sábado, 11 de julho de 2020

POESIA, SEMPRE, MESMO NA TRISTEZA

Crepúsculo e aproximação da noite, em terra e mar / s.d. e autor

QUANDO A TARDE FECHA A CINTILANTE UMBELA


Entardeci hoje defrontando-me com a triste noticia de despedida de um amigo, ex-aluno na Faculdade de Comunicação da UFBA, companheiro na Sucursal do Jornal do Brasil e de lides muitas a que o jornalismo conduz, Carlos Olympio de Azevedo. Foi-se um varão, que sempre se apresentou, não apenas como exemplo de afeto, fraternidade, consideração e amizade sincera, para com todos que o merecessem, mas também como um criador literário, que a todos acaba de surpreender, ao deixar em plena operação gráfica um livro que reúne múltiplas criações de sua lavra, concebidas na forma de poemas ou de escritos em prosa, como contos ou crônicas de íntimo sentir, cujo conteúdo me encaminharam pessoas da família, como expressão de vontade de quem os criou. Li-os e, ao final, percebi o quanto se dissemina pelos espaços da literatura o número de criadores, não anônimos, mas secretos, sejam poetas ou prosadores. E o agora saudoso Olympio de Azevedo pode ser considerado um dos que indubitavelmente se inscrevem nos verbetes dessa estirpe.
Vencendo as tristezas que esse momento de mim se apossa, sinto-me impelido por um surto de consciência aliada a um dever de fraternidade, transcrevendo um dos poemas de Olympio de Azevedo do conjunto de inéditos encaminhados para publicação, na forma própria, sem pontuação, revestido de aura telúrica e vivências rurais. Vai abaixo.
Que Júpiter o acolha e o tenha na sua glória eterna!
Ilustração: foto de Olympio, em seu gabinete.

PEDRA VIVA

Olympio de Azevedo

Meu mundo de trilhas e estradas largas
Paisagem sonhada no verde nu do azul
Chão de barro seco, por vezes molhado
Do movimento do vento vem a harmonia
O sol queimadeiro na quentura do vale
Vale a luminosidade e os cálcios da vida
Rios que banham a terra matam a sede
Alimentam esperança, constroem os sonhos
A lida diária faz esquecer o áspero amor
Perdido nas entranhas do asfalto negro
O corpo cansado de uma alma aquecida
No silêncio da história inerte das pedras
Amor não cabe na distancia que se perde
Lembrança mede a doce saudade partida
Sou vidro, espelho adormecido sem olhar
29.03.11
Carlos Olympio de Azevedo, ou só Olympio de Azevedo, como poeta e prosador 

APRESENTAÇÃO DE MASSARANDUPIÓ - UMA FORÇA ENCANTADA, DE OLYMPIO DE AZEVEDO (22.O7.2020)


