quarta-feira, 3 de junho de 2015

ANO DE ERUPÇÃO DA ARTE MODERNA, 1905 NÃO ACABOU

Arte Moderna: "A Dança", 1910, de Henri Matisse, uma das pinturas mais famosas e representativas do Fauvismo


Florisvaldo Mattos

Se existe um ano que se destaca pelo tanto de incidências que se tornariam um marco na história da arte moderna, este é o de 1905, pois nada menos de quatro episódios nele ocorreram responsáveis por profundas mudanças no universo das artes plásticas, mas não somente nelas. A par da sucessão de descobertas científicas, que se espraiaram pelo último quartel do século XIX, influindo fortemente na sociedade, outra febre irrompe na Europa, a do “espírito novo”, dominando as consciências nas grandes cidades. E havia razões de sobra para tal, bastando assinalar uns poucos pontos.
A apenas dezesseis anos do progresso industrial alcançado na fabricação do aço, que permitiria a quase miraculosa elevação da Torre Eiffel, para transformar doravante a sua estrutura, de símbolo inaugural da Exposição Universal de Paris (1889), em monumento-ícone urbano-paisagístico da França moderna; a somente dez anos da invenção do cinema e da mostra do primeiro filme pelos irmãos Lumière; do desenvolvimento da psicanálise por Freud e da descoberta dos raios X, pelo físico alemão Wilhelm Röentgen (1845-1923), e no mesmo ano da primeira sedição russa, com a revolta do couraçado Potemkim, que será tema de famoso filme de Serguei Eisenstein (1898-1948), para ficar nesses poucos exemplos, Paris mais uma vez fervia, tomada agora pelo entusiasmo mais ou menos ingênuo de um crescente público disposto a acolher como dádiva tudo que recebesse o rótulo de moderno.
Reportando-se a este período, o escritor e poeta francês Georges-Emmanuel Clancier refere-se ao estado de “embriaguez otimista” que predominava no ambiente intelectual e, no caso da poesia, o empenho de Guillaume Apollinaire e seus amigos para instaurá-la no reino do “espírito novo”.


"Mulher com Chapéu", 1905, de Henri Matisse
“A floração de descobertas científicas no final do século anterior e nos primeiros lustres do que se iniciava, tanto quanto o entusiasmo mais ou menos ingênuo, com que um enorme público acolhia esses “milagres” modernos, não se mostram estranhos a esta vontade – paralela àquela dos sábios – as descobertas, as explorações e as experiências de linguagem, os sonhos, o acaso, a extrema consciência ou o contrário subconsciente, de que foram testemunhas os poetas alguns anos antes e depois da guerra de 1914-1918” (Clancier, l955, p. 240; tradução livre) .
  
Assim é que, dentro de tal panorama da civilização ocidental, não restam dúvidas de que 1905 tornou-se um ano ímpar para a criação artística, de que não podiam se ausentar as artes plásticas, especialmente a pintura. E ei-lo então, dando partida à Arte Moderna, com a explosão de dois movimentos da vanguarda estética: o Fauvismo (do francês fauvisme, variação: fovismo), no 3º Salão de Outono, em Paris, com Henri Matisse à frente, e o Expressionismo, em Dresden, lançado por jovens alemães do grupo Die Brüke (A Ponte). No primeiro, soltas as “feras” (fauves), de tão fortes e brilhantes, as cores pareciam rugir, enquanto no segundo a tradição, o racionalismo, o naturalismo e o bom-mocismo do gosto estremeciam sob a carga criativa de revolta da expressão autêntica, fundada na emoção do artista.
Como se não bastasse, há mais dois fatos que conferem galardão de ano especial a 1905. Foi nele justamente que a pintura de Pablo Picasso (1881-1973) passa da fase azul para a consagradora fase rosa, cujos tons predominantes, em lugar dos azuis, tornam o espírito de suas obras menos severos, influenciando inclusive nos seus temas, que passam agora a ser palhaços, acrobatas e dançarinos, com nítida preferência pela figura do Arlequim. O outro fato marcante tem a ver com este momento de revoluções artísticas apenas como um simbolismo.
É justamente no mês de agosto que ocorre a morte de Adolph-William Bouguereau (1825-1905), pintor laureado, papa da arte acadêmica francesa durante decênios, detentor da Legião de Honra da França e por duas vezes ganhador do grande Prêmio Roma de pintura. Desaparecia um feroz inimigo da arte de vanguarda, ao ponto de usar sua grande influência para excluir obras de pintores até em consagrados salões patrocinados pelo poder público, como aconteceu com Paul Cézanne, que não escondia sua mágoa ao ser por ele impedido de participar do “Salon Monsieur Bouguereau”. Por tais atitudes conservadoras e caducas, era condenado pelas novas gerações de artistas, ao ponto de o poeta e pintor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) ter dito, certa feia, que Bouguereau era “um mestre na hierarquia da mediocridade”.
A deusaVênus de W. Bouguereau

