sexta-feira, 29 de maio de 2020

UNAMUNO: PREGAÇÃO E DEFESA DO HUMANISMO

A reação de Miguel de Unamuno a grito fúnebre de um general fascista, durante cerimônia no auditório da Universidade de Salamanca, ficou na história como um dos marcos gloriosos da célebre Guerra Civil espanhola. Clique aqui.


“O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade. Ninguém tem uma personalidade tão acusada como aquele que junta em si mais generalidade, aquele que leva no seu interior mais dos outros. O génio, foi dito e convém repeti-lo frequentemente, é uma multidão. É a multidão individualizada, e é um povo feito pessoa. Aquele que tem mais de próprio é, no fundo, aquele que tem mais de todos, é aquele em quem melhor se une e concentra o que é dos outros.
(...) O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa, enquanto querem enganar-se uns aos outros, pretendendo acreditar que pensam outra coisa, e sem conseguir que alguém acredite“.
Miguel de Unamuno

Miguel de Unamuno, este trecho postado por Raul Vieira Nogueira trouxe-me à mente a figura de um dos maiores pensadores espanhóis, altíssimo integrante da chamada "Generación del 98", juntamente com os poetas Antonio Machado, Ramón del Valle-Inclán e Juan Ramón Jiménez e outras celebridades da literatura, que morreu em 1936, logo nos inícios da famosa Guerra Civil espanhola, em consequência dos traumas que seus horrores espalhara. Vi nesta feliz postagem a oportunidade de reproduzir, nesses tempos de atmosfera política e ideias, que muito se assemelham às das forças vitoriosas, naquele famoso conflito, um artigo que publiquei no hoje extinto Caderno "Cultural", de A Tarde, por ocasião dos sessenta anos da morte de Unamuno, que a Espanha resolveu marcar com uma quase infindável série de homenagens. Segue abaixo o citado texto, pedindo desculpas pela imodéstia. (FM)

MIGUEL DE UNAMUNO

Arriba o humanismo

O episódio dramático mais célebre da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), rivalizando com o bombardeio de Guernica, por bombardeiros e caças Junkers alemães, a serviço de Franco, que Picasso eternizou num famoso painel, com o grito desesperado de La Pasionaria (Dolores Ibarruri) - No passarán! -, ante o avanço das tropas franquistas sobre Madri, e com o assassinato do poeta Garcia Lorca em Granada, teve como principal protagonista e sobrevive na memória, porque vitorioso e consagrador aos olhos da história, um personagem que Giovanni Papini iria definir como “o espírito mais representativo da Espanha de seu tempo”, o escritor e filósofo Miguel de Unamuno.
No dia 12 de outubro de 1936, num dos momentos de maior exaltação dos grupos em conflito - republicanos e nacionalistas -, em pleno salão de honra da Universidade de Salamanca, da qual era reitor vitalício, Unamuno pronunciou o que ficaria gravado na história como o discurso da sobranceria, em resposta à fala do general Millán Astray, que elegera como lema de campanha a frase tenebrosa “España, una. Viva la muerte!”; e, ali, perante um auditório repleto e congestionado de slogans belicosos, desfechara violento ataque contra os catalães e os bascos, e contra a intelectualidade que resistia ao primado da força.
Ante a multidão que fazia a saudação fascista em louvor do general e a parte emudecida da plateia, Unamuno sentiu que não podia silenciar; levantou-se e, tendo por detrás de si o retrato de Franco pendurado na parede, disse as palavras que vão reproduzidas adiante. É justamente a memória desse homem e desse histórico que a Espanha até hoje guarda e segue reverenciando muitos anos após sua morte, em dezembro de 1936. aos 72 anos de idade, em sua casa, aonde se recolhera doente e desiludido.
A comemoração se inicia com a publicação de seu livro Prensa de Juventud, que reúne artigos da mocidade de Unamuno na imprensa espanhola. E virão certamente reedições de seus principais livros dentre os quais estão Niebla (traduzido para o português, Névoa, e lançado pela Nova Fronteira, no Brasil, em 1989); Del sentimiento de la vida en los hombres y en los pueblos; Vida de Quijote y Sancho; La agonia del cristinianismo; Paz en la guerra; La Tia Tula, todos paradigmáticos do espírito e da cultura da Espanha. No ano passado, a editora Nova Alexandria lançou, com tradução de Mustafa Yazbek, um dos livros canônicos de Unamuno Três Novelas Exemplares e um Prólogo, em que o espanhol expressa seu pensamento a respeito da criação de personagens e do valor do trabalho literário, incluído pelo crítico Harold Bloom entre as obras fundadoras de seu polêmico cânone da literatura ocidental.
Neste livro, publicado pela primeira vez em 1920, mas só agora pela primeira vez traduzido no Brasil, Unamuno procurou transmitir o que entendia por existência humana, através da ótica do que se poderia chamar de uma estética exemplar, em que transparece toda a força de seu humanismo, prevalecendo a dialética entre a realidade, elaborada pelo autor, e a do universo psicológico que emana dos personagens. Em 1981, o filósofo e escritor espanhol Julian Marías citava um verso de Mallarmé, para ele imortal - “Tel qu’en lui même enfin l’éternité le change” - , para ressaltar a permanência de Unamuno, vendo crescer a expressão de suas ideias e de seu nome, após sua morte, como quem se recusasse a morrer, vibrando em cada um de seus leitores e em cada uma de suas obras editadas: “Ficou tremendo, vibrando, sem acabar de morrer, sem entrar na serenidade do passado”, observava.
“O que sobrevive, verdadeiramente, mais que as ideias, a melodia da frase, os temas ou o exemplo, é a figura. Todos, até os que pouco o leram e não muito bem, sabem quem era Unamuno, e quando se diz seu nome se evoca seu rosto, o corpo erguido, arrogante, um pouco vencido no fim, a maneira pessoal de vestir, o gesto altaneiro e enigmático. De Unamuno salvou-se o rosto, o prósopon, a máscara, inclusive, isto é, a pessoa”. (Julian Marías).
E ao grande poeta Antonio Machado, seu companheiro da geração “del 98”, como Ortega y Gasset, Gregório Marañon, Menendez Pidal, Perez de Ayala e Pio Baroja, talvez se deva tal premonição de perenidade, quando homenageou Unamuno, com estes versos:
“Livros novos. Abro um
de Unamuno
Oh, deleite
predileto
desta Espanha que se agita
porque nasce e volta a se erguer!...”.


