segunda-feira, 27 de abril de 2015

AUGUSTO DOS ANJOS - O BARULHO DO GUERREIRO RÚTILO

Agonia, pintura a óleo, do expressionista alemão Egon Schiele 


Florisvaldo Mattos

         Se é possível comemorar um barulho literário de 85 anos, este seria precisamente o que teve como protagonista involuntário um poeta, na longínqua manhã de 6 de junho de 1912, cuja "sombra magra" deveria estar se movimentando pelo centro do Rio de Janeiro, melancolicamente engolfada em angústias e ânsias, que eram o diapasão de sua vida, desde que nascera na Paraíba, 28 anos antes. Nesse dia estava saindo do prelo, para desde então agitar mentes de leitores e de críticos pelo restante do século, Eu, o estranho livro do estranho Augusto dos Anjos, cuja figura Órris Soares, seu amigo e primeiro crítico sério, com atordoante precisão, sete anos depois, assim descrevia:
         "Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida - faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demônio torturado. (...) Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula, arqueada. No omoplata, o corpo estreito quebrava-se numa curva para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavam duas rabecas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro."
         Isso é mais que um retrato, algo que parece ter saído da paleta de um adepto do expressionismo alemão, ou talvez de um membro de outra também escola de pintura, em voga alhures, na época em que Augusto dos Anjos escrevia seus mais poderosos e contundentes poemas, sem nenhuma repercussão por aqui, como depois ficaria provado - o cubismo. Pois é justamente com a arte deles, dos expressionistas (Munch, Ensor, Kirchner) e dos cubistas (Derain, Picasso, Braque), que se assemelha esteticamente uma parcela substancial da poesia desse paraibano nascido no Engenho Pau d'Arco, como poderia demonstrar uma pinçagem em nada trabalhosa nos poemas de seu impressionante livro.

          "Do observatório em que eu estou situado
         A lua magra, quando a noite cresce,
         Vista, através do vidro azul, parece
         Um paralelepípedo quebrado”        
         ("Tristezas de um Quarto Minguante")

         Ou:

         “Às vezes, das pirâmides o quedo
         E atro perfil, exposto ao luar, parece
         Uma sombria interjeição de medo!
         ("Uma Noite no Cairo")

                               “Nos terrenos baixos,
         Das laranjeiras eu admiro os cachos
         E a ampla circunferência da laranja.
         ("Gemidos de Arte")

         E mais em outros poemas:

         "A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
          E a câmara odorífera dos sucos.

         "Lançavam pinceladas pretas de óleo
         Na arquitetura arcaica dos sobrados".

         "O amarelecimento do papirus
          E a miséria anatômica da ruga!

         "Araucárias, traçando arcos de ogivas,
          Bracejamentos de álamos selvagens"
        
         "Com a cara hirta tatuada de fuligens"

         "É a dor da força desaproveitada
          - O cantochão dos dínamos profundos
          Que, podendo mover milhões de mundos,
          Jazem ainda na estática do nada!"
        