Jean-Louis Perrier reproduz o que o Boletim Religioso da Diocese de La Rochelle et Saintes publicou, registrando de forma peculiar e sutilmente irônica os últimos momentos de vida desse famoso artista, na edição de dia 24 de agosto de 1905.

“Ao padre que o assistia em seu leito de morte, no instante mesmo em que ele lhe estendia as mãos trêmulas para receber a extrema unção, disse-lhe: “O que elas tenham feito em favor do mundo e suas vaidades, eu o reprovo”. E o boletim diocesano, reportando suas últimas palavras: “Amém! Amém!”, completa: “Talvez neste momento o grande artista tenha visto inclinar-se sobre ele as doces Madonas que ele em sua glória tão maravilhosamente pintou. Elas vinham lhe anunciar o perdão celeste” (Ferrier, 1988, p. 67; tradução livre).
 Depois de morto, o nome de Bouguereau passou um tempo obscurecido, para ser depois reabilitado, pelo significado histórico para a arte de muitas de suas obras, que passaram a merecer estudos e até alcançar altos preços em leilões. A sua celebérrima tela intitulada La Naissance de Vênus (Nascimento de Vênus), vendida em 1879 ao estado francês por quinze mil francos, tidos na época como uma bela soma, está hoje no Museu de Luxemburgo, em Paris. Porém, a arte acadêmica parece ter se enlanguescido ou morrido com ele, enquanto a arte moderna surgia, florescia e avançava, dominando o século XX e entrando pelo seguinte, em suas múltiplas formas de manifestação.     

FAUVISMO

Na jaula com as feras

É precisamente em 18 de outubro de 1905 que, a apenas dois anos da morte de Paul Gauguin (1848-1903), um dos inspiradores do movimento dos Nabis (“profetas”, em hebraico), e após algum tempo de marasmo e desânimo, o mundo artístico de Paris começa a ferver. Sob a presidência de Auguste Renoir (1841-1919), abria-se o 3º Salão de Outono, no Grand Palais de Champs-Élisées, para encerrar-se em 25 de novembro, contados 38 dias que iriam representar nada menos que a explosão da arte moderna na Europa.
Não era uma exposição qualquer. Junto com retrospectivas de Ingres e Manet, o Salão apresentava em suas várias salas 1.636 obras de artistas vivos, entre eles Paul Cézanne (1838-1906), que saíra de exílio voluntário na sua amada e bucólica Aix-Provence, no sul da França, para ditar novos rumos à arte. No catálogo, Élie Faure (1873-1937) saúda o que chama de “novas energias”, impensáveis até bem poucos anos, e que pareciam dispersas desde o Salão dos Independentes, criado em 1884 por Georges Seurat (1859-1891) e Paul Signac (1863-1935), marco da pintura pontilhista e de uma fase até ali de largo prestígio e influência.
À força do entusiasmo que lhe despertava a novidade, o grande historiador de arte lançava um apelo: “É necessário que se tenha liberdade e vontade de entender uma linguagem absolutamente nova”. Referia-se às obras que ali mostravam os pintores de um novo estilo: Henri Matisse (1869-1954), que doravante se tornaria o consagrado líder do movimento, com duas telas, a peça-emblema Mulher com Chapéu e Marinhas; André Derain (1880-1954), com a alegria e crueza de suas Vistas de Collioure - o mesmo lugar onde, solitário, 34 anos depois, morrerá o grande poeta espanhol Antonio Machado, enxotado pela vitória do general Francisco Franco, na célebre guerra civil que mergulhou a Espanha num regime ditatorial que durará de 36 anos; Maurice de Vlaminck (1876-1958), com os violentos efeitos pictóricos de seu Vale do Sena em Marly, e outros mais, que baseavam sua arte na propagação de cores brilhantes e não-naturalistas, cobrindo vastos espaços.
"Paisagem", tela de Maurice de Vlaminck (1876-1958)