AS MAGIAS DE OLYMPIO

É por demais conhecida a existência em muitos países de poetas e prosadores, cuja obra parece ter se produzido quase inteiramente às ocultas. São os denominados escritores secretos. Embora presumivelmente não faltem exemplos em todas as línguas, o mais citado deles situa-se na poeta americana Emily Dickinson, que passou toda a sua vida recolhida em casa, mas, quando morreu, descobriram-se caixotes com centenas de manuscritos inéditos, que, publicados, a tornariam um dos mais célebres autores da literatura em língua inglesa.
Devem existir muitos casos idênticos em língua portuguesa; contudo, seria trabalho ingente tentar identificá-los, mas, na Bahia, há pelo menos dois casos patentes: os de Sosígenes Costa (1901-1968) e Jair Gramacho (1930-2003). O primeiro veio a publicar sua Obra Poética, forçado por amigos, em 1959, aos 58 anos de idade, contendo poemas na maior parte acumulados por décadas em gavetas; o segundo gozaria de melhor sorte, pois, embora publicasse seus enaltecidos Sonetos de Edênia e Bizâncio, em 1959, veio a ter sua biografia literária salva por Homero, quando a Universidade de Brasília, onde fora professor de cultura greco-romana, trouxe a público postumamente as suas magistrais traduções de Hinos Homéricos.
Conjeturo que Olympio de Azevedo se insere nesta insólita, mas prodigiosa grei, desde que, tendo sido seu professor na Faculdade de Comunicação, da UFBA, e companheiro em redação de jornal por um bom tempo, só vim a ter conhecimento de sua atividade criativa, em poesia e prosa, num contato de tônus emergencial, quando me telefonou com voz embargada de quase despedida, anunciando-me que estava com um livro a caminho de publicação, e me solicitava que lhe fizesse a apresentação. Vim a ler os originais deste seu Massarandupió – Uma força encantada, quando me chegaram logo a seguir por especial gentileza de sua colaboradora Aldeci Andrade.
Confesso que levei um susto. Ali estava, para minha surpresa, a obra de um autêntico escritor secreto, representada por farto conjunto de versos, poemas em prosa, contos e outros variados escritos. Iniciei a leitura e, a cada página que lia, vinha-me a impressão de que se expunham criações em cuja estiva, especialmente nos poemas, não se hospedavam abstrações, desde que a presença do intelecto somente se expressava por sua articulação com palavras e imagens, no fulcro de alcançar a emoção, como sendo enfim o que sempre aguarda o leitor. É como se operasse ali um exercício de magia, com o afã criativo a deslizar por um leito de sonhos, imagens e percepções mágicas. Tudo se acomodava em elocuções líricas e, às vezes, em percursos discursivos impelidos por conjeturas de fundo social.
Olympio de Azevedo é um poeta com imaginação e sentir voltados para o mundo e para a vida: amor,  paixão, natureza, aventuras campestres, a terra, rios, ventos que galopam serranias e planícies, o fogo da paixão e da dúvida diante de complexos cenários, mulheres, erotismo, evocações de um passado infanto-juvenil, tudo isso, e mais, a se desdobrar em poemas ou em prosa de conotação poética, permitido pela frequência com que as Musas o visitam, mesmo que seja ao longo dos dois quilômetros das praia de Massarandupió, em Entre Rios, atraente e aprazível recanto de seus espairecimentos hedonistas, que se tornará no título do livro. Quando o intelecto se solta, invadindo o campo da criação, em poemas, reveste-se num manto de sensações para expressar um clamor em torno do significado da poesia dentro do universo e da existência humana.
Apesar de operar com versos curtos, no caso de enunciados com destinação musical, em parceria, o autor não costuma transitar pelos labirintos da forma literária, mesmo quando escreve versos emparelhados, de uma só ou várias estrofes, onde métrica e rima quase não têm vez. Podem em poemas entrelaçarem-se decassílabos com hendecassílabos e até com alexandrinos, mas sem qualquer impulso técnico e intencional. Aqui se revela um poeta visivelmente intuitivo. Além de conteúdo eivado de aura telúrica, vivências bucólicas e vasto hedonismo, o que sobrevive em seus versos e no que se pode chamar de poemas em prosa são a cadência, a entonação lírica e trânsitos verbais que soam pela voz de inocentes ecos surrealistas.
Eu e Olympio fomos amigos por décadas, havendo sempre entre nós uma relação de respeito, cordialidade, admiração e afeto sincero, embora nos víssemos poucas vezes, mas já houve quem dissesse que a verdadeira amizade não exige frequência. Afinal, quando editado e lançado, este seu livro, de conteúdo anos a fio secretamente guardados, não em gavetas, mas em arquivos eletrônicos, estará posto à disposição de ávidos e atuais pandêmicos leitores, enquanto ele, que sonhava vê-lo publicado, antes de triste e sofridamente ir-se, agora, entre orgulhoso e agradecido, certamente o lerá nas plagas celestiais, onde hoje habita, com Hebe risonha a lhe passar, não mais fulgentes taças com o vinho dos amantes sonhado por Baudelaire, mas com o redentor néctar dos deuses majestosos. Requiescat in pacem.

Florisvaldo Mattos

(Poeta e jornalista, membro da Academia de Letras da Bahia).

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