, curva e fina,
como
o chifre de um búfalo celeste.
(1937)
ABRIU-SE UM CRAVO NO MAR
A
noite vem do mar cheirando a cravo.
Em
cima do dragão vem a sereia.
O
mar espuma como um touro bravo
e
como um cão morde a brilhante areia.
A
noite vem do mar cheirando a cravo.
Com
palidez de lírio, a lua cheia
surge
brilhando e a água do mar prateia
e
o mar cintila como um pombo flavo.
O
odor do cravo pela noite aumenta.
A
noite, em vez de azul, está cinzenta.
Sente-se
o aroma até no lupanar.
O
mar atira no rochedo o açoite.
Aquele
aroma aumenta pela noite.
É
o cravo que o dragão trouxe do mar.
(1930)
RESSUREIÇÃO NO AROMA
Vi
seu cabelo em roxo amortalhado,
os
pés na sombra e em roxa sombra o manto.
Lavei
seus pés com o sonho do amaranto
e
o aroma alado e o incenso sacrossanto.
Deitei
verbena em seu lilás toucado
e
ei-lo em dourado aroma aureolado.
Tornou-se
a própria alma do noivado
assim
lavado nesse aroma santo.
Transfigurado
em sonho de amaranto,
na
rosa ungido completou-se o encanto,
e
ei-lo na própria aurora amortalhado.
Lilás
de mirra já lhe aclara o manto.
Beijo
os seus pés. Já estão no aroma alado
e
agora adeja sobre o aroma o santo.
(1959)
O PÔR DO SOL DO PAPAGAIO
O
papa-vento nos jardins de maio
e
o verde papa no seu mar de leite.
O
mar, já não é azul, é verde-gaio
num
clarão que é relâmpago de azeite.
Se
o mar é belo sem que a tarde o enfeite
quanto
mais se o enfeitar o sol de maio.
O
mar do papa-vento é o papagaio
e
o céu do verde papa é o papa-leite.
Latadas
cristalinas em desmaio.
Tombam
flores do céu, meu papagaio.
E
o papa-vento é de cristal e leite.
Deite
leite, meu mar, pro papagaio.
Que
o papagaio em verde se deleite
e
não se enfeite de outra cor em maio.
(1928-1959)
OS ENIGMAS DA RAINHA DE SABÁ
Vai
Salomão entre os leões que doma
decifrar
para os magos da Caldeia
o
enigma dos anjos de Sodoma
quando
Belkis em pleno templo assoma.
Toda
a atenção se volve na assembleia
para
o esplendor da imperatriz do aroma.
E
ela expõe a parábola sabeia
e
os encantos guardou numa redoma.
Difícil
para o arúspice de Roma,
não
para Salomão, rei da Judeia.
Para
o rei sábio o enigma é um axioma.
E
conquistando a deusa da azureia
decifra-lhe
os enigmas do aroma
e
todos seus encantos de Medeia.
(1959)
O ANJO DA APOTEOSE
Sua
mão de cerusa erguia a cerofala,
quando
o vi da capela a entrar no peristilo.
Prefiro
em suas mãos os fogos de Bengala
e
a lâmpada de opala e o pincel de Murilo.
Embora
lembre a estrela e o sol na ravenala
o
círio em suas mãos me faz triste e intranquilo.
Se
o arcanjo é a borboleta, eu passo a preferi-lo
queimando
em grande pompa os fogos de Bengal.
Nas
pompas de berilo este anjo é o setestrelo.
Cintila
no meu sonho. Ele é a expressão da gala.
O
gênio desta chama. É doce amá-lo e vê-lo.
Quando
entanto eu morrer, perdendo o mundo e a opala,
quero
junto de mim, com todo amor e zelo,
sua
mão de cerusa erguendo a cerofala.
(1935)
SÃO JOÃO
Só
come gafanhoto e sozinho na mata,
sem
olhar a mulher, sem cortar o cabelo,
de
mel silvestre à cata. Algo tem de garoto,
vestido
só nos rins de couro de camelo.
O
corvo traz-lhe pão. Quer mel e gafanhoto.
Peludo,
a barba grande, o olhar é setestrelo.
Amedronta
os leões. Profeta no seu zelo
clama
contra a mulher de Herodes, o maroto.
Dizem
que Salomé tentou no amor prendê-lo.
A
filha da serpente! Ele é decerto Elias.
A
mulher é devassa e o marido é maroto.
Dá
prova de excelente e santo e heroico e douto
esse
que desprezando Herodes e Herodias
se
veste de camelo e come gafanhoto.