Essa parte fulgurante do salão iria produzir imediatamente escândalo, com reações iradas na imprensa parisiense. “Joga-se um pote de tinta na face do público”, disparou o crítico Camille Mauclair, nas páginas do jornal Le Figaro, enquanto caberia ao conservador, mas prestigiado Louis Vauxcelles emitir, em meio à sua metralha crítica, a frase-chiste, que iria para sempre dar nome ao movimento e consagrá-lo. Ao vislumbrar no meio de uma das salas a escultura em bronze, Torso de Menino, de Albert Marquet (1875-1947), rodeada de quadros pendurados nas paredes, bradou: “C´est Donatello parmi les fauves!” (“Donatello no meio das feras”).
(E aqui, num hipotético parêntese, me permito cogitar se não vem daí o termo “fera”, que no Brasil se consagrou como símbolo de força e coragem, quando João Saldanha, técnico da seleção brasileira de futebol, proclamou em 1969 que queria um time de “onze feras” para ser campeão do mundo, o que realmente aconteceria, no ano seguinte, mas sem ele à frente do esquadrão vitorioso).
Nasce dessa explosão do crítico francês o termo Fauvismo. O vocábulo se repetiria, quando, em artigo no periódico Gil Blas, de grande aceitação, referiu-se ao mesmo quadro Mulher com chapéu, de Matisse, que para o redator reproduzia uma “virgem cristã entregue às feras de um circo”. Mas o conservador Vauxcelles era um troglodita da linguagem que sabia das coisas. Na ocasião, foi também em um universo de circo que ele enquadrara o colorido excêntrico de outro “fauvista” do Salão de Outono, Georges Rouault (1871-1958). Uma associação de ideias lhe forneceu o repente “fauve” - o hoje famoso quadro de Henri (Le Douanier) Rousseau (1844-1910), Leão com fome (1905), cuja figura central, um leão, no meio de selva densa, devora um antílope, sob o olhar expectante de uma pantera.
Realmente, as cores solares dos fauvistas, intensas e vastas, como que expondo um corpo selvagem, esfolado a garras, sangrando, pareciam refletir um estado de fúria explícita como contraponto à suavidade da arte dos impressionistas ou os pequenos toques regulares do colorido puro dos pontilhistas, que, vistos de certa distância, criavam efeitos de cor mais vibrantes que os obtidos pela mistura de tintas. Os fauvistas queriam ultrapassá-los, provocar uma ruptura na passividade do gosto persistente e na admiração que o público ainda devotava a essas duas consagradas correntes da pintura.
"Ecce-Homo", pintura do fauvista Georges Rouault