         O que será isto, dentre outros exemplos, senão modernismo pleno, premonitório, vanguarda? De um só jato, sugerem no mínimo derivações literárias da estética do expressionismo e do cubismo que, entre 1905 e 1914, ano da morte do poeta, esquentavam a atmosfera da arte europeia. A crítica inicial, dividindo-se entre informativa e opinativa, mas preconceituosa, iria preocupar-se basicamente nele com o insólito, o estranho, o chocante, o monstruoso. "O Eu fez barulho logo à chegada", proclamava Oscar Lopes, em O Paiz, três dias depois de lançado o livro. Completados sete dias, 13 de junho, dele falava o baiano Euricles Matos, em A Tribuna, chamando Augusto dos Anjos de "belo poeta" e vendo o Eu como "o acontecimento poético do ano".
         Quatro dias depois, 17, aparecia no Correio da Manhã a crítica de Osório Duque-Estrada, primeira análise em profundidade da obra, que logo de entrada dizia: "Deste original e desequilibradíssimo poeta não fez ainda a crítica um juízo definitivo, imparcial e sincero." Reconhecia-lhe valor como "promessa de um extraordinário poeta, abortada na alma de um filósofo", de "um grande talento transviado pelo cientificismo", mas numa situação que favorecia a presença de "verdadeiras monstruosidades, aleijões abortados de uma fantasia delirante e de uma torturada imaginação que se obstina em parecer única e original".
         Apreciando seus poemas concretamente, o crítico revelava certo espanto, em forma de blague: "À primeira vista, parece que o homem é doido; mas não é". No entanto, ao lado de afirmativas que deviam torturar ainda mais o poeta no seu silêncio, em uma passagem de sua análise, Duque-Estrada quase teve a premonição do que havia de essencial na poética do Eu, a chave de sua permanência dentro da literatura brasileira. Ei-la: "São inúmeros os versos duros e sem ritmos, creio que propositalmente empregados para que as extravagâncias de forma corram paralelas com as teratologias de concepção." Passou perto, mas sem enxergar por inteiro a modernidade de Augusto dos Anjos, tarefa de que se encarregariam muitos de seus pósteros.
         Coube ao pernambucano Álvaro Lins atirar no alvo e acertar na mosca, começando por ver o pouco êxito do Eu, na época do lançamento, como decorrente da sua condição de "corpo estranho aos padrões correntes", que eram ainda os da vigência estética tardia do parnasianismo e do simbolismo no Brasil. Taxativo, afirma Lins, sem titubear: "Ele é, entre todos os nossos poetas mortos, o único realmente moderno, com uma poesia que pode ser compreendida e sentida como a de um contemporâneo", um poeta "iluminado por uma projeção de permanente atualidade, que o lança incessantemente para o futuro, como um ente cada vez mais vivo, com o seu canto apropriado para tocar diretamente a inteligência, o coração e os sentidos de homens de todos os tempos"; enfim, foi "o poeta brasileiro cujo pensamento atingiu maior altura, densidade e consistência".
         Mais tarde, Alfredo Bosi encontraria em Augusto dos Anjos um "poeta poderoso que deve ser mensurado por um critério estético extremamente aberto", cuja "visão cósmica e desespero radical" produzia uma poesia "violenta e nova", própria de um "espectador da agonia", um "poeta do cosmo em dissolução". A modernidade que os críticos passaram a vislumbrar na poética de Augusto dos Anjos provinha basicamente de ele não reverenciar o caráter nobre ostentado pela poesia dos decênios anteriores, nem aspirar a ser compreendido logicamente, valendo-lhe mais o conceito que a percepção, através de uma expressão em que memória e objeto visado se interligam.
         De fato, embora a poesia de Augusto dos Anjos mantenha vínculos com a forma simbolista, na ideia poética transmitida quase nada o vincula ao símbolo, à mística ou ao penumbrismo do momento. Prefere percorrer um caminho povoado de imagens bárbaras para, quebrando o impulso da lógica, que poderia ser um resquício parnasiano, tratar com elementos provenientes da ciência e da filosofia que, à sua época, influenciavam os espíritos cultos e, assim, poder-se-ia dizer, plagiando André Salmon, um teórico do cubismo, melhor representar na totalidade os homens e as coisas. O que nele poderia parecer esquemático, como se supunha, na verdade, provinha de uma inspiração ante o terror do mundo, que logo depois a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) iria comprovar: o espelho da inteligência a deformar os objetos sob um toldo sombrio de tristeza e morbidez. Predomina uma razão estética nova, ao amparo da melancolia e, frequentemente, do tétrico, a revelar signos que, à luz da ciência e da filosofia materialista, traspassam a floresta de conhecimentos antes incutidos na consciência dos possíveis destinatários daquela poesia vista como estranha.
         A poesia de Augusto dos Anjos confundiu os críticos da primeira hora - e até de depois - justamente porque refletia uma atmosfera de mudanças que o poeta, homem culto e ávido leitor, percebera, pela incursão e revelação de novos prismas que a ciência então facilitava. Malgrado as estocadas chocantes de seus versos, em que muitos veriam mau-gosto, o poeta paraibano deixou um bloco homogêneo de poemas com que mergulha na realidade profunda do ser humano, e dele próprio, e era novo o horizonte para o qual sua obra apontava. O futuro não lhe pertencia, mas ficou evidente que lhe fazia cativantes acenos.
         Aberta à argúcia da interpretação dos signos da ciência, parece inegável que a obra de Augusto dos Anjos atua como espelho e sorvedouro de múltiplos domínios do conhecimento humano - na época em pleno descortínio de horizontes -, que se projetavam em seus versos e que neles encontravam abrigo: geologia ("Nos recôncavos úmidos das hulhas"); mineralogia ("Era a dor do minério castigado"); química ("Eu, filho do carbono e do amoníaco"); física ("A alma dos movimentos rotatórios"); astronomia ("Em cujo fundo a Via-Láctea existe"); matemática ("E a morte, é esse danado número um"); geometria ("Batia com o pentágono dos dedos"); antropologia ("Na luta da espingarda contra a flecha"); biologia ("Tinha a abundância de uma artéria rota"); botânica ("Também, das diatomáceas da lagoa"); zoologia ("E eu me encolhia todo como um sapo"); anatomia ("Copiava a polidez de um crânio calvo"); psicologia (" A matilha espantada dos instintos"); geografia ("Foi nessa ilha encantada de Cipango"); história ("Esse achincalhamento do progresso"); economia política ("O homem grande oprimindo o homem pequeno"), e outras tantas ciências presentes em seus poemas - enfim, toda a engrenagem de saberes que informava a fluente modernidade, a densa matéria cultural com que dialogava seu espírito.
