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MÁRCIO
SANTOS LIMA
JOÃO
ALVES, O PINTOR DA CIDADE
RELAÇÕES
DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA
“PRIMITIVA”
E O MODERNISMO BAIANO
Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas
Artes, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Artes Visuais.
Área
de concentração: História da Arte
Orientadora:
Profa. Dra. Elyane Lins Corrêa
SALVADOR
2012
Não
vejo nele nem o pitoresco nem a lenda, não vejo nele o curioso folclore para
gaudio dos turistas, o ex-engraxate, e ex-vendedor de refrescos, sei lá o que,
Deus meu! Vejo, sim, o pintor da cidade, de suas casas, suas ruas, sua gente
miúda da festa do Bonfim e da eterna mulher-dama do Pelourinho, das noites de
São João, do mágico carnaval dos afoxés, das areias sob a lua, e da cor desta
cidade da Bahia, cor de João Alves, homem bom, de sofrida humanidade e generoso
coração. Um homem do povo, nascido e plantado na pobreza e na grandeza das
Portas do Carmo, um verdadeiro artista, um poderoso criador, um homem do povo e
um mestre do povo, mestre da cidade e seu arquiteto, o pintor João Alves, um
grande da Bahia.
Jorge
Amado, 1964
RESUMO
Nesta pesquisa, tive como objetivo principal estudar e
analisar a obra de um dos artistas autodidatas mais expressivos do período do
Modernismo baiano, em meados do século XX: o pintor e ex-engraxate João Alves.
As interações e as relações dialógicas entre sua pintura e o denominado
Movimento Moderno oferecem um pano de fundo para a elaboração do texto,
trazendo à discussão o contexto histórico e algumas implicações culturais,
étnicas e socioeconômicas. Partindo do método histórico-biográfico, optei por
adotar o uso de entrevistas, depoimentos e revisão literária, além da pesquisa
bibliográfica. Cabe salientar que não havia, até a atual dissertação, qualquer
obra biográfica do referido artista. Portanto, na pesquisa, busquei montar,
através de depoimentos de artistas, colecionadores, escritores, catálogos,
recortes de jornais, fotografias e documentos, a sua biografia. Para tanto,
ressalto a relevância das palavras de Jorge Amado, em seus textos literários,
os escritos dos críticos de arte José Valladares e Clarival do Prado
Valladares, bem como as entrevistas realizadas com contemporâneos do artista e
com Renot, dono da Galeria Querino, na qual João expôs. Destaco a importância
das contribuições dos artistas plásticos Sante Scaldaferri, com depoimento e
com sua coleção, e Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo,
com seu posicionamento crítico e combatente contra o emprego do termo primitivo
para definir a arte de João Alves. Essa expressão foi questionada e
problematizada no intuito de refletir sobre seu caráter evolucionista e, logo,
preconceituoso de claro teor eurocêntrico. A falta de um arcabouço
bibliográfico especializado na discussão sobre a pintura primitiva, no Brasil,
foi o que me motivou para a organização e sistematização cronológica da
investigação desse termo polissêmico no universo artístico baiano. Enfim,
finalizei a pesquisa com a análise de pinturas de João Alves, que fazem jus ao
seu título de Pintor da Cidade. Foram as obras que, tematicamente, versaram
entre as igrejas de Salvador e os casarios do Pelourinho, representando com
interpretação pessoal a Bahia, sua beleza, encanto e seus problemas sociais.
Destaco também o enorme esforço para reunir, de maneira organizada, por tema e
ano, a obra de João Alves que fora dispersa pelo mundo. Como resultados, as
discussões não foram esgotadas nem conclusivas, foram propositivas e abriram
possibilidades, quem sabe, para novas pesquisas e aprofundamentos futuros sobre
referido tema e o artista João Alves.
Palavras-chave:
Pintura “primitiva”. João Alves. Modernismo baiano. Pelourinho.
BREVE
RELATO BIOGRÁFICO: DE IPIRÁ AO PELOURINHO
(Excerto)
João Alves é o pintor da cidade, de suas
casas, de suas ruas, de sua gente miúda, da festa do Bonfim, e da eterna
mulher-dama do Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos
afoxés.