Não há dúvida de que, ante o que diagnosticavam como um estado de lassitude generalizado em relação à criação artística, os integrantes deste primeiro dos grandes movimentos de vanguarda da arte europeia - vigentes entre a virada do século XIX e a irrupção da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) -, optaram por elevar ao máximo a potência das cores, que deviam se impor por sua força e intensidade, como um advento profético anunciado por trombetas, para detonar a tepidez do ambiente e rebentar paredes a golpes de audácia.
Eram eles todos mesmo “feras”, querendo pôr abaixo a jaula estética em cujas grades se confinavam a criação artística e a chusma retórica de sustentação dos valores estabelecidos. E, por aí, aspiravam embrenhar-se na selva urbana de uma Paris que se apascentara ao longo dos amplos e claros bulevares abertos pelo gênio urbanístico de Haussmann - (Georges-Eugène, barão, 1809-1891, político que, por nomeação de Napoleão III, administrou Paris de 1853 a 1870) -, a essa altura, presunçosamente já instalada no confortável posto de capital mundial das artes, para onde afluía quem quisesse algum dia ter o nome de artista consignado em verbete de enciclopédia. A cidade era o destino preferido de poetas e artistas errantes e apátridas – Rainer Maria Rilke, Picasso, Salvador Dali, Joan Miró, Edvard Munch, Piet Mondrian, Umberto Boccionni e tantos mais de nacionalidades outras –, ou simplesmente de alguém interessado em usufruir das benesses do espaço urbano, transitando por ruas, praças e esquinas, na condição de um perfeito flâneur, o novo personagem que a modernidade introduzira no fluxo das grandes cidades.
Com uma desinibição que literalmente fazia corar o gosto pequeno-burguês, os fauvistas instauram uma nova ordem, a da supremacia da cor, representada pelo arrojo de forma e tinta, cobrindo os espaços de telas, tapetes, paredes e vitrais, pois, se não era arte profunda, pelo menos deflagrava um prazer, com efeito de êxtase visual, na linha do que, entre 1901 e 1906, vinham e iriam suscitando exposições de Van Gogh, Gauguin e Cézanne, seus inspiradores mais próximos, mas também os longínquos - Bruegel, El Greco, Poussin -, por onde seguiria a caudal irreprimível das vanguardas verdadeiras: expressionismo (também em 1905), cubismo (1908), futurismo (1909), suprematismo (1915), dadaísmo (1916), surrealismo (1924), e seus filhotes - vorticismo (Inglaterra, 1913, a partir de um cisma com o futurismo) e ultraísmo (Espanha, 1920, de vigor mais literário e poético, expandindo-se para a América do Sul, até chegar a Bueno Aires, pelo inquieto espírito do jovem Jorge Luis Borges), entre outros, excetuando-se as derivações criativas, rumo ao abstrato.
"O Pescador Napolitano", de Raoul Dufy

Le Corbusier (Charles Édouard Jeanneret, 1887-1965) situa o estado da arte neste momento (início do século XX) como o de recuperação de uma “fantasia” perdida, ou de renúncia a uma obediência às regras da imitação. Por esta ilustre conjetura, pode-se dizer que o fauvismo imprimia a sujeição do tema à plástica pura, buscando por esta forma expressar os efeitos do mundo material, ao acolher e incorporar soluções estéticas transmitidas por um certo número de precursores, estabelecendo-se o predomínio do elemento puramente plástico sobre o descritivo, que será melhor apropriado logo adiante (1908) com maior eficácia pelo cubismo.
Com isso, segundo Le Corbusier, a narração em pintura passa a um segundo plano; às novas experiências e pesquisas se agregam elementos formais e colorísticos absorvidos da arte oriental e negra, com a predominância de sensações visuais puras, que produz um efeito ornamental, contribuindo, pela organização - de cores e formas -, para se tornar arte superior.
Na ótica de Giulio Carlo Argan, a arte europeia se introduz no século XX impregnada de uma forte tendência antiimpressionista que se manifesta através de dois movimentos aflorados em dois centros distintos: um francês, o Fauvismo; outro, propalado pelo grupo alemão Der Brücke (A Ponte). Ambos surgem em 1905, como arte historicamente europeia, com a eliminação de pressupostos nacionalistas e superação do caráter “essencialmente sensorial” do impressionismo.
Impõe-se o fauvismo como uma reação ao decorativismo hedonista do movimento Art Nouveau com uma poética que transforma a pesquisa de cores em pesquisa plástica, na intenção de suprimir o dualismo entre sensação (cor) e construção plástica (forma, volume, espaço). Com isso, segundo Argan, potencializa-se a construtividade intrínseca da cor, como “elemento estrutural da visão”.