         Dirão, mas ele não dispensou a métrica e usava a rima. É fato, mas tudo como meio, jamais como fim, já que não se mostrava escravo de convenções estéticas, sobretudo literárias. O que interessava a Augusto dos Anjos não eram sistemas rítmicos e padrões sonoros, mas tão-somente a operação do pensamento, para distinguir o mundo dos objetos referenciados à sua alma. Expulsava de suas preocupações todo valor anedótico que poderia advir do lavor parnasiano ou das sugestões de penumbra do simbolismo, que seguramente iriam aprisioná-lo nas grades - esse o termo - do academicismo como um mero repetidor de fórmulas. Nele o cérebro predomina sobre a visão e a audição. Era das ideias que lhe vinha o impulso geral da criação poética. Nada na sua poesia é decorativo, nada é moral; por isso iria incomodar certo gosto cultivado o que a muitos parece nele ter de chocante. Na realidade, a poesia desse paraibano recusa o mundo unívoco da evidência, trocando-o pelo da pluralidade de mundos particulares; preferia atuar num universo de culto a uma idiossincrasia e, por isso, o belo em Augusto dos Anjos acaba por ser realmente, como já foi dito, uma questão de gosto. O conceito de gosto liga o belo intimamente à subjetividade humana, como faculdade para distinção entre o belo e o feio, fundamento da opinião crítica em arte e literatura.
         Arrisco-me a um corolário: depois do lançamento do Eu, de Augusto dos Anjos, a poesia brasileira nunca mais seria a mesma; a modernidade de que estava possuída lançou para longe a corrente fria das águas em que ainda se banhavam poetas recalcitrantes, como o cearense José Albano, os dois Fontes (Martins e Hermes), Raul de Leoni, Moacir de Almeida e Amadeu Amaral, e até mesmo alguns dos nossos primeiros grandes modernos: Manuel Bandeira (Cinza das Horas), Jorge de Lima (XIV Alexandrinos) e - quem diria? - Mário de Andrade (Há uma Gota de Sangue em Cada Poema), esses últimos, por sinal, todos de 1917. Augusto dos Anjos, pode-se dizer, foi um navegador que, voltado embora incipientemente para o dinamismo universal, abandonara a superfície em busca de outras temperaturas. Não imitou ninguém e quem o quis imitar se perdeu. Depois dele iria para sempre fender-se o muro da poesia de efeitos decorativos, eivada de amores cândidos e elementos morais e cívicos. Ele falava direto à consciência poética e até com ela esgrimia.
         Sou tentado, mais uma vez, à inferência. A história da dicção poética brasileira seria outra se Augusto dos Anjos, ao invés dos artifícios da métrica e da rima, que reduzia a técnica de seus praticantes a um ofício bate-bate - por ele recusado, diga-se (Órris Soares) - tivesse adotado o verso-livre, que 10 anos depois seria a haste em que tremulava a bandeira revolucionária dos modernistas e que já aparecera, adotado pela primeira vez no Brasil, no mesmo ano de aparição do Eu, 1912, introduzido pelo simbolista Mário Pederneiras que lançava seu livro Ao léu do Sonho e à mercê da Vida. Os modernistas adotaram o verso-librismo, com que declararam guerra sem tréguas ao soneto, à métrica e à rima, a tudo enfim que era fixo, mas, como ficaria patente, falharam nas opções estéticas, preferindo ao expressionismo e ao cubismo as peraltices do futurismo de F.T. Marinetti, que recomendava ao artista "voltasse suas costas ao passado e aos procedimentos convencionais para preocupar-se tão-somente com a vida agitada e barulhenta da florescente cidade industrial" (Joshua C. Taylor).
         Explica-se a atitude dos modernistas que viriam logo a seguir, não se detendo sobre Augusto dos Anjos, sua arte e seu pensamento, pela empolgação que despertara o espírito beligerante e iconoclasta do manifesto de Marinetti, sensibilizando de logo a imaginação de escritores e artistas em toda a Europa e, dali, imediatamente, no mundo inteiro. O rumo proposto era menos fecundo, mas entusiasmava, embora o caráter titubeante do movimento de Marinetti se manifestasse logo ao findar-se a Grande Guerra (1914-1918), quando os futuristas passaram a desentender-se quanto a práticas e princípios, não faltando entre eles quem execrasse o próprio Marinetti por ter colocado a vigorosa e agressiva tática de propaganda do movimento original a serviço do fascismo nascente, sob a liderança de Benito Mussolini, que dela se apropriou como suporte filosófico e estético à sua empreitada política, causa talvez da rápida perda da influência mundial do movimento.
         Cabe aqui um parêntese na comichão de uma pergunta: por que os modernistas brasileiros se tornaram seguidores do futurismo? Deduzo: por uma questão apenas de similitude e aproximação. Como movimento cultural e estilo artístico, o futurismo surgiu numa das nações industriais ao seu tempo menos avançadas da Europa moderna, a Itália, de onde provinham, além de Marinetti, artistas do quilate de Carrá, Russolo, Balla, Boccioni e Severini e, por isso, de desenho socioeconômico mais fronteiriço das aspirações da emergente elite intelectual brasileira, notadamente a paulista de 1922, ano da Semana de Arte Moderna.
         A industrialização italiana, no início do século, estava muito aquém da que então usufruíam franceses, ingleses e alemães, embora os futuristas com seu propósito específico de exaltar a máquina, como observa Vytautas Kavolis, e de impor à natureza "o molde dinâmico da mobilidade mecânica", se mostrassem mais harmonizados com o espírito do industrialismo que outros movimentos de vanguarda. Parece ter sido esta a razão acalentadora dos nossos modernistas, que sonhavam com uma desvairada paulicéia tão industrializada quanto as cidades italianas que lhe serviam de espelho, estimulados que estavam também por outro fator: a presença crescente da imigração italiana em São Paulo, que iria favorecer uma articulação econômica conformadora entre agricultura e industrialização, envoltas ambas por um componente modernizador. Não custa lembrar o que estava acontecendo na Europa, desde o início do século, em matéria de expansão demográfica: a migração europeia se torna a mais importante do mundo, contribuindo para consolidar e desenvolver as economias e as sociedades de além-mar, entre estas incluindo-se as da Argentina e Brasil, o que se expressa em números formidáveis: por volta de 1913, nada menos de 400.000 somente italianos tinham cruzado o oceano com destino a esses dois países e aos Estados Unidos, afugentados de suas terras pela miséria, conforme dados históricos.
         Deu no que deu, entre nós: para um país de incipiência industrial e ainda agrário, como o Brasil dos anos 20, teriam feito muito melhor se aspirassem e sonhassem mais alto, esteticamente, seguindo em outra direção - a das oficinas em que se forjava e de onde se projetaria a grande arte do século, que era justamente o que propalavam e por que propugnavam os expressionistas e os cubistas, embora vivessem estes em sociedades industrialmente mais avançadas. Aqui, preferiu-se o anedótico, de mistura com um certo nacionalismo (que abriria portas ao fascismo tupiniquim, é bom lembrar), justamente o que Augusto, anos antes, já abominava. É o que provariam os anos por vir.
