Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, amigos (Salvador,1976) |
(À memória de Glauber Rocha, artista, amigo e companheiro de jornal)
Nada sei
além do que me contam
os
hebdomadários perseguidos
os
diários desaparecidos
os livros
burocraticamente censurados
os
discursos jamais pronunciados
Muito
de dor enclausurada
de raiva contida
de memória desesperada
Muito
de petrificado esterco
de martírio indevassado
fel de carcomida flor
Como em
toda experiência humana
Como em
toda verdade proclamada
Há a
marca indelével do sofrimento
nas
páginas enfurecidas
Nada sei
além do que me contam
relatórios
encimados por tipos de caixa negros
vomitando
pelas
janelas dos escritórios
pelos
pátios dos colégios
pelos
verdes
gramados
dos jardins municipais
pelas
oficinas mecânicas
pelos
bares
pelas
praias e estádios superpovoados
pelos
ônibus
pelos trens
pelos aviões
e navios
que levam petróleo
pelo
mar
por todas
as estradas que começam na infância
Tudo o que o chão calou
e o ar esqueceu
Tudo o que a água afogou
e o fogo torrou
Tudo o que o sol
escondeu e a lua gelou
Tudo o que o dia borrou
e a noite ofendeu
Por esta
janela escancarada diante do mar
com o
horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã
de um dezembro moribundo
rajadas
de azul me trazem a história
de tudo
estampada
na páginas em fúria
onde não
há nenhum signo gráfico
nenhum
nome
somente
linhas de sangue
vergonha e desespero
Algo lido não sei onde
mas logo esquecido
Algo escrito não sei
onde
mas
logo apagado
Algo de ausência
denunciada
mas logo justificada
Algo de presença
intolerada
mas logo consentida
Algo de dúvida arguida
mas logo desfeita
Algo que violou a alma
mas logo com rigor apurado
Algo de assombro que
povoa os muros
Algo de aceso punhal que
cega as mentes
Algo
catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca
veio à luz nem foi explicado
Vem-me pela porta aberta desse verão doente
ecoando na varanda das páginas
desertas
das
edições que sangram gota a gota
nas
enfermarias do acontecer
(de ontem
de hoje
de amanhã
de sempre)
e adquire
uma velocidade assustadora
Porque a
luz é forte e ensurdece
Porque o
agitado do mar escurece
Porque
chega o vento e exerce
o poder
de lançar a espuma
contra as
estrelas adormecidas
Porque a
poeira da rua enegrece
as vestes
nos varais abandonados
Porque é
cedo e todos sabemos que tarda
Um novo
ciclope no horizonte aparece
Os corpos
voam sobre os arranha-céus
Porque a exausta carne se desprende
dos ossos ante petardos de sal
Nada sei
além do que me contam
as
furiosas páginas dos diários mudos
Morreu o
Chefe de Reportagem
E ficamos todos tristes
A
penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina
é densa e os automóveis
entram em
choque de faróis apagados
Queremos
uma pauta
um
roteiro qualquer
Não o que
leve ao esclarecimento
de todas
as culpas
Não
buscamos desvendar o impossível
Queremos
uma pauta
um
caminho (por exemplo)
Que
comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga
com a listagem para as horas de lazer
Que
enumere os chopes de todos os botequins
Que
reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Que
forneça o mais seguro boletim meteorológico
Que
informe o que se passa nos cinemas
Que
esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Que
estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Que abra
os corações aos ritos do candomblé
Que dê
verso às canções dos trios-elétricos
Que vista
a mortalha dos foliões de todos os dias
Que
prepare o espírito de todos para o Carnaval
E assim
seguindo apenas
o curso
luminoso
de cada
signo morto
perfurando
o arenoso
das
páginas desertas
bobinas
de horror
manchas
de tinta fresca
chumbo e
insone rastro
Chorarei
então
por entre
os escombros
da edição
matutina
(Salvador, ago. 1981)
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