quinta-feira, 7 de maio de 2020

TRENS-DE-FERRO, DA GLÓRIA AO TRISTE FIM

Trem-de-ferro, pintura de Almiro Borges, artista plástico de Alagoinhas



http://www.algumapoesia.com.br/poesia4/poesianet525.htm?
fbclid=IwAR2w9uBIYVeVjiIyGQwHAu-MI1656le4VdOYIEc91bB1-toolqyJxeMi7M

Lembrar as ferrovias é um dever de quem por elas transitou, percorrendo e descortinando mundos. POESIA, SEMPRE!

SIM, A POESIA É NECESSÁRIA

Vander Aguiar, conterrâneo de Uruçuca/BA, repetiu no Facebook fotos de antigas estações de estrada de ferro, que eu por algum motivo havia antes postado, fazendo-me lembrar das estações da extinta ferrovia da Região do Cacau, hoje quase todas em dolorosa ruína, objeto de uma dissertação de Mestrado na Universidade Estadual de Santa Cruz, como as de Itajuípe (antiga Pirangy), Água Branca, Rio do Braço, Banco do Pedro, Mutuns, entre outras. Então, movido por sensações evocativas, sentei e escrevi este soneto quase tragicômico, que vai abaixo reproduzido, na forma como foi escrito, sem tirar nem por - um verso, uma palavra, uma vírgula... E vai o manuscrito com a foto de inauguração da estação de Itabuna, em 1911, hoje já não mais existente, como também a tradução da escrita. Saudade também se tolera... ainda mais saída do forno.

VELHAS ESTAÇÕES DE TREM

Florisvaldo Mattos

Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto dessa história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.

(Salvador, manhãzinha de 09/10/2015



COMPOSIÇÃO DE FERROVIA

I - Galope sangrento

Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.

Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.

Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.

Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.

II - Inclinação do Touro

Abandona-se à agonia das campinas
vencidas, idêntico de origens, branco touro.
Bruscamente desperta das árvores em fuga,
da massa dos dias. De repente, das raízes
do pranto inclina-se operoso, agrupa-se
a um barulho de ferros e caldeiras,
a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.
Do sentimento comum de águas em arranco,
súbito levanta-se, acorda ferroviárias
perspectivas amarradas ao volume do sono.

De aurora que lhe umedece cascos e chifres
baixa uma luz influente de conquista;
do seu dorso de argila ao meu rosto chega
uma luz que me alcança cruza-me os nervos
ampla de rumos mergulha na carne de todos
resistente caindo sem parar nas cabeças.
De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso
crepúsculo, evoluindo em cada elemento,
sua construção permanece de touro veloz
em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.
1911. Inauguração da estação da estrada de ferro de Itabuna/BA



APOGEU DOS VAGÕES

Noturnos vagões carregados de amargura,
de empilhados produtos e origens,
correi sobre horizontes dos dias!

Composição de espanto corrosivo
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.

Negros, armados de geometria difícil,
rota economia de outonos ressentidos,
duram interiores funerários
sobre sacos sombrios e carregadores.
Barris de angústia, lento soluço,
arrastado gemido sobre trilhos,
correi, sempre correi, sombra
afogada na sombra de sangrento galope.

Confuso grito e fúria registrando
velocidades e pressentimentos,
avançai contra noites, contra os dias,
noturnos vagões, consistência
de amarguras espessas e ferragens,
cruel fome de rodas gira-mundo. 


FERROVIAURA


I – Caminhos profundos

Tão nascida do homem como o homem
artefato da vida como a vida
de repente apagou-se fumo
                                               Flora

sobrevinda outorgou-se aura de espanto
sob frio apenas ululante rastro
de universo roubado à geometria

Pena que teve origem que sofrido
foi-lhe o passo de rio ossificado
comércio e fábrica foi
                                       Oceano útil

onde massas de fel tiveram porto
polígino conúbio do trabalho
com lavouras nutrindo-se em neblina
durou flecha de sol e foi perpétuo
vento esculpindo solo atormentado

Como oferta de assombro como silvo
indecifrado agreste nascimento
algo rompeu da selva taciturna
holocausto  a cipoal empedernido
despontou nos vales de secreto fausto
súbita mãe gestando moitas
                                               Deus

ex machina em seu tempo/movimento
senda de lavra e sangue

                                               Ferrovia

estrela agrimensora no deserto
pesquisando rochedos serras altas
teodolito assentado sobre a carne
mirando grotas pássaros em coma
arrosta-se à navegação de precipícios
célere mordendo manhãs desperta
chão de lágrimas águas ofendidas
floresta /brenha folhas
                                   