“Um elemento comum a Cézanne, Signac e Van Gogh era a decomposição da aparência natural, ou do “motivo”, para pôr em evidência o processo de agregação, a estrutura da imagem pintada: com efeito, eles pintam com pinceladas destacadas, nítidas, dispostas com certa ordem ou ritmo, que dão a ideia de matéria concreta, da cor e construção material da imagem. A pesquisa dos fauves se dirige justamente à natureza dessa ordem e ritmo, que para Cézanne correspondia à ordem intelectual da consciência; para Signac, à lei ótica dos efeitos de luz; para Van Gogh, ao ritmo profundo da existência traduzido em gestos” (Argan, 1992, p. 232).

Vem dos fauves a ideia do quadro como estrutura autônoma, autossuficiente, que durou até recentemente com o advento das artes conceitual e performática. Para eles, é na criação artística, realidade em si, que se efetiva o encontro do homem com o mundo. Segundo Anna-Karola Kraube, os pintores fauvistas – André Derain, Maurice de Vlaminck, Raoul Dufy (1877-1953), Kees van Dong (1877-1968) e Henri Matisse – “seguiam as pisadas dos pintores impressionistas e pós-impressionistas”, sendo deles coerentes continuadores.
"Música", 1910, de Henri Matisse, exemplo de uso da cor liberta do objeto
“Os Pós-impressionistas Gauguin, Van Gogh, Seurat e Cézanne já tinham iniciado esta transformação dos meios artísticos. A sua arte pôde ser apreciada nas grandes exposições retrospectivas, em Paris, na passagem do século, as quais parecem ter sido uma grande fonte de inspiração para os jovens artistas franceses. Nos trabalhos de Matisse, por exemplo, encontramos as grandes superfícies coloridas de Gauguin, a pureza das cores de Seurat, a espontaneidade expressiva de Van Gogh e a composição de Cézanne baseada em relações intrínsecas ao quadro” (Kraube, 2000, p. 85).
A ausência de simbolismo, a cor liberta do objeto, solta no espaço, e a captura da luz graças a uma paleta vigorosa, esplendente e pura dos fauvistas, influenciaram os expressionistas alemães do grupo Der Brücke (A Ponte), que se reuniu em Dresden, no mesmo ano. A partir de 1908, com a publicação de um artigo, à guisa de manifesto estético – “Anotações de um artista. A cor pura” -, Henri Matisse passou a ser considerado em toda a Europa o líder inconteste do movimento fauvista, por ter resolvido alinhar, segundo Kraube, “a sua linguagem pictórica concreta por mentores mais recentes”, como dito acima.

“Matisse também estava convencido de que a cor e as formas possuem um conteúdo expressivo próprio, independente do modelo da natureza. Com sua concepção artística, que dava prioridade às relações interiores do quadro, em detrimento da precisão da representação, Matisse fez parte daqueles artistas que abriram os caminhos da arte moderna” (Kraube, 2000, p. idem).
"Montanhas no Inverno", de Ernst-Ludwig Kircher, do grupo Die Brücke