         Em Augusto dos Anjos, observa-se que a andadura de sua poética atrelava-se a um arcabouço histórico do qual irrompia a modernidade com o tecido de um fenômeno global, não restrito apenas a um país, ou mesmo a um continente, a Europa, mas um fenômeno assim de abrangência planetária, a cuja influência ninguém, de nenhum lugar, deveria estar imune. A aspereza intrínseca de sua dicção poética configurava o que se poderia chamar, com Lionel Trilling, uma "linha de hostilidade" contra o que considerava velho, um desencanto para com modelos estéticos, anteriores, mas ainda renitentes, atraído por uma ideia associada à consciência da desordem, de um sentimento de desespero, uma ebulição de energias íntimas que se ligava a um ponto de inflexão moderna, que inesperadamente logo iria deixar tudo para trás.
         Era como se nele, pelo teor da obra, aflorassem nos trópicos, já em processo de amadurecimento, ideias de rompimento com um statu quo ante que, sustentadas e desenvolvidas na Europa dos anos 1890, inauguravam o novo século, despertando grande fascínio por uma nova consciência - estética, psicológica e histórica -, a denunciar aquela propulsão dos tempos modernos que, no dizer de Bladbury e McFarlane, "trazem consigo novas esperanças e votos de progresso e novas forças, psíquicas e sociais, subjacentes", já detectadas anteriormente na filosofia de Nietzsche, no teatro de Ibsen e Strindberg, na pintura de Gauguin e Cézanne, no vigor de uma transição moderna que leva a uma vertiginosa associação entre mente e emoção e, sob um signo de fragmentação e descontinuidade, a um próximo agrupamento de forças, revigorante e continuador. Puro modernismo.
         Indignado com o pouco caso que os paraibanos faziam de Augusto dos Anjos, depois de uma visita à Paraíba, aonde fora levado pela mão de José Lins do Rego (erguiam estátuas a políticos conservadores, enquanto davam o nome do poeta a um mísero beco), ainda jovem, Gilberto Freyre resolveu escrever, depois de ler o Eu que o amigo emprestara, um artigo em inglês que publicaria numa revista norte-americana, dando uma nova interpretação à sua poesia original, encoberta por um caso (agudo, diria depois Zé Lins) de desajustamento de personalidade. Dessa leitura Freyre sairia convicto de que, ao contrário da maior parte dos poetas latino-americanos, Augusto dos Anjos "não tinha a obsessão das palavras suaves nem das vogais sempre doces", porque dava a seus poemas "um audacioso sabor mais para os olhos que para os ouvidos", comparando-o aos artistas do expressionismo alemão, e indo além: "Havia em Augusto dos Anjos alguma coisa de um moderno pintor alemão expressionista; um gosto mais de decomposição que de composição".
         Ao que parece intencionalmente, Gilberto Freyre tocava num ponto fundamental, ligando a poesia de Augusto dos Anjos ao expressionismo que, dominante na Alemanha a partir de 1905, pregava na arte o abandono das ideias tradicionais em favor de distorções ou exageros de forma e cor para expressar, em estado de premência, a emoção do artista, do qual na época eram os maiores representantes nada menos que Edvard Munch, James Ensor e Kirchner, inspirados no precursor Van Gogh, que optara pelas distorções de formas naturais, para expressar "as terríveis paixões do homem".
         Embora duvidando de que deles tenha tomado conhecimento, o crítico Anatol Rosenfeld compara Augusto dos Anjos, pelo lado sadomasoquista, não sem razão, a Georg Trakl, Georg Heym e, sobretudo, a Gottfried Benn (nascido dois anos depois dele, 1886), poetas representativos do expressionismo alemão, quando introduz a palavra "de dura e firme consistência", oriunda da ciência e da filosofia, "no corpo mofado da língua poética tradicional", gerando com isso uma "terminologia exotérica", exata como as fórmulas matemáticas, mas que, embora alusiva a uma semântica bárbara, produz ao mesmo tempo um "efeito encantatório", revelando um poeta ansioso por libertar-se da prisão da língua e expressionalmente da prisão da linguagem poética vigente.
         E mesmo observando "diferenças profundas, de forma e substância", dos três alemães entre si e deles para com o brasileiro, Rosenfeld no entanto vislumbra "coincidências notáveis", particularmente entre Augusto dos Anjos e Benn, referindo-se ao que em ambos os casos se poderia chamar de "uma poesia de necrotério". Depois de um paralelo, alinhando expressões e versos de um e outro, diz o crítico: "Essa poesia sadomasoquista lança o desafio do radicalmente feio à face do pacato burguês, desmascarando, pela deformação hedionda, a superfície harmônica e açucarada de um mundo intimamente podre. Não só o ser humano, também a palavra e a metáfora tradicionais desintegram-se ante o impacto dessa poesia" - pela presença de um núcleo "irradiador de tensões", que torna o mundo de Augusto dos Anjos, "na essência, proparoxítono, esdrúxulo, dissonante".
         A essa perspectiva não ficaria imune um outro analista da obra de Augusto dos Anjos, o crítico Agripino Grieco; para ele, tratava-se de um poeta amante das "paisagens em desalinho" e das dissonâncias, observando-lhe, ao compará-lo com o português Cesário Verde, seu mais próximo par na língua, "certa volúpia de escandalizar o burguês", em que persistia "um prazer aristocrático de contrariar os escrúpulos do próximo".
         É verdade que um forte traço expressionista se manifesta na poesia de Augusto dos Anjos, mas não pode ser alijada, a meu ver, a presença concomitante da vertente cubista, já que nela a beleza se expressava em termos de volume, de linha, de massa, de peso, como esclarecia Georges Braque, numa declaração (1908-1909), em que indicava a forma pela qual buscava melhor interpretar a sua "impressão subjetiva", e - por que não? - também em termos de energia, de dínamos elétricos, de Raio X, de átomos, de rutilâncias, de microscópios, de caos, de Cosmo novo, enfim, de geometria e física, para apreender o objeto nas suas várias faces - ou, para se ver, no Eu, em um de seus versos emblemáticos, um sobrevivente "dentro da filogênese moderna", onde residia claramente sua subjetividade.
         Em um sem-número de versos de Augusto dos Anjos pode ser realmente deduzida toda uma geometria que, ao tempo da escritura dos poemas do Eu ultrapassa em suas especulações as três dimensões da geometria euclidiana, voltada mais para os signos de uma realidade concebida, referenciada mais à mente que à instância dos sentidos, emparelhando-se com as cogitações e preocupações, que, como registrou Apollinaire (a propósito de Picasso), "na linguagem dos ateliês modernos, eram designados pelo termo quarta dimensão.
         "Um Picasso estuda um objeto como um cirurgião disseca um cadáver", observava o francês, fixando situação provavelmente igual à que Augusto dos Anjos deveria conceber na sua forma peculiar de interpretar as impressões de sua inteligência criativa, o que pode perfeitamente sugerir que o paraibano, cá nos trópicos, por intuição, fora atacado pelas mesmas preocupações dos cubistas no início de seu movimento.