E ao fundo nuvens


Garra amputada à fauna de felinos
carapaça equipada de luz rude
para oferenda a deificado fruto

O verbo no princípio era de ferro
de fogo
                de fumaça mensageira
Lábaro sobrevoando paralelas
ou trilhos no úmido chão laborado
ou metal fugidio cravado em som
ou claro gesto na cor liberado
aeroplano espectral fotografando
tumba ou leito da State of Bahia
South Western Railway Company
de estio agulha para sempre cose
minério pedras troncos
                                               Labareda

língua incessante touro arremetendo
ao descampado o cosmo em disparada

Está morta
                        Sumiram-lhe os ouvidos
Foi-se o grito alvoroçador do verde
os olhos de esperança se apagaram
O dorso
                        O peito

                                               O império mineral

Hoje está morta
                                    E era maciço ferro
Era madeira forte
Tudo muito real
Serpente de fumo ou cão ígneo
rojado contra um milhão de relógios
Estação de Uruçuca/BA, antiga Água Preta, abandonada


II– A navegação dos horários

Conscientemente
                                    instalo-me sobre mudos
pontilhões e repasso calendários
De vapor o marulho transeunte
é das locomotivas ofegantes
Rodas e trilhos no asilo da ferrugem
abalando dormentes na lembrança
ensaiam no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram em terminais de sono
onde tudo é memória luto sombra

Congelados nos postes de telégrafo
espectros de mensagens desgarradas
soterrando-se em Morse de azinhavre
cifram em sinais de brumoso código
a solidão das estações em ruína
duelam contra ventos redundantes
funcionários dementes engenheiros
severos cabos-de-turmas
                                               Oligarcas
que à mesa pela noite jogam cartas
bebem uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente comem lauto
repasto convertido em florilégio
peões da estrada a martelar o sexo
regressando de abismos petrificam
desolado tributo que persegue
Mutuns Rio do Braço Água Preta
Santa Cruz Serra Verde Catolé
Cascata Pedras Pretas Poiri

Os atletas do trem soprando búzios
voam no pelo de cavalos doidos

Ante brasa e aço a dança dos foguistas
desperta cogumelos que deslizam
lentos por corredores de resina
e naufragam em crepitante pélago

Guarda-freios e maquinistas bêbados
escapando de sujos botequins
entoam sobre plataformas ermas
velhas canções de esperma itinerante
Estação de Ilhéus. de partiu a ferrovia do cacau


A fome lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes rosto braços pensamento
e agora por entre aldeias sanatórios
praças com animais mumificados
acena-lhes com moedas de crepúsculo
misturadas a ânsias confissões gemidos
que viajam na mala dos correios
pelos desvios despachando brisas
que sobressaltam como os telegramas

O maquinista da 15 era Paizinho
só ele percebe o que lhe dizem toros
estalando como ossos na fornalha

Paiva ia na 12 engolindo rampas

A 13 parecia o Cabeçorra
sacolejando-se em Banco do Pedro

Rude pandeiro é a terra quando a máquina
14 galgando Corte Obrigado
corta nervos na  pedra com seu  berro

Papa terra                                           Come trilho
Sobe serra                                          Salta Rio
Bebe fonte                                          Torra folha
Empurra nuvem                                 Arrasta safra
Açoita vento                           Acolhe pranto
Fruto acende                          Usura afaga
Conta mortos                          Canta a vida
Entrista casa                                       Espanta as aves

Rompe manhã                        Acorda as águas
Afia a tarde                                        O sangue queima
Aclara a noite                         O sonho alegra

E ferro fere o ar ferido                      
 a máquina

                        A máquina quando geme
é a centelha sentindo a cento e vinte
a bandeira vermelha nas tangentes
era de fato um sinal de perigo
que ninguém viu descendo para Ilhéus

Árvore rio nuvem recolheram
espetáculos de roupas suarentas
e teceram no espaço dos horários
biografias murais de óleo e carvão
Restos da ferrovia de Ilhéus, após a extinção


Dos trens de carga aqueles vagões negros
levam sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais de família minhas queixas
rolam por ribanceiras vêm como águas
de cheia
                        Torturadas torturando

As armações dos verdes armazéns
delegam ao ferro forças irreais
para guardar sob zinco a sacaria
Safras de cacau
           