(1928)
CREPÚSCULO
Resplandece
o crepúsculo de jade,
de
turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos
céus há pavões. Toda a cidade
é
lilás com repuxos de anilinas.
As
aves cor de gesso, à claridade
do
ocaso, ficam quase solferinas.
A
cor dourada agora tudo invade,
Tornando
as passifloras ambarinas.
A
natureza cintilante e amena
sardanapalescamente
se decora,
brilhando
mais que as asas da falena.
Todo
o horizonte de lilás se enflora.
Traja
galas de príncipe a açucena.
Não
parece o poente, mas a aurora.
(1926)
OS PÁSSAROS DE BRONZE
Bronze
no ocaso e vinhos no horizonte.
E
o mar de bronze e sobre o bronze os vinhos.
No
rei das aves o poder do arconte
e
o sangue azul nos rubros passarinhos.
No
meu telhado eu vejo em vossa fronte,
meu
cardeal, o rubro entre os arminhos.
Pintou
Bronzino esses três reis da fonte:
bronze
nas asas, no diadema os vinhos.
O
bronze imperial lá está na ponte.
E
o bronze voa e esses três reis sozinhos.
Bronzes
ao longe e outros no mar defronte.
E
o bronze abrasa os pássaros marinhos.
E
os reis do ocaso, as aves de Belmonte,
cantando
ostentam seus brasões e arminhos.
(1959)
A VIRGEM
Sei
de Virgem que leva de joelhos
adorando
os poentes de Belmonte,
quando
em vez de dourados ou vermelhos,
ornam
de cravos roxos o horizonte.
Virgem
descalça de gentis artelhos
ama
os poentes quando vem da fonte
com
os lindos seios quais pequenos coelhos
e
o olhar de imagem, merencório e insonte.
Ela
idolatra no poente a mágoa
que
o roxo espelha em floração de lírios.
Ama
com os olhos marejados de água
os
poentes roxos, nunca os poentes tírios
e
o pranto enxuga no candor da anágua,
vendo-os
nas sobras apagando os círios.
(1935)
OBSESSÃO DO AMARELO
A
areia é fulva, o monte é flavo e a flora
de
bronze e de ouro. Sideral capela
adorna
o bosque que dourado agora
mais
lindo esplende entre os topázios dela.
De
um ruivo estranho o lírio se colora
e
o trevo exibe um jalde de aquarela.
O
áureo matiz até na passiflora
dominadoramente
se revela.
Chinês
pincel esse esplendor dirige,
lançando
agora em cima da folhagem
tanto
amarelo que a pupila aflige.
E
na paixão mongólica e selvagem
pelos
tons de ouro a natureza exige
que
os próprios troncos amarelo trajem.
(1927)
ESTÃO AS PROSTITUTAS NO POENTE
Estão
as prostitutas no poente
olhando
as rosas e adorando as aves.
Oh!
como são doridas e suaves
as
suas almas onde há chama ardente.
Estão
as humilhadas no poente.
Chegam
do mar as orgulhosas naves
trazendo
bronze pra a fornalha ardente
lá
do país que despedaça as aves.
Cansadas
de sofrer, as dolorosas
se
embriagam de sonho, amando as rosas
e
amando os lírios em ideais noivados.
Oh!
se embebedam desse doce vinho.
E
o fogo marcha com seus pés dourados
nas
suas almas onde a dor fez ninho.
(1936)
O TRIUNFO DO AMARELO
Luta
o amarelo contra o verde, agora,
no
esforço de vencê-lo e confundi-lo.
E
assim derrama, esdrúxulo, na flora
sépia,
topázio, abóbora, berilo.
Transforma
o bronze e anula o jade; e aquilo,
que
é verde negro, aurífero, colora.
No
esforço de vencê-lo e confundi-lo
luta
o amarelo contra o verde, agora.
Aves
azuis se pintam chinesmente
de
jalde. E a própria flor da rubra amora
toda
se pinta de âmbar louro, ardente.
E
a luz do sol, sinfônica e sonora,
dos
céus rolando, em mágica torrente,
a
gama inteira do amarelo explora.
(1928)
A CANÇÃO DO MENINO DO EGITO
Quando
surgir o sol no mar dos crocodilos,
irei
caçar os grous com setas de açafrão.
E,
assim que o pôr do sol ornar-me de berilos,
Voltarei
ao país das flores do lodão.
