Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas.
(Augusto dos Anjos)
Pietá and Revolution by Night, 1923, pintura de Max Ernst (1891-1976) |
Corro em busca de um segredo. Meu pai,
Enfadado, olhos fixos no horizonte,
Lamenta o estio que anuncia lutos,
O prenúncio de fomes no que pensa.
Olhos percorrem serras e caminhos,
Mapa que vãs palavras não desvendam.
Seca e sertão – seu magma de pretéritos;
Destino – impoluto ímã e chamamento.
Logo mergulha em teias verdejantes.
Interroga o porquê dos dias árduos,
Amargo trânsito, espinhos sob frondes,
Dura locomoção, serão de relhos.
Nunca a saudade o visitou (estranho
Dogma que o tempo inscreve a pata e faca,
Percorre os labirintos do existir
E cobra da alma o seu quinhão de pranto).
Nunca o sonho sorriu-lhe. Deus tampouco
Abriu porteira ao gado de seu pasto.
Só morcegos nos altos caibros, vozes
Por sobre telhas agouravam sonos.
Olho meu pai. Seus olhos miro. Ó luz,
Ó espelho em que me vejo (e não é um sonho).
Sou ele, sou-lhe igual, a diferença
Provém da terra que nos fez parceiros.
Não roçou a doçura nossos rostos.
Pedras latejam ígneas, leitos sangram.
Alma e carne sulcam léguas de viagem.
Navego em brenhas, visgo de cacau.
Súbito estremece o cenho carregado.
De rude origem choro que a emoldura,
Crispada mão a terra lavra insone:
Moeda de água que é tudo e não é nada.
Lembro meu pai, seu rude calendário:
Tácito dizer de olhos que se calam,
O menear do sono ao pé do rádio,
Prendas do ofício de espreitar luares.
Rio de perdas, cabedais em mim,
Em que rede hoje afundas teu cansaço,
Ó meu pai, bússola e água que me buscam,
Congelando renúncias, silêncio, ais?
Quanto de ti, do rosto retesado,
Estua em sítio de prosperidade
Negada; quanto, noite alta, em vigília,
A mão tateando livros de comércio,
Sólidos borderôs de endividados,
A forma encapsulada de teu gênio,
Quanto te devo eu associado a instantes
De teu rolar em transações de esperma.
A tarde em que da face escorrem luas
Sabe a rosas a propagar coágulos
Do adolescente cosmo de carências
Que eu percorria apascentando sombras
Da terra de onde emerge altissonante
Teu cabedal de notas promissórias.
De águas e campos temerários vêm
Talvez meus passos, eu e tua sombra.
Quanta névoa hoje, pai, meus olhos cobre.
Com íntimo rumor sonhos meus revolvem,
Sob metal, pedra, terra ou campa, a vida
Que se foi. Ora, os ventos que roçaram
O dorso alto da serra, mãe de rastros.
Ora, pássaros e animais de carga
Sobem do ônix da noite, aura perene,
Derivados do cosmo em que te moves.
(In “Poesia Reunida e Inéditos (São Paulo: Escrituras Editora, 2011, págs. 300/302)
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