segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A EDIÇÃO MATUTINA

Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, amigos (Salvador,1976)

            (À memória de Glauber Rocha, artista, amigo e companheiro de jornal)


Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados

Muito


                        de dor enclausurada
                        de raiva contida
                        de memória desesperada

Muito

                        de petrificado esterco
                        de martírio indevassado
                        fel de carcomida flor

Como em toda experiência humana
Como em toda verdade proclamada
Há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas

Nada sei além do que me contam
relatórios
encimados  por tipos de caixa negros
vomitando
pelas janelas dos escritórios
pelos pátios dos colégios
pelos verdes
gramados dos jardins municipais
pelas oficinas mecânicas
pelos bares
pelas praias e estádios superpovoados
pelos ônibus
                        pelos trens
                                         pelos aviões
e navios que levam petróleo
pelo mar                                           
por todas as estradas que começam na infância

                        Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu
                        Tudo o que a água afogou e o fogo torrou
                        Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou
                        Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu

Por esta janela escancarada diante do mar
com o horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã de um dezembro moribundo
rajadas de azul me trazem a história
de tudo
estampada na páginas em fúria
onde não há nenhum signo gráfico
nenhum nome
somente linhas de sangue
                                            vergonha e desespero

                        Algo lido não sei onde
                                        mas logo esquecido
                        Algo escrito não sei onde
                                        mas logo apagado
                        Algo de ausência denunciada
                                         mas logo justificada
                        Algo de presença intolerada
                                          mas logo consentida
                        Algo de dúvida arguida
                                         mas logo desfeita
                        Algo que violou a alma
                                         mas logo com rigor apurado
                        Algo de assombro que povoa os muros
                        Algo de aceso punhal que cega as mentes
Algo catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca veio à luz nem foi explicado

            Vem-me pela porta  aberta desse verão doente
            ecoando na varanda das páginas desertas
das edições que sangram gota a gota
nas enfermarias do acontecer
(de ontem
                 de hoje
                             de amanhã
                                   de sempre)
e adquire uma velocidade assustadora

Porque a luz é forte e ensurdece
Porque o agitado do mar escurece
Porque chega o vento e exerce
o poder de lançar a espuma
contra as estrelas adormecidas
Porque a poeira da rua enegrece
as vestes nos varais abandonados
Porque é cedo e todos sabemos que tarda 



Um novo ciclope no horizonte aparece
Os corpos voam sobre os arranha-céus
            Porque a exausta carne se desprende
            dos ossos ante petardos de sal

Nada sei além do que me contam
as furiosas páginas dos diários mudos

Morreu o Chefe de Reportagem
                           E ficamos todos tristes
A penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina é densa e os automóveis
entram em choque de faróis apagados
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)

Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Que enumere os chopes de todos os botequins
Que reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Que forneça o mais seguro boletim meteorológico
Que informe o que se passa nos cinemas
Que esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Que estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Que abra os corações aos ritos do candomblé
Que dê verso às canções dos trios-elétricos
Que vista a mortalha dos foliões de todos os dias
Que prepare o espírito de todos para o Carnaval

E assim seguindo apenas
o curso luminoso
de cada signo morto
perfurando o arenoso
das páginas desertas
bobinas de horror
manchas de tinta fresca
chumbo e insone rastro

Chorarei então
por entre os escombros
da edição matutina

(Salvador, ago. 1981)


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