         Se atentarmos para uma observação de André Salmon relativamente à arte de Jean Metzinger e Robert Delaunay, dois a quem se atribuem as primeiras formulações do cubismo (1908), ao dizer que pintavam paisagens "povoadas de casinhas reduzidas à estrita aparência de paralelepípedos", não estaremos longe de algumas construções de Augusto dos Anjos, como a aqui já citada, referente à sua visão da lua em quarto-minguante, em que a ideia poética recompõe o objeto contemplado na forma de "um paralelepípedo quebrado", à distorção da imagem por um vidro.
         A semelhança se dá porque, na realidade, era o infinito que o poeta tomava como dimensão de seu ideal artístico; é o que exprimiam suas aspirações e inquietudes, recobrindo de um clamor sombrio suas meditações sobre os produtos da ciência contemporânea, em sua forma singular - sempre mais cerebral que sensual - de alcançar o sublime. Como poeta, seu tempo era interior, a realidade só lhe interessava mediada pelo conhecimento, atribuindo uma função social à renovação que se pudesse imprimir às aparências.
         "Os poetas e os artistas determinam as características de sua época e o futuro se desdobra docilmente aos seus desejos", sentenciava Apollinaire, no momento mesmo em que Augusto dos Anjos criava uma poesia cujos traços essenciais só poderiam ser decodificados, e mesmo interpretados, por pessoas de uma época posterior, pensando já além de seu tempo, como efetivamente aconteceu.
         O modernismo de Augusto dos Anjos não passaria desapercebido a outro crítico e também poeta, o maranhense Ferreira Gullar, que, depois de reconhecer-lhe uma linguagem poética, cuja impostação original o faz superar influências anteriores e o livra do formalismo e do elemento puramente ornamental, como era da dicção poética, à sua época, desvenda-lhe "traços que caracterizam a nova poesia, a que se convencionou chamar de poesia moderna", e atesta que, por seus poemas, passa não a doirada plumagem que vestia a poesia anterior, mas "a experiência concreta da vida", mediada por uma nova linguagem.
         As impurezas que incomodavam as mentes e os ouvidos dos contemporâneos do poeta, e até posteriormente, seja dito, eram as mesmas que, na poesia como em qualquer arte, estampavam a face mutante do moderno. Em Augusto dos Anjos, segundo Gullar, "manifesta-se a consciência - que é moderna - do caráter contingente, histórico, situado, da existência". E um aspecto que a muitos pareceu negativo no paraibano, a vizinhança expressional em alguns momentos com a prosa, tida como impureza, era justamente outro traço que o impulsionava para o moderno, o da descontração formal, tão cara aos futuros modernistas, porque não pode haver poesia constituída somente de elementos poéticos, seria o seu fim, já dizia Eliot (citado por Gullar). A conservação de "alguma impureza" é da própria essência da poesia moderna, já que grande parcela do mundo da modernidade se compõe de impurezas.
         Ao contrário do que a muitos poderia parecer, por trás da carapaça que lhe vestia a pobreza e a melancolia, Augusto dos Anjos possuía uma inteligência de antenas ligadas no seu tempo. Era um guerreiro de "espadas rútilas", como disse num de seus mais perfeitos sonetos ("Vencedor"), portador de uma cultura variada e vasta para sua idade (morreu com 30 anos incompletos). Para comprová-lo basta listar ao léu, à guisa de ilustração, os nomes citados, direta ou indiretamente, em muitos de seus poemas, que revelam a qualidade de suas leituras e de seu gosto. Deem-se exemplos. Pintores que apreciava: Leonardo da Vinci e Rembrandt (chega num poema, "Queixas Noturnas", referindo-se a um "quadro de aflições" e, lógico, à pintura acadêmica brasileira, a dizer textualmente que "o próprio Pedro Américo não pinta.../Para pintá-lo, era preciso tinta/Feita de todos os tormentos do homem"; não é preciso mais...); filósofos e cientistas, dispensando o execrado Haeckel das moneras: Anaximandro, Giordano Bruno, Schopenhauer, Herbert Spencer, Darwin, o xará Augusto Comte, Nietzsche (este, segundo o crítico baiano Eduardo Portela); na música: Richard Wagner; poetas e escritores: Ésquilo, Propércio, Shakespeare, Goethe, os irmãos Goncourt, além de livros seminais, como a Bíblia, o Rig-Veda, e as mitologias grega, egípcia, germânica e oriental - somente o que está citado em poemas, o que faz supor que seu horizonte tendia a ampliar-se muito.
         A 85 anos do lançamento do Eu, se Augusto dos Anjos permanece um expoente solitário, ainda de árdua decifração dentro da poesia brasileira, desafiando os exegetas, ele se tornou uma figura inevitável; não há como a ele ser indiferente, ante a sucessividade das edições de sua forte poesia: chegam a quase meia centena, um dado impressionante para o gênero. Além do mais, já de algum tempo, não se tem furtado a obra do poeta ao diálogo com outras linguagens artísticas modernas, sabendo-se que foi à poesia do paraibano que Glauber Rocha recorreu, no momento de fixar com signos dramáticos o título completo de seu filme Di, que narra o enterro de Emiliano Di Cavalcanti, no Rio de Janeiro, em 1976 (por sinal, de exibição até hoje interditada pela família do pintor). Deu-lhe como aposto nada menos que a primeira estrofe de um famosíssimo soneto dele - "Versos Íntimos": "Vês?! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de tua última quimera. / Somente a ingratidão - esta pantera -/Foi tua companheira inseparável.”
         O gesto escritural do instigante cineasta baiano insinua que a obra de Augusto dos Anjos, por não se conter nos estreitos limites de sua temporalidade, começa a estabelecer contato com outras formas modernas de conhecimento, o que sugere possibilidades de contato com outras linguagens artísticas, como a música, a dança, a pintura, a escultura, o teatro, a confirmar que a arte de Augusto dos Anjos, por seus elementos intrínsecos e extrínsecos, arrebenta com as cronologias, dialogando tanto com o passado (o longínquo e o próximo), como com o presente e com o futuro - uma poesia que se mantém como arte viva, devoradora de perspectivas históricas.
         E para comprová-lo, a imagem do paraibano vem de projetar-se hígida no terreno da ficção literária com o romance de Ana Miranda, A última quimera (1995), título oriundo de um verso do mesmo soneto que inspirou Glauber Rocha, no qual nos últimos capítulos duas surpresas se reservam ao personagem-narrador. No primeiro episódio, o Jornal do Commércio do Rio de Janeiro anuncia sucessivas tiragens a se esgotarem da reedição do Eu, chegando a vender em pouco tempo (supõe-se em 1920) cinquenta mil exemplares. “Torna-se o mais espantoso sucesso de livraria dos últimos tempos! Impossível não admirar certas composições! Um talento superior! A obra de um ourives louco!” - são exclamações do narrador, ao presenciar que “gente de diversas classes corre aos balcões para tentar compreender a poesia insondável de Augusto.” Ele havia vencido, embora tarde. No outro, no capítulo final, é a presença de uma jovem de “rosto pálido”, fazendo supor alguém dotado de uma intensa e sofrida vida espiritual”, que o aborda de madrugada numa farmácia, instigando-o a falar “alguns minutos sobre Augusto”, mas ele tem pressa e segue para casa, “como se fugisse”.


