segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PAI, IREI TAMBÉM


Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas.

(Augusto dos Anjos)

Pietá and Revolution by Night, 1923, pintura de Max Ernst (1891-1976)


Corro em busca de um segredo. Meu pai,
Enfadado, olhos fixos no horizonte,
Lamenta o estio que anuncia lutos,
O prenúncio de fomes no que pensa.

Olhos percorrem serras e caminhos,
Mapa que vãs palavras não desvendam.
Seca e sertão – seu magma de pretéritos;
Destino – impoluto ímã e chamamento.

Logo mergulha em teias verdejantes.
Interroga o porquê dos dias árduos,
Amargo trânsito, espinhos sob frondes,
Dura locomoção, serão de relhos.

Nunca a saudade o visitou (estranho
Dogma que o tempo inscreve a pata e faca,
Percorre os labirintos do existir
E cobra da alma o seu quinhão de pranto).

Nunca o sonho sorriu-lhe. Deus tampouco
Abriu porteira ao gado de seu pasto.
Só morcegos nos altos caibros, vozes
Por sobre telhas agouravam sonos.

Olho meu pai. Seus olhos miro. Ó luz,
Ó espelho em que me vejo (e não é um sonho).
Sou ele, sou-lhe igual, a diferença
Provém da terra que nos fez parceiros.

Não roçou a doçura nossos rostos.
Pedras latejam ígneas, leitos sangram.
Alma e carne sulcam léguas de viagem.
Navego em brenhas, visgo de cacau.

Súbito estremece o cenho carregado.
De rude origem choro que a emoldura,
Crispada mão a terra lavra insone:
Moeda de água que é tudo e não é nada.

Lembro meu pai, seu rude calendário:
Tácito dizer de olhos que se calam,
O menear do sono ao pé do rádio,
Prendas do ofício de espreitar luares.

Rio de perdas, cabedais em mim,
Em que rede hoje afundas teu cansaço,
Ó meu pai, bússola e água que me buscam,
Congelando renúncias, silêncio, ais?

Quanto de ti, do rosto retesado,
Estua em sítio de prosperidade
Negada; quanto, noite alta, em vigília,
A mão tateando livros de comércio,

Sólidos borderôs de endividados, 
A forma encapsulada de teu gênio,
Quanto te devo eu associado a instantes
De teu rolar em transações de esperma.

A tarde em que da face escorrem luas
Sabe a rosas a propagar coágulos
Do adolescente cosmo de carências
Que eu percorria apascentando sombras

Da terra de onde emerge altissonante
Teu cabedal de notas promissórias.
De águas e campos temerários vêm
Talvez meus passos, eu e tua sombra.

Quanta névoa hoje, pai, meus olhos cobre.
Com íntimo rumor sonhos meus revolvem,
Sob metal, pedra, terra ou campa, a vida
Que se foi. Ora, os ventos que roçaram

O dorso alto da serra, mãe de rastros.
Ora, pássaros e animais de carga
Sobem do ônix da noite, aura perene,
Derivados do cosmo em que te moves.

(In “Poesia Reunida e Inéditos (São Paulo: Escrituras Editora, 2011, págs. 300/302)

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