                             Vidas em coágulo

Mercadorias fremem ao som distante
de um telefone negro endoidecido
O velho Barros chefe-da-estação
polindo estrelas sobre o guarda-sol
distribui caracóis aos passageiros
ou  desvendando leis no roto clima
sujeita o tempo a seu apito mágico
A máquina parece assombração
quando parte espantando as alimárias
Te-Aviso Gasosa Telefone
Fortaleza Cuscuz Besta Melada
curvos às cargas longe grimpam montes
doando seu trunfo ao infinito
sobre verde que espelho a tarde sangra

III – Cemitério de esperança

a)
Nem mesmo estavas preparada
Estavas como caça fatigada
quando de ti veio se acercando
por entre ramos cedros sapucaias
desavindo rumor
                                Severidades
ensombrecendo leito matutino

Era preciso que o céu baixasse rápido
que tudo se cobrisse de argamassa
e se desse ao ferro cemitério
Tudo era preciso no momento
Era preciso que se abatesse a caça
e se fizesse sombra onde era sol
se apagasse o caminho de alegrias
por onde seguiam os que voltavam

b)
olhos mergulho agudos na folhagem
perfuro frondes de onde saltam rostos
cavados dentes olhos do barranco
aparições enfermas se debruçam
sobre desfiladeiro imaginário
que persigo em desembestada fúria
vozerio que se arma me acompanha
eleva-se como corpo trespassado
veloz dardo que passa e me detém
Maria-Fumaça: tempo dos coronéis


Gritam choram tremem dentes olhos
rostos qual pensa esteira de gemidos
lua despedaçada em mar distante
relâmpagos amargos que me fendem
o coração
                   a boca paralisa

c)
Eu sei
              Tens até mágoa
                                       Quando vens
Espetas teu apito verdejante
no céu na flora de abundante mel
madeira mineral que te rodeia
– e o louro e o fel e a mão oculta
e sobre a roxa amêndoa de cacau
que anuncia o verão
                                    Vens e despejas
tua usina de aromas
                                    teu calor
Eu sei
Tens vontade até de recuar
para o seio absoluto da manhã
e lá polir a crosta de ferrugem
arrancar-se depois do inanimado
chão da morte
                          como ave ou como estrela
súbito em voo raso sobre os campos

E a mim vens com teu peso
                                               teu galope
animal de pelagem coruscante
rolas sobre meu peito
                                       meu semblante
sobre meus olhos hóspedes do vento
a de ontem vida tua enfermidade


Vens como se rompesse a noite em febre
açulando os outeiros acordando
pássaros empalhados nas ramagens
malgrado tudo
                                    Sonho capturado
vens banhada de luz e tempestade
tua massa colora os ambientes
embriaga o instante avança e nos eriça
cadáver hoje que se inventou bandeira
ao roçar de teu sopro
                                    Teu convívio


IV – Expectante reflexão

O trem
               verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
O trem
  ânsias de infância/arrimo de velhice
O trem
   rebanho de acenos/rama flamejante
O trem
   ágil pesadelo/viação da aurora
O trem
   transido soluço/bandeira de sorrisos
O trem
   flauta de vidro/vertebrado canto
O trem
   centopeia de nuvem/potro de esmeralda
O trem
               O trem de Água Preta

Dardo de som lançado ao infinitivo
rajada de luz atravessando o paraíso
me aduba  o coração o sonho acorda

o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.

Trilhos quase rimam com ferrovia, a serviço da humanidade, da arte e da poesia

DADOS DO AUTOR


Natural de Uruçuca, antiga vila de Água Preta, distrito de Ilhéus, no sul do estado da Bahia (Brasil), Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; foi professor da Universidade Federal da Bahia (Faculdade de Comunicação); exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe (“Diário de Notícias” e “A Tarde”, ambos de Salvador). Foi correspondente e chefe de sucursal na Bahia do “Jornal do Brasil” (RJ). Por mais de uma década, exerceu a editoria do caderno semanal “A Tarde Cultural”, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como o melhor do Brasil no quesito de Divulgação Cultural. Desde 1995, é titular da Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia. Entre 1987-89 ocupou a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma antologia, 2012; Estuário dos dias e outros poemas, 2017, Antologia poética e inéditos, 2017 (todos de poesia). Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 1974 (1ª edição, UFBA), 1998 (2ª edição-ALBA), 2018 (3ª edição-ALBA) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, em 2004 (os últimos de ensaio). Participou de antologias de poesia nacionais e internacionais.

Trem de ferro a vapor, atravessando calma e verde pradaria


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