Referências

Ana Miranda - A última quimera (romance). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Ferreira Gullar -"Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina", in Toda a Poesia de Augusto dos Anjos. RJ: Paz e Terra, 1976.
Eudes Barros - A Poesia de Augusto dos Anjos - Uma Análise de Psicologia e Estilo, Rio de Janeiro: editora Ouvidor, 1974.
José Paulo Paes- “Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas”. Introdução a Os melhores poemas de Augusto dos Anjos. São Paulo: Global Editora, 1994.
Gilberto Freyre -"Nota sobre Augusto dos Anjos", in Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
H. B. Chipp -Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, principalmente os seguintes textos: "História Anedótica do Cubismo", 1912, de André Salmon; "Cubismo", de Albert Gleizes e Jean Metzinger; "Começos do Cubismo" e "Os Pintores Cubistas", de Guillaume Apollinaire e "O Futurismo, introdução", de Joshua C Taylor. Vários tradutores.
Juca Pontes (editor) - Augusto dos Anjos - Obra, Discussão e Crítica num Centenário. João Pessoa (PB), 1984.
Malcolm Bradbury e James McFarlane- "O nome e a natureza do modernismo", in Modernismo - Guia Geral. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Maurice Crouzet - História Geral das Civilizações, Volume 15 - A Época Contemporânea. Tradução: J. Guinsburg e Vítor Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
Orris Soares - Elogio de Augusto dos Anjos. Introdução à segunda edição do Eu (1920), reproduzida nas seguintes, inclusive na citada de 1983. Em 1996, a editora Nova Aguilar (RJ) publicou a Obra Completa de Augusto dos Anjos, em capa dura e papel-bíblia, org. pelo poeta Alexei Bueno.
Vytautas Kavolis -"Expresionismo abstracto e puritanismo", in La expresión artística: un estudio sociológico. Tradução: Aníbal C. Leal. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1970.