Enquanto
eu caço os grous e os pássaros tranquilos,
tu
ficas nos jardins, beijando o meu pavão.
Só
voltarei de tarde, ornado de berilos,
voando
pelo mar, montado num dragão.
De
lá trarei a flor que dá no Mar Vermelho
e
a fênix traz no bico e atira sobre o espelho
do
lago, pra que o grifo admire a perfeição.
Também
trarei o nardo e a pedra preciosa
e
os lótus cor de prata e os trevos cor de rosa,
quando
caçar os grous com setas de açafrão.
(1935)
A PROCISSÃO DE CLEÓPATRA
A
rainha do Egito, entre os lótus de opala,
finalmente
surgiu no poente amarelo.
Na
ânsia de contemplá-la o céu se faz mais belo
e
o Nilo, que se azula, ao próprio céu se iguala.
E
Cleópatra cintila, irreal, sem paralelo,
na
charola do sol, pelo Nilo de opala.
É
proclamada o arcanjo! E esplende o Nilo em gala
e
em luz se desenrola esse momento belo.
Ela
vem sobre o andor na barca de berilo.
Exalta-a
ao som da lira a alexandrina escola.
E
a procissão da deusa é uma lição de estilo.
Em
graças de corola e entre os lótus de opala!
E
a vê-la como arcanjo, em glória sobre o Nilo,
abre
as portas o sonho e a magia se exala.
(1924)
NO JEQUITINHONHA
Desvaneceu-se
a névoa. Ao sol a veia
do
rio é prata. O pássaro procura,
tonto
de luz, a sombra. Até clareia
o
interior da brenha sempre escura.
Fulgor.
Ar morno. Abelhas na espessura
a
flor azul, de pólen de ouro cheia,
buscam
rodando. A abóboda é tão pura!
o
vento gira músico e meneia
as
frondes. Cresce a luz. Aumenta a gala.
As
bromélias desprendem cheiro brando,
brilhantes
como fogos de Bengala.
E
pelas ramas pêndulas, repletos
de
fruta, orvalho e mel, vão orquestrando
clarins
as aves, crótalo os insetos.
A BARCAROLA DA NOITE
Para Alves Ribeiro
A noite vem numa
falua
e a brisa vem do
mar nos botes.
O mar cintila e
espera a lua
e tem a cor de um
miosótis.
A luz do ocaso é tão
bizarra
que lembra a chama
dos archotes.
A noite vem
entrando a barra
tão negra como os
hotentotes.
A noite vem
entrando a barra
trazendo o aroma
lá das ilhas.
Sonoro como uma
cigarra,
o mar dedilha uma
guitarra,
improvisando
redondilhas.
A cor do ocaso é
tão bizarra
que lembra o pó
das cochonilhas.
A noite vem numa
falua
e a brisa vem do
mar nos barcos.
Surgem redondas
como a lua
rosas de fogo
pelos arcos.
Um véu de opala
além flutua
e andam santelmos
pelos charcos.
A noite vem
entrando a barra
mais aromal do que
as baunilhas
e as açucenas de
Navarra
e as orquideias
das Antilhas.
A noite vem numa
falua
entrando a barra,
entre as galeras.
As sombras trazem
para a rua
rosas de estranhas
primaveras.
Eis que ansiosas
pela lua
as ondas gritam
como feras.
O mar no entanto
cintilando
parece a flor de
um miosótis
e o olhar de opala
das quimeras.
Os ventos passam
fustigando
como demônios com
chicotes.
Surge uma estrela
recordando
O anel lilás dos
sacerdotes.
Os ventos passam
fustigando
as próprias
árvores austeras
e vão aos uivos
como um bando
de velocíssimas
panteras.
A noite vem
entrando a barra
mais aromal do que
as baunilhas.
Com suavidades de
guitarra,
o mar oscula as
verdes ilhas.
O vento traz a
cimitarra,
com que cortou
jasmins nas ilhas,
e corta as ondas
lá da barra.
Como serpentes em
rodilhas,
as ondas silvam
junto às ilhas
e vão florindo pela
barra
ramos de brancas
granadilhas.
E o mar parece uma
cigarra,
todo rendado de
escumilhas.
A noite vem
entrando a barra
para dormir aqui
no porto.
Parou dos ventos a
fanfarra.
Os ventos foram
para o horto,
dentro do bojo das
galeras.
Trazem das ilhas
as galeras
flores brilhantes
como archotes.
Trazem das ilhas
as galeras
cravos com mirra
nas anteras
e os lindos ramos
das gérberas
e os orientais
estefanotes.