EXPRESSIONISMO

Nova arte para novo homem


Se o fauvismo não tinha uma ideologia, uma plataforma de ideias projetada para a sociedade, podendo ser tomado como exemplo nítido de arte pela arte, no sentido de prática estética que não tem por objeto senão a si mesma, com resultado positivo, reconheça-se, não se pode dizer o mesmo do movimento expressionista.
Considerando o conjunto de pensamentos que alicerçava as propostas dos quatro jovens alemães reunidos em Dresden, em fins de 1905, tem-se a evidência de que, somente seis décadas depois, no Ocidente, se configuraria um cenário de impulso ideológico equivalente com as mudanças sociais e técnicas que, lastreado no imaginário do consumismo e da indústria cultural, favoreceu o surgimento de novas manifestações artísticas, tais como pop art, arte conceitual, arte pobre, Fluxus, hiper-realismo, transvanguarda, entre outras, na caudal dos movimentos de liberação dos costumes e afirmação de amplos segmentos sociais (juventude, feminismo, grupos étnicos), tomando-se como ponto de partida os anos 1960.
Assim como o século XIX forneceu ao homem a máquina como instrumento impulsionador da modernidade, semeando transformações sociais através da revolução do trabalho e configurando uma realidade nova, invenções técnicas e industriais, incidência de novos conhecimentos nas áreas das ciências naturais e humanas, e muito mais, caldearam a realidade dos inícios do século XX. A realidade diretamente visível tornava-se outra: surge a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955); Sigmund Freud (1856-1939) produz uma reviravolta no mundo da consciência com a psicanálise; o físico alemão Wilhelm Röentgen descobrira os raios X. Não era mais um mundo para o olhar de impressionistas, neoimpressionistas e simbolistas. Os novos artistas do Die Brücke, mesmo que parecessem utópicos ou ingênuos, desejavam olhar o mundo, como diziam, “por trás da aparência das coisas”. Queriam indicar para o homem o que supunham ser um futuro melhor.
“Com a fé no desenvolvimento, numa nova geração de criadores e de consumidores, fazemos um apelo a toda a juventude, e como juventude portadora de futuro, queremos reivindicar a liberdade, viver e lutar contra as forças conservadoras e o poder estabelecido. Todo aquele que representar diretamente e sem falsificações aquilo que o impele a criar, é um de nós”. Eis o que proclamavam aqueles quatro jovens em Dresden – Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), estudante de arquitetura, a trabalhar com gravura em madeira; Erich Heckel (1883-1970), escultor; Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976), que se dedicava à litografia, e Fritz Bleyel (1880-1966), de preferência pintor.
"O Grito", famosa tela expressionista de Edvard Munch 

O termo “ponte” (brücke), que aplicavam ao movimento (escolhido por Schmidt-Rottluff, por sugerir a fé que o grupo tinha da arte no futuro, com eles literalmente fazendo a ponte) pretendia significar a passagem para um processo criativo e a ligação entre verdadeiros criadores, no intuito de caracterizar total recusa a ser uma escola no sentido acadêmico da palavra, embora estivessem, os quatro, ligados a uma escola técnica de nível superior. Almejavam absorver em suas hostes, que só fariam dali por diante crescer, “todos os fatores de revolução e fermentação”, que rompem com o academicismo, o impressionismo e com o Art Nouveau, de Gustav Klimt (1862-1918) e outros. Aos membros fundadores se juntaram depois outros artistas, como Max Pechstein (1881-1955), Otto Muller (1874-1955) e Emil Nolde (nome verdadeiro Emil Hansen, 1867-1956), Edvard Munch (1863-1944), James Ensor (1860-1949), Max Beckmann (1884-1950) e Egon Schiele (1890-1918). A regra do grupo era que cada um passasse adiante o ensino da técnica que melhor dominasse.
Claramente influenciada pelo fauvismo, no que respeita à pintura de quadros a partir de cores e formas puras, porque também ligada aos já citados precursores, próximos (Van Gogh) e distantes (El Greco), a concepção artística do grupo ganharia a designação de expressionismo somente em 1911, por obra de um galerista, Herwarth Walden, promotor da arte de vanguarda. Tanto os fauvistas como os expressionistas praticavam uma arte de expressão, como oposição à impressão. Segundo Argan, na impressão, a realidade - fenômeno exterior – se imprime na consciência, enquanto na expressão ocorre o inverso, o movimento se propaga de dentro para fora, imprimindo-se no objeto. Vocabulário estético deliberadamente simplificado, formas reduzidas ao essencial, corpos distorcidos e espaços diluídos, que, segundo Anna-Carola Kraube, “ignoram as leis da perspectiva” – são as marcas das obras dos expressionistas.