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Versão ligeiramente ampliada de ensaio publicado em A TARDE Cultural de 07/06/97 pelos 85 anos da primeira edição do Eu, de Augusto dos Anjos, no Rio de Janeiro.

         



     Resenha sobre EU, de Augusto dos Anjos, publicada em 1912 


           AUGUSTO LIGHT

            Antologia



         O conjunto de poesias de Augusto dos Anjos que se lerá adiante representa uma seleção inteiramente arbitrária, reunindo criações suas constantes de Eu e outras poesias que, mantendo seu alto nível de imaginação, construção poética e força expressionista e, assim, confirmando e concentrando qualidade, apresentam uma elocução e um desenho estético distantes dos poemas construídos sob o signo do tétrico e do aziago, com que o poeta paraibano ficou mais conhecido e, até por causa disso, fosse geralmente mal interpretado e caricaturado.    (F. M.)


         AGONIA  DE  UM  FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de polo a polo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das ideias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal! 

 
                   O MORCEGO

Meia-Noite. Ao meu quarto me recolho
Meu Deus! E este morcego! E, agora vede;
Na bruta ardência da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
-Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!


                   A IDEIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebre a força centrípeta que a amarra
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!


         DEBAIXO  DO  TAMARINDO

No tempo de meu pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

                  
         A UM  CARNEIRO  MORTO

Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o marcador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!

Oh! tu que no perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!


         RICORDANZA DELLA  MIA  GIOVENTÚ

A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruina!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidade de menina:
“- Não, não fora ela! - “E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!


         GEMIDOS  DE  ARTE  II

O sol agora, de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!

Reúnam-se em rebelião ardente e acesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto...Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.

Ladra furiosa a tribo dos podengos
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.

Ou pássaro alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.

Em grandes semicírculos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pelos,
Voam à semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.

A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleia a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num estravasamento involuntário.

Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!


         VERSOS  DE AMOR

                                               A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que não o aprova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluída,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável!
Como anda a garça acima dos açudes!


Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias - o inventor da flauta -
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu pobre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!


                   SONETOS

                            I
                                      A meu pai doente  

Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

-Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

                            II
                           
                                      A meu pai morto

Madrugada de Treze de Janeiro,
Rezo, sonhando, o oficio da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu


                   VANDALISMO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


                   VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E, à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!


         A  ILHA  DE  CIPANGO

Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
e por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!






A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo...Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito...

Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Para, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!

Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
À cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.

Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dois realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!


         QUEIXAS  NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais.
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A benção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! estende-me a tu’asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!


         A ÁRVORE  DA  SERRA

-As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?
Deus pôs almas nos cedros...no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha’alma!

-Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

TRISTEZAS  DE  UM  QUARTO  MINGUANTE

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos de várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro...
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! Não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fonte com vinagre.

Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isso é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6a feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!

- Uma, duas, três, quatro...E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias; - Uma...
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucede-me a uma tontura outra tontura
-Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida - aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse...
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram...
- ”Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
e os formigueiros já nos desprezaram”.

Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.

Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos - vis raízes adventícias -
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete,
Súbito me ergo. A lua é morta, Um frio.
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários répteis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No humos feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
a ouvir, nestes bucólicos retiros
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!


                   O LAMENTO  DAS  COISAS

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, os do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

É a dor da força desaproveitada
-O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!


         O  MEU  NIRVANA

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhaureana,
Onde a Vida do homem aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato - ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias -

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias.


         NATUREZA  ÍNTIMA

                                      Ao filósofo Farias Brito

Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A natureza olhou-se interiormente!

Baldada introspecção! Noumenalmente
O que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!

E a Natureza disse com desgosto:
“Terei somente, porventura, rosto?!
“Serei apenas mera crusta espessa?!

“Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
“Quando mais em mim mesma me aprofundo
“Menos interiormente me conheça?!”


                   A FLORESTA

Em vão com o mundo da floresta privas...
- Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieroglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!

Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!

Há uma força vencida nesse mundo!
Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce...

Vivem só, nele, os elementos broncos,
- As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!


         NUMA  FORJA

De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio dia,
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica violência de um braseiro.
         Dentro a cuspir escórias
         De fúlgida limalha
Dardejando centelhas transitórias,
No horror da metalúrgica batalha
         O ferro chiava e ria!

         Ria, num sardonismo doloroso
         De ingênita amargura,
         Da qual, bruta, provinha
Como de um negro cáspio de água impura
         A multissecular desesperança
         De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha!

Ria com essa metálica tristeza
         De ser na Natureza
Onde a Matéria avança
         E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
         Da integração completa.
Uma consciência eternamente obscura!

O ferro continuava a chiar e a rir.
         E eu nervoso, irritado,
         Quase com febre, a ouvir
         Cada átomo de ferro
         Contra a incude esmagado
         Sofrer, berrar, tinir.

