quarta-feira, 8 de maio de 2019

POESIA EM TEMPOS DE TERTÚLIA

Paul Cézanne (1839-1906), "Jogadores de Cartas" (1894-1895)



POESIA SEMPRE!

Além de arte, poesia tem muito a ver com memória urbana e coincidências. Hoje, ao ser publicada no FB foto de um simpático e sorridente casal, surpreendeu-me que a pessoa que fazia par com o companheiro se chamava Edênia, nome que logo me remeteu coincidentemente a um poeta, que foi meu amigo e com quem convivi, por um bom tempo, lá se vão decênios, Jair Gramacho, e ao título de seu primeiro livro, publicado em 1959. "Sonetos de Edênia e de Bizâncio", eivado de evocações às mitologias de Grécia e Roma.
Foi o bastante para me fazer recordar exótica e travessa tertúlia em nos envolvemos, eu e ele, em tarde primaveril, num bar da Rua da Ajuda, recordada no curso de uma palestra, que pronunciei, a convite do saudoso historiador Ubiratan de Araújo Castro, então presidente da Fundação Pedro Calmon, no contexto de um seminário sobre memória urbana (2012), cabendo-me intervir na parte circunscrita ao tema "A Cidade da Boemia", tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.
É justamente parte conclusiva dessa conferência que resolvi transcrever, a título de imodesta divulgação cultural. Segue abaixo.
Ilustração: Paul Cézanne (1839-1906), "Jogadores de Cartas". 
(Postado no Facebook, em 07/05/2019)

POESIA COM BOEMIA E TERTÚLIA 

Florisvaldo Mattos

Houve um tempo nesta Cidade de Salvador da Bahia em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, talvez como em muitos outros lugares, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes, desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.
A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a consequente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes. Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos.
Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras de um conservadorismo e de um academicismo dominantes e renitentes, com a presença e a ação de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro de Carvalho, Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Claudio Tuiuti Tavares, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura e mundanismo, com incursão até na política), ao sopro dos ventos liberalizantes da Constituição de 1946. Era a vibrante interseção no ambiente cultural do movimento que seria conhecido como Geração Caderno da Bahia, de vigência atuante entre 1948 e 1955, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção fora travada por dois decênios, publicando uma revista sob o título justamente de Caderno da Bahia, que durou seis números até 1952.
Seguiu-se a trepidação do que se cognominaria de Geração Mapa, reunindo jovens em sua maioria estudantes universitários. Glauber Rocha futuro cineasta à frente, o novo grupo constituía-se de poetas, ficcionistas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas, participando de reuniões e eventos culturais, entre eles Calasans Neto, Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, a que se agregariam Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro e David Salles, entre outros. Justificado pela integração de propósitos ocorreu então inédito na Bahia de a geração anterior, a de Caderno da Bahia, não travar a ascensão da que surgia, dedicando-lhe acolhida, apoio e apreço, recebendo dos jovens que gravitavam em torno da revista Mapa, cuja circulação chegaria ao terceiro número, correspondentes demonstrações de respeito e reconhecimento.
Foi neste contexto efervescente de novidades introduzidas pela universidade, que alavancavam iniciativas no campo da cultura e do jornalismo, mudanças nos hábitos urbanos e entrelaçamentos de atividades profissionais e universitárias com boemia, em que despontava, com tinturas existencialistas, o aconchegante Bar Anjo Azul, a tornar-se um marco do gênero e emblema, em novo panorama de convivência social, que conheci o poeta Jair Gramacho, ainda inédito em livro, mas já nome destacado de sua geração e reconhecido como competente estudioso da cultura greco-romana. Estabelecidas amizade e convivência frequente, volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária com Jair Gramacho, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro como uma excentricidade de época.
Noite de primavera, dias depois do inovador surgimento do Jornal da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, este tantas vezes presente em cenas de romances de Jorge Amado, cinco amigos estão sentados, dois deles poetas e três tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na poesia e na imprensa, com versos apenas publicados na prestigiosa revista Ângulos, da Faculdade de Direito, e Jair Gramacho, este ainda inédito em livro, mas que disputava píncaros de prestígio com outro nome de Caderno da Bahia, o poeta Wilson Rocha, ambos ícones locais do modernismo. Os três, detentores de cargos na Redação do Jornal da Bahia, eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de Corta Braço, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, que acabara de lançar Além das torres do Kremlin, relatos de viagem a Moscou, e Inácio de Alencar; o primeiro, experiente Chefe de Reportagem do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento (1945-1957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia, enquanto Inácio de Alencar atuava como secretário de Redação do mesmo jornal.
Falava-se de literatura e política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.
Cumprindo o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração.
Em 1960, os dois poemas seriam ainda publicados na revista Ângulos (Nº 16), então com Noênio Spínola, como diretor, e Antônio Guerra Lima (Guerrinha), de redator-chefe; João Ubaldo Ribeiro, diretor de Cultura do CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA
JAIR GRAMACHO
Nesta tarde o terreiro está vazio.
Distante o laranjal se estende; a manga,
A serra, o azul depois; tênue miçanga
De açafrão tinge as fímbrias, o do estio
Único resto. Esta tristeza é mais
Que a da paisagem pobre e adormecente;
Talvez por não ter rosas, não ter gente,
E a solidão vagueie pelos currais.
Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,
O mito abandonado busca o luxo
Antigo de existir; dispõe espectros
Que em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o instante magro
Galinhas ver – irmãs de Meleagro!
A CABRA
FLORISVALDO MATTOS
Talvez um lírio. Máquina de alvura
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
Guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
Sobre lajedo o casco azul polindo,
Dominas suave clima em promontório;
Cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
Laborado em marfim – luz e presença
De reinos pastoris antes servidos –
Teu pelo, residência da ternura,
Onde fulguras, na manhã, suspensa:
Flor animal, sonora arquitetura.


Comentário do ensaísta literário Valdomiro Santana, em 08/05/2019, no Facebook:

Florisvaldo Mattos tem uma acuidade visual tão acesa que a leitura de um poema seu nos passa de imediato a sensação de uma pintura virtual. Não que haja qualquer identificação ou analogia entre os versos, de um lado, e as linhas e cores, de outro, mas uma sutilíssima zona de vizinhança. Daí o diálogo tão instigante que surge. No caso desta sua postagem “Poesia sempre”, o diálogo entre dois sonetos, o seu, “A cabra”, e o de Jair Gramacho, “Soneto oitavo de Atalanta em Calidônia”, em vez de ser um registro nostálgico de uma tertúlia literária e, como tal, se esvaziar em seu signo, faz com que a memória recupere um momento rico da vida cultural da Bahia na segunda metade dos anos 1950. Diálogo que suscita diálogos: com a pintura de Cézanne, o pai da arte moderna, ao reproduzir a quinta versão de “Os jogadores de cartas” (1894-95), e com o cinema, ao suscitar a lembrança de um filme documentário de Henri-Georges Clouzot, “O mistério de Picasso” (1955). Impossível não perceber a íntima ligação entre um dos instantes mágicos do filme, em que Picasso pinta uma cabra, e o referido soneto de Florisvaldo, que, diz ele, é de “cândida inspiração rural”. Soneto que esplende no verso extraordinário do fecho: “Flor animal, sonora arquitetura”. E verso que se transfigura e ressoa na criação pictórica de Picasso. Aqui parafraseio Bachelard, o filósofo da imaginação poética: não é o ser (cabra) que ilustra a relação entre poesia e pintura, mas é essa relação que ilumina o ser.
Picasso, com a cabra de nome Esmeralda, que ofereceu a sua mulher Jaqueline
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