A FALA DE UNAMUNO

“Estais esperando mis palabras. Mi conocéis bien y sabéis que soy incapaz de permanecer en silencio. A veces, quedarse callado equivale a mentir. Porque el silencio puede ser interpretado como aquiescencia. Quiero hacer algunos comentarios al discurso - por llamarlo de algún modo - del General Millán Astray, que se encuentra entre nosotros. Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, naci em Bilbao. El obispo lo quiera, es catalán, nacido en Barcelona. Pero ahora acabo de oír el necrófilo e insensato grito, “Viva la muerte”. Y yo que he pasado mi vida componiendo paradojas que excitaban la ira de algunos que no las comprendian, he de deciros, como experto en la matéria, que esta ridícula paradoja me parece repelente. El General Millán Astray es un inválido. No es preciso que digamos esto con un tono más bajo. Es un inválido de guerra. También lo fué Cervantes. Pero desgraciadamente en España hay actualmente demasiados mutilados. Y, si Dios no nos ayuda, pronto habrá muchísimos más. Me atormenta el pensar que el General Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicologia de la masa. Un mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que encuentre un terrible alívio viendo como se multiplican los mutilados a su alrededor”.
En este momento, Millan Astray gritó: “Abajo la intelegencia!
Viva la muerte!”.
“Este es el templo de la inteligencia. Y yo soy su sumo sacerdote. Estáis profanando su sagrado recinto. Venceréis, porque tenéis sobrada fuerza bruta. Pero no convenceréis. Para convencer, hay que persuadir. Y para persuadir necesitaríeis algo que vos falta: razón y derecho en la lucha. Me parece inútil el pediros que penséis en España”.

Abaixo, a fala de Unamuno, em tradução.
Espanholas aderentes ao fascismo

“Estais esperando por minhas palavras. Conheceis-me bem, e sabeis que sou incapaz de permanecer em silêncio. Às vezes, o conservar-se calado equivale a mentir. Porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Quero tecer alguns comentários ao discurso - se assim podemos chamar o que ouvimos - do general Millán Astray, que se encontra aqui entre nós. Deixarei de lado a afronta pessoal contida em sua repentina explosão contra os bascos e os catalães. Eu, próprio, como sabeis, nasci em Bilbao. O bispo, queira ele ou não, (e apontou para o prelado a seu lado na mesa), é catalão, nascido em Barcelona. (Deteve-se. Houve um silêncio de medo). Porém, neste momento, acabo de ouvir o grito necrófilo e insensato de “Viva a morte!” E eu, que passei minha vida dando forma a paradoxos que provocavam a ira daqueles que não puderam compreendê-los, devo dizer-vos, como autoridade no assunto, que este ridículo paradoxo me parece repulsivo. O general Millán é um inválido. Não é o caso de dizermos isto em um tom mais baixo. É um inválido de guerra. Cervantes também o foi. Porém, desgraçadamente, na Espanha de hoje, existem mutilados em demasia. E, se Deus não vier em nosso auxílio, haverá em breve muitíssimos outros. Atormenta-me o pensar que o general Millán Astray poderá vir a ditar normas de psicologia das massas. É de se esperar que um mutilado destituído da grandeza espiritual de Cervantes sinta um enorme alívio vendo como se multiplicam os mutilados ao seu redor”.
Neste momento, o general Millán não se conteve e gritou: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!”. Mas Unamuno prosseguiu:
“Este é o templo da inteligência. E eu sou o seu supremo sacerdote. Sois vós que profanais este sagrado recinto. Vencereis porque tendes mais do que a força bruta necessária. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta. Parece-me inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito”. Miguel de Unamuno, Universidade de Salamanca, 12 de outubro de 1936. (Tradução cotejada, F.M.).
Na época, desafiar o general, comandante de um corpo de exército que acumulava vitórias nas terras bascas, era desafiar o franquismo, o estado de guerra instalado, que avançava, e sua indústria de massacres.

Paro e penso, submerso em nevoeiro,
na cortina de dor sobre a Meseta,
na fala de Unamuno em Salamanca,
no que dizem ou bradam vozes grandes.

Súbito um berro. Rebentando os tímpanos

e rompendo a fissura das abóbadas,
incinera retinas quando rangem
os pulmões da loucura: “Viva a morte!”

(Florisvaldo Mattos, versos da parte 5 do poema “A Caligrafia do Soluço - Rastro sonâmbulo às Cinco da Tarde em Ponto”, expressão de sentimento hispânico lastreado sobre o imaginário da Guerra Civil espanhola; in A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996, p. 9).
(Textos publicados em A Tarde Cultural, em 03.02.96)







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