Compreendia por fim aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!

Era um cosmos inteiro sofredor,
         Cujo negror profundo
         Astro nenhum exorna
         Gritando a bigorna
Asperamente a sua própria dor!
         Era, erguido do pó,
         Inopinadamente
         Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
         A ansiedade de um mundo
         Doente de ser inerte,
         Cansado de estar só!

         Era a revelação
         De tudo que ainda dorme
No metal bruto ou na geléia informe
No parto primitivo da Criação!
         Era o ruído-clarão,
         - O ígneo jato vulcânico
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
         De minha cavernosa subconsciência,
         Punha em clarividência
Intramoleculares sóis acesos
Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico
         Escravos da Coesão!

Repuxavam-me a boca hórridos trismos
         E eu sentia, afinal,
         Essa angústia alarmante
Própria de alienação raciocinante,
         Cheia de ânsias e medos
         Com crispações nos dedos
         Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo esse cosmos potencial,
Preso aos mineralógicos abismos
         Angustiado e arquejante
A debater-se na estreiteza bronca
         De um bloco de metal!

         Como que a forja tétrica
         Num estridor de estrago
Executava, em lúgubre crescendo
         A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
         De seu destino horrendo!

Ao clangor de tais carnes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
         Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez de que a onda atlântica
         Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!


         MINHA  ÁRVORE

Olha: É um triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva tem dor...Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos a face degradada!

Entre os pedrouços maus dessa morada
É que, às apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar as gerações futuras
Só, minha árvore humana desfolhada!

Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão, que, rábido, remoinha...

Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Hão de encher outras árvores! Somente
Minha desgraça há de ficar sozinha!


         APOCALÍPSE

Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.

É a subversão universal que ameaça
A natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!

São despedaçadamente, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,

Espião da cataclísmica surpresa,
a única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!
      

         A  NOITE


A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.

A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.

À custódia do anímico registro
A planetária escuridão de anexa...
Somente iguais a espiões que acordam cedo,

Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva onímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!


         O ÚLTIMO  NÚMERO

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Ideia estertorava-se...No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.

Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo fúnebre do Incriado:

Bradei: - Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!

Pois que a minha antogênica grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!”


         ETERNA  MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à mágoa, a que só ele assiste
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!


         PLENILÚNIO

Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe serve de alvíssimo sudário
Respira essências raras, toda a cálida
Mística essência desse alampadário.

E a lua é como um pálido sacrário
Onde as almas das virgens em crisálida
De seios alvos e de fronte pálida,
Derrubam a urna dum perfume vário.

Voga a lua na etérea imensidade!
Ela, a eterna noctâmbula do Amor,
Eu, noctâmbulo da Dor e da Saudade.

Ah! Como a branca e merencória lua,
Também envolta num sudário - a Dor,
Minh’alma triste pelos céus flutua!

(A TARDE CULTURAL, 1997)

   
Casa do poeta do EU, na antiga Rua Direita, em João Pessoa/PB

   

Carta a Hildeberto Barbosa Filho

MILTON MARQUES JÚNIOR

Professor e escritor



A casa de Augusto

Hildeberto Barbosa Filho
Por que procurar a casa de Augusto? Estaria essa casa no Beco do Carmo, na Rua Direita, no Beco Malagrida? Onde, quando, por que a casa de Augusto? O Pau d’Arco, Recife, a terra pobre de Cruz do Espírito Santo? Prefiro pensar que a casa de Augusto nunca existiu. (Ah! O abstrato das saudades!).
Nunca existiu a casa de Augusto. Nem na capital, nem no Rio, nem em Leopoldina. Augusto não carece de casa. Os poetas não têm casa. Inútil procurar a casa de Augusto. Os poetas residem no ar rarefeito da biosfera. São sombras magras com pele de rinoceronte. Tivesse casa, Augusto, seria a Ponte Buarque de Macedo, o negro peito da ama Guilhermina, a lâmina minuciosa de uma metáfora apocalíptica. Casa por casa, por que não pensar nas volúpias da Ilha de Cipango, na solidão das lagartixas espiando as coisas mortas, no chocalho fatídico dos ossos, no verme que rói e arruína, nas viagens da monera, na cicatriz do quarto minguante, na poesia de tudo quanto é morto? Quem sabe, a casa de Augusto não transcende a vila de Sapé, a usina triste, o tamarindo, o corrupião sem sorte? Sua casa, se casa existe, se foi com as águas do rio Paraíba, vista das margens como um palácio paradoxal. Casa sem nenhuma arquitetura, maquete desarticulada, casa de sombras e de assombros. Casa cujo endereço se perde nos carvalhos da poesia. Casa fechada e obscura onde os fantasmas bebem o vinho dos versos mais perfeitos. Onde a dor reina, soberba e absurda, diante do nada. Onde a arte arde e explode seus signos malditos como a única forma de existir. A casa de Augusto está localizada na avenida de seus sonetos. Seu número é o mesmo da aritmética da morte. Casa inatingível, sem destinatário. Não importa a cana do engenho, não importa se Jesus viveu na Serra da Borborema. Não importa o milagre do finado Toca. Não importa o gemido da árvore na serra, o positivismo, o ébrio, o coveiro, a sibarita. A casa de Augusto é a casa do seu pai. Do pai. Por que não procurá-la naquele carro de glórias subindo aos céus, Elias no volante, aureolado?


A Rua Augusto dos Anjos, em João Pessoa


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