Trazem das ilhas
as galeras
cerusa em cândidos
pacotes,
vinhos em umas e
em crateras
e esses estranhos
rapazotes
com o ar de deuses
de outras eras.
A noite vem numa
falua
e a brisa vem do
mar nos botes.
O mar cintila e
espera a lua
e tem a cor de um
miosótis.
A luz do ocaso é
tão bizarra
que lembra a chama
dos archotes.
A noite vem
entrando a barra
tão negra como os
hotentotes.
(1930)
BÚFALO DE FOGO
Para Jorge Amado
Anoiteceu. Roxa
mantilha
suspende o céu do
seu zimbório.
Que noite azul!
que maravilha!
Sinto-me, entanto,
merencório.
Dentro da noite,
Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo
fosfóreo,
enquanto as flores
da baunilha
são como um
cândido incensório.
Estão as casas
figurando
como que um bando
de camelas
a descansar sob as
estrelas
em sideral reclinatório.
Longe, o farol de
quando em quando
luze no plano das
estrelas
como uma opala num
zimbório.
Quem foi que
trouxe os dromedários
para este vale que
se encanta?
Foram decerto os
visionários;
aqueles homens legendários,
trouxeram, pois,
os dromedários.
Não foram, pois,
esses sicários
e nem tampouco o
sicofanta.
Anoiteceu. Roxa
mantilha
suspende o céu do
seu zimbório.
Que noite azul!
que maravilha!
Sinto-me entanto,
merencório.
Envenenou-me a mancenilha.
Ah! porque sei que
o ideal é inglório,
tenho a tristeza
de uma ilha
perdida em pélago
hiperbóreo.
Dentro da noite,
Ilhéus rebrilha
Qual grande búfalo
fosfóreo,
caído em rútila
armadilha
como um tesouro
venatório.
Andam no mar os
ceroferários
com as cerofalas
dos Templários
como no enterro de
uma infanta.
O mar se encheu de
lampadários
e brilha com os
hostiários
e os mais
preciosos relicários
e um colossal fogo
de planta.
Oh! este mar dos
lampadários
não brilha como os
serpentários
e as pedrarias dos
corsários
nem como as roupas
do hierofanta.
Nem como o anel
dos argentários
e os ouropéis do
sacripanta.
E a onda glauco
Stradivarius,
forma um violino e
então descanta.
Sobe um perfume
dos sacrários:
incenso ou mirra
sacrossanta.
Vem ver o vento os
dromedários,
correndo mais do
que Atalanta.
Estou no cimo
deste monte,
a cavaleiro da
cidade.
Ora, maior do que
um mastodonte,
Avança a treva
para o monte,
passa por cima da
cidade
e cinge o monte e
agora o invade.
Saiu do mar o
mastodonte
e cobre agora a
imensidade.
Por que não vem
Belerofonte
matar Tifon que os
céus invade
com o ar sombrio
de Caronte
e do infernal
Marquês de Sade?
Mata esse monstro,
Laocoonte.
Pede um punhal à
imensidade.
Como um brilhante
anel de arconte,
cintila à noite
esta cidade.
Dentro da curva do
horizonte,
Ilhéus recorda, ao
pé do monte,
um grande búfalo
bifronte
com olhos rútilos
de jade.
Anoiteceu. Tudo
rebrilha.
Sinto-me entanto,
merencório.
A estrela está dos
céus na trilha
brilhando mais do
que um cibório.
Caindo em gotas na
baunilha,
o orvalho é um
lírico suspensório.
Oh! surge a negra
mancenilha
no olhar de dom
Juan Tenório.
Formosa pérola
casquilha,
lembra a corola da
baunilha
um madrigal em
redondilha
e um angélico
incensório.
A noite pôs sobre
a mantilha
negro adereço de
avelório
e pôs também a
gargantilha,
grande colar de estrelas
flóreo.
Como as formosas
de Sevilha,
a noite vai ao
desponsório.
Não quis brilhar
para o noivado
da noite, a lua,
aquela joia.
Não quis,
romântica Lindoia,
pelo infinito
constelado
rodar a rútila
tipoia.
Não quis sair do
mar dourado
brilhando mais do
que o papado
e que a coroa de
um ducado
e que um soneto
elogiado
de um velho bardo
de Pistoia.
Não quis a lua
andar no prado
que está no céu
todo estrelado
e tem mais brilho
que um noivado
e os quadros
rútilos de Goya.