“Cores luminosas, saturadas, aplicadas superficial e independentemente da cor local com auxílio de um pincel grosso, muitas vezes envolvidas por uma linha de contorno, imprimem aos quadros um caráter grosseiro, rude e elementar. Preocupados em causar um efeito intenso, os expressionistas da Brücke empregavam frequentemente contrastes complementares, que permitiam uma acentuação da luminosidade das cores. A sua pintura apaixonada e colorida correspondia ao desejo de conferir à cor uma nova importância não só emocional, mas também com traços de composição, ou seja unicamente relevante sob o ponto de vista estético imanente ao quadro” (Kraube, 2000, pp. 87/88).

A estética do expressionismo adquire desdobramento por volta de 1911, em Munique, com a ação de um grupo liderado pelo russo Vassily Kandinsky (1866-1944) e o alemão Franz Marc (1880-1916), a que se associaram August Macke (1887-1914) e Paul Klee (1879-1940), entre outros, recebendo o nome de Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) - sua chave criativa era a transposição de sentimentos para a tela, de modo que os quadros “fizessem vibrar a alma”, sendo as cores e as formas os elementos decisivos.

“Ao contrário da pintura rude dos artistas do grupo Die Brücke, a arte do grupo Der Blaue Reiter parece mais delicada, sublimada e espiritual. Embora a formulação artística dos dois grupos fosse diferente, ambos estavam unidos pela convicção de que uma obra de arte já não podia representar a realidade de maneira ilusória, porque essa se tinha tornado complexa e mais incompreensível do que nunca. O objetivo era, portanto, ultrapassar o superficial” (Kraube, 2000, p. 90).

O expressionismo foi um vigoroso movimento de arte que começou a perder força logo após o fim da Primeira Grande Guerra, lá por 1920, cedendo à intensidade de fundo psicanalítico do surrealismo de André Breton (1896-1966), que procurou transferir para a criação artística os impulsos do inconsciente, inspirado em Freud. Mas manteve o seu prestígio e influência até os dias de hoje pela mão de muitos adeptos em todo o Ocidente.
Numa visada do panorama das artes plásticas ocidentais dos últimos decênios, não estará, a meu ver, incorrendo em pressa ou imprudência quem vislumbre centelhas e chispas, e até rastros visíveis, seja das harmonias de composição dos fauvistas, ou mesmo suas quebras de comedimento, seja dos impulsos de revolta que emergem de traços dos expressionistas, e mesmo pela conjugação de elementos estéticos de ambos, mais de um século depois, presentes em exposições individuais ou coletivas de obras de artistas de várias nacionalidades. Não há dúvida, nas artes plásticas, o ano de 1905 ainda perdura.


Fontes de consulta:

Anna-Carola Kraube – História da Pintura – Do Renascimento aos nossos dias.  Lisboa: Könemann, 2000.
Dictionnaire Enciclopédique de la Peinture – Paris: Booking International, 1994.
Georges-Emmanuel Clancier – Panorama Critique de Rimbaud au Surréalisme. Paris: Pierre Seghers Éditeur, 1955.
Giulio Carlo Argan – Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Ian Chilvers – Dicionário Oxford de Arte. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Jean-Louis Ferrier – L´Aventure de l´Art au XXème Siècle. (Com a colaboração de Yann Le Pichon). Paris: Chene-Hachette, 1988.
Ozenfant e Jeanneret (Le Corbusier) – Depois do cubismo. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

Volkmar Essers - Matisse - Maestro del color. Tradução: José Lebrero Stals. Alemanha: Benedikt Taschen, 1993.
"Mulher com Bandolim em Amarelo, Verde e Vermelho", expressionismo do pintor alemão Max Beckmann (1884-1950)

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