quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

VISÕES DE ÉDEN SÚBITO CONTEMPLADO

POR CAMINHOS DE ONTEM, COMO HOJE
Acordo em domingo de calor sob céu mormacento, após uma tarde e noite de três eventos cordiais e afetivos - almoço anual de confraternização do que resta da turma de formados na UFBA em Direito, deparando-me com a melancólica percepção de que, de 71, apenas 26 respiram, silenciosos ou sorridentes; lançamento de livro de um amigo baiano apaulistado (Roniwalter Jatobá), sob um toldo camarada de cerveja e vinho, na Confraria do França, e, por fim, o aniversário de uma estimadíssima cunhada -, vejo-me relendo um poema que escrevi, faz algum tempo, subitamente impelido por dois versos do simbolista francês Jules Laforgue (1860-1887), que me puseram a meditar sobre como teria sido o mundo (o céu, a terra, as águas), no tempo em que o homem ainda não existia. A vida é também forma de descobrir e inventar caminhos. E, na certeza de que caminhos se fazem ao andar, como garante o espanhol Antonio Machado, me vi subitamente transitando por essa espécie de senda onírica - sozinho no mundo, sem mais ninguém... Vai abaixo o texto, que consta de meu novo livro, cujo lançamento coincidentemente já não mais sonho em tempo de febris sensações natalinas, poema apropriado para ser ouvido ao som de um saxofonista de Jazz-fusion, como o do argentino Gato Barbieri, nesta gravação intitulada "El Sublime", aqui ilustrado com pintura de Paul Cézanne, em mais uma imagem de sua adorada montanha de Sainte Victoire, em sua Aix-en-Provence natal. (Facebook, 04.12.2016)
Paul Cézanne (1839-1906), Mont Sainte Victoire, 1902-1906


VISÕES DE ÉDEN SÚBITO CONTEMPLADO

Tout est vain, - et, là-haut, voyez, la Lune rêve
Aussi froide qu´aux temps où l´Homme n´était pas.*
Jules Laforgue (1860-1887)

Toda existência é ocasional regresso...
Ernâni Rosas (1886-1954)

...Circunvagante, a onda escura avançava
Ubíqua, rumo da terra, tocada de ventos músicos.
“Hino Homérico a Apolo Délio” (Ordep Serra, tradutor)

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.
Robert Frost (1874-1963)


Sonho-me aventureiro de outros sonhos.
De pés firmes, me apalpo e, calmo, sigo.
Abrisse uma cortina, não seria
de escuro firmamento o panorama.
Fontes murmuram, fresca brisa sopra.
Suspira o mar. Eu, soltos olhos ávidos,
vislumbro encostas e sobre elas abro
um caminho ondulante e pedregoso.
No silêncio, nas extensões desertas,
meus olhos tensos captam o que vibra.
Há o sol, o vento, rochas, lagos, rios;
bem perto ou longe, indecifrável fauna,
bosques de árvores densas, impassíveis,
de mãos nunca tocadas nem palpadas;
leito rico adiante de lama e argila,
e o mar, sereno, casto e palrador;
oceano nenhum de lava e ferrugem;
planos só de cascalho e rubra areia.
Assento os olhos em cipós trançados:
nada de Neandertais de ignotas fauces,
pisando crosta de solúvel ferro,
sinais de caça, faina, habitação.
Verdejo-me no sonho. Em rocha sento-me
de cimo que rodeiam ventos brandos;
vestindo-me de ar puro, paz e selva,
o céu, um pálio alto de azul intenso,
por onde o sol navega assiduamente,
gestando madrugadas e crepúsculos,
que um dia dirão de ouro, bronze e sangue,
nuvens reverberando luz constante;
adiante o mar, sonoro e ininterrupto,
saudando orla de areia minudente.
Tempo de não viver, só de existir;
rastro humano nenhum. De cima, a lua,
solene e vigilante quanto fria,
guarda o que passou, passa e passará.
Ninando a noite que parece dormitar,
ela, no alto, ainda paira (primeiro e único
sinal de amor no mundo) e, cá em baixo,
eu, na felicidade de estar só.
Só, na frígida noite que declina,
desvelo o tempo em que o homem não existe.
No céu a lua sonha; embaixo, apenas
obscuros rastros, calma e solidão.
Na certeza que os fados me reservam,
vou para um princípio que não tem fim
e, após ida colecionando assombros,
volto para um fim que não tem princípio.
Comigo o que alfarrábios me negaram:
pedra, metal, madeira, barro ou som,
tudo o que a mim agrada e fantasia.
Por pântanos transito e me pergunto
o que me faz estar nessas paragens,
no instante mesmo em que acorda o mito.
Sei que um dia isto nunca será descrito,
nunca visto será, nunca explicado.
Nunca, se nem mesmo há o pensamento,
o tempo numeroso, calendários,
as sensações, as convenções, os números;
signos, crenças, a exata ciência, os códigos,
vivências, falas, preces e caminhos;
nada que, vindo do homem, será do homem?
Solfeja o mar. No cadenciar das ondas,
versos compõe com sílabas de espuma.
Quero um instante na caverna entrar;
talvez lá pare e me ponha a desenhar,
escrever e narrar, com pau e pedra,
o que agora mais vejo à minha frente
passar, correr, saltar, morder, zumbir,
uivar, berrar, zurrar, bramar, cantar.
Por águas e ares vou, pelas clareiras,
para a sombra que seja, ou para o nada.
O corpo me convida a repousar.
Deito. Levanto e indago em derredor
se haverá sempre essa noite e esse dia.
Miro a rua liberto de vaidades.
Da janela, a manhã me justifica,
imaginando o que pensou Laforgue,
na sua perfeição antropomórfica,
em noite de gelado Carnaval.

SSA/BA, 14/02 (sábado de Carnaval);11/03/2015
Florisvaldo Mattos, Estuário dos dias e outros poemas. Salvador: Caramurê Publicações, 2016, p. 95).

*Tudo é vão, - e, lá no alto, vede, a Lua sonha
Tão fria como no tempo em que o Homem não existia.
(LAFORGUE, trad. nossa)

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