Não quis a lua, o
rosto amado,
boiar dos céus na
claraboia,
como um semblante
decepado
de uma princesa de
Saboia.
Não quis brilhar
para o noivado
a lua. Helena
astral de Troia.
Dentro da noite,
iluminado,
despede Ilhéus
clarões de joia,
qual grande búfalo
encantado,
com cem pupilas de
jiboia.
Dentro da noite
sussurrante
pela canção das
brandas auras,
Ilhéus recorda,
neste instante,
um grande búfalo
gigante
que, perseguido
por centauras,
por ter os olhos
de brilhante
e ser mais rápido
que as auras,
veio agachar-se,
palpitante,
ao pé do morro,
entre as centauras.
Anoiteceu. Pede a
mantilha
o céu à noite em
doce rogo.
O bravo pélago
dedilha
cantos mongólicos
de Togo.
Protervos ventos
em matilha,
como cem feras em
regougo,
fazem da noite na
Bastilha
revoluções de
demagogo.
Ventos, ladrões de
uma quadrilha,
depois do crime,
vão pro jogo.
Dentro da noite,
Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo
de fogo.
(1928)
IMAGENS DA CHINA
No tempo da Cidade
Proibida
foi um espetáculo
sem rival na terra
a apoteose da
China então toda celeste
deslizando lentamente
em voo azul de seda,
na genial
caracterização da borboleta.
Através dos salões
e jardins daquele Santuário
Ela era a
encarnação do rútilo e do alado.
A própria
fulguração do sol vestia aquele enorme adejo
e a China nele
pairava, asa ofuscante do dragão,
através dos
espaços daquele mundo azul-celeste.
Houve, porém, a
queda desse firmamento e dessa esfera.
Desapareceu um dia
esse mundo dourado e palpitante.
Seu legado, porém,
é verdadeira maravilha.
Tesouro agora nos
museus da China
e no sentido da cultura
uma joia universal.
Naquele mundo
desaparecido e alado
cujo dragão ainda
se pressente
movendo as asas
através dos leques
eu vejo ali o dedo
do poeta.
Na criação daquele
mundo requintado,
verdadeiro império
do adejante e do celeste,
que só se encontra
paralelo no salão do rei de França,
em tudo ali eu
vejo a marca do gênio do poeta.
Encerrou-se esse
poema de seda e porcelana
e ainda hoje esse
mundo se agita em suas asas:
o dragão palpita
nesse mar de turquesa,
e o peixe se move
dentro dessa pedra preciosa
e o jade não passa
de cintilação dos lagos.
Uma estrela se
descobre há séculos na China
e é apenas um
lótus ainda ali no lago.
Sete pagodes
cercando eternamente a estrela.
Sete lanternas
iluminando esse grão de beleza.
E, dominando esse
eterno reino de fascínio e de cintilação humana,
a própria paz
celestial num pavilhão de porcelana.
Meu pensamento voa
sobre a China.
Num labirinto de
quiosques e de lagos
entre oceanos de
arroz e mares amarelos,
jardins com mais
lagos do que flores.
A água como um sonho
de beleza
e a rosa dos
ventos como a rosa dos lagos.
E vê-se até imensa
gôndola de mármore
encalhada como
palácio à beira d´água.
Veneziana,
anadiomênica,
além desse detalhe
portentoso,
a
principal cultura dentro d´água
e
a indústria no casulo do dragão.
E
em tudo ali o dedo do poeta
e
ainda um resto do esplendor do tempo borboleta
do
tempo zéfiro, do tempo em sumo alado.
Vi
um dia agitando docemente aquelas asas,
na
fulguração do seu verão de leques e cigarras,
Pequim
com seus jardins e lagos entre muros
e
seus jardins suspensos de verão,
com
suas ilhas que são os jardins dos mares,
com
seus dragões que são as cores do arco-íris,
com
seus peixes que são filos do dragão,
e
o branco pagode então fechado,
onde
se encerra o culto lama
e
embaixo também se encerra
o
passado da mosca
e
a religião do ópio
e
o próprio trabalho hercúleo
com
que limparam estrebarias
deixadas
pelos imperadores.
Muralhas
defendendo
essa
essência de viver em leves forma adejantes
e
suspensas nas águas e debruçadas sobre as flores.
Muralhas
fechadas, muralhas abertas.
Muralhas
da China! Abençoadas muralhas!
Muralhas
que amedrontam como um touro.
Frontes
fechadas de touro, agora abertas.
E
em todos esses símbolos o dedo do poeta.
(1957)
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