Surrealismo de Salvador Dalí (1904-1989); pintura da série "Relógios Moles" |
A Guido Guerra, in memoriam
Como um
pássaro que passeia devagar na estiva
de um
porto qualquer, olhos baços, mente esquiva,
divago na
sala, mirando as estrelas da noite que passa.
Para ser
um filósofo, em grave silêncio, me falta massa,
temas
eternos, mente febril, serenidade no olhar,
imunidade
a relógios e o grave prazer de pensar;
me
exprimo com o nada, atento aos estertores da vida,
neste
espaço que me serve de confortável guarida,
para
pensar em mim mesmo, amealhar meus ciclones,
ruídos da
alma, como quem reaviva um cemitério de clones.
Como quem
mira estrelas cadentes, na noite sossegada,
me estiro
no sofá, respiro e realinho as curvas da estrada,
mais
próximo de mim, inumeral, distante do mundo,
sem ser
nenhum gênio, mago, de pensamento profundo.
Com um
livro na mão, revista ou jornal, um copo de vinho,
converso
comigo, meus dias e noites, com saudades de mim.
Ou com o
que me resta de sustos, recompondo os cristais,
que a
vida quebrou, o vento levou e, no entanto, quer mais.
E com
tantos sentimentos vivos que me correm na veia,
na noite
diversa, como um grão que se desprende da areia,
medito
estendido no sofá desta sala como sempre agradável,
sempre
calma, sem calor de emoções, sem tempo instável.
Enquanto
a amada que vigia meus sonos dorme no quarto,
ouço na
caixa de som alguém a dizer-se de sonhos farto;
eu
próprio, em meu canto, me alimento de perdas também,
por
minhas estivas mentais aguardo a madrugada que vem.
O vento
lá fora rebenta vidraças, em plena alvorada;
cá dentro
divago, espio a noite. Não espero mais nada.
(Salvador, jun. 2006)
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