Jorge
Amado
João Alves Oliveira da Silva (1906-1970) ainda não era capaz de
viver de arte, embora suas telas fossem bem aceitas, sobretudo pelos turistas,
assim, sua renda principal continuava sendo a de seu ofício de engraxate. Isso
mesmo, o artista em questão foi um engraxate. Só mais tarde, depois da fama,
conseguiu manter-se com a pintura. Afro-brasileiro, nascido em Ipirá - Bahia,
em 1906, logo cedo, ainda criança, veio morar em Salvador. Segundo Ceres Coelho
(1973), ao completar 19 anos, passou a exercer várias profissões, como qualquer
batalhador de baixa renda vindo do interior para a capital do Estado. João
Alves foi empregado doméstico, auxiliar de torneiro, carregador de caminhão,
estivador, carroceiro e, por fim, engraxate, além de desenhista nas horas
vagas, quando, com lápis de cor, rabiscava caixas de papelão. Adquiriu uma
cadeira de engraxate num bazar de antiguidade, segundo Sylvia Athayde3. Para Milton Santos (2008), entre os
moradores do Centro de Salvador, 60% eram de imigrantes rurais. Esse
contingente de famílias vindas do interior do Estado pelo êxodo não dispunha de
trabalho permanente, na maior parte dos casos uma forma de “subemprego” com
salários quase miseráveis.
Entre
os ofícios mais frequentes, encontramos sobretudo os seguintes: bicheiro,
encanador, lavadeira, cozinheiro, bombeiro, pequeno funcionário, porteiro,
engraxate, encerador, viajante comercial, tipógrafo, empregado doméstico,
vendedor ambulante, chofer, condutor de ônibus, camelô etc. Em suma, são
pequenos empregados ou pessoas sem uma ocupação permanente ou bem definida. Seu
local de trabalho era, de preferência, no centro da cidade.
(SANTOS, 2008, p. 172)
João Alves foi mais um naquele contingente rural que
tenta a sorte na capital do estado. “Sem lenço e sem documento”, pode-se dizer,
o que justifica a dificuldade e o insucesso na busca de registros documentais
sobre sua existência. Nem mesmo no Arquivo Público do Estado da Bahia foi
encontrada alguma nota de seu nascimento, nem de sua morte. Família não foi
encontrada, sequer alguém com certo grau de parentesco. Por essa razão, na
atual dissertação, considero as pesquisas oral e bibliográfica como
fundamentais para a estrutura metodológica do João Alves foi mais um naquele
contingente rural que tenta a sorte na capital do estado. “Sem lenço e sem
documento”, pode-se dizer, o que justifica a dificuldade e o insucesso na busca
de registros documentais sobre sua existência. Nem mesmo no Arquivo Público do
Estado da Bahia foi encontrada alguma nota de seu nascimento, nem de sua morte.
Família não foi encontrada, sequer alguém com certo grau de parentesco. Por
essa razão, na atual dissertação, considero as pesquisas oral e bibliográfica
como fundamentais para a estrutura metodológica do trabalho. É de real valor
citar que a revitalização do Pelourinho, abordada acima, que retirou dezenas de
famílias, dificultou a localização de antigos moradores, prováveis
contemporâneos e vizinhos de João Alves. Muitos já devem ter falecido e outros,
não há informações para onde foram deslocados.
Seguindo com o que pude encontrar, é certo, através de
depoimentos e registros de exposição, que João Alves Oliveira da Silva nasceu
no município de Ipirá, na Bahia. A cidade de onde vem o engraxate e artista
modernista João Alves é um município a 209 km de Salvador, sertão baiano, com
área de 3.049 km2 , que hoje4 tem uma população de aproximados 57.640
habitantes.
Ipirá localiza-se na Microrregião Homogênea e
Administrativa de Feira de Santana e, do ponto de vista
econômico, na Região do Paraguaçu. Segundo o sítio eletrônico
ipiranegocios.com.br, na pecuária destacam-se os rebanhos de bovinos, suínos,
equinos, asininos, caprinos e ovinos. No setor de bens minerais, é produtor de
pedra. Seu parque hoteleiro registra 62 leitos. No ano de 2001, o município
registrou 9173 consumidores de energia elétrica com um consumo de 13.893MWH.
Segundo dados da SEI/IBGE, o PIB do município para 2003 foi de R$122,88
milhões, sendo 28,98% para agropecuária, 17,39% para indústria e 53,63% para
serviços. A Indústria de couro é uma atividade secular, que tem importância
fundamental na economia local, através da geração de emprego e renda. A feira
livre da cidade é considerada a segunda maior do Nordeste. Ipirá situa-se com
altitude em torno de 330 m. Mas desmembrou-se de Feira de Santana em 20 de
abril de 1855, quando foi automaticamente emancipada pela resolução provincial
de número 520. A partir do decreto 7.521 de 20 de julho de 1931, passa a se
chamar Ipirá, palavra de origem Tupi que significa "Rio de peixe",
fazendo relação com o rio que banha parte das terras locais, de mesmo nome.
Santana do Camisão, assim que era chamada no passado,
mais conhecida como "Camisão", segundo o senso, ainda hoje, divaga no
terreno das especulações a origem do nome da cidade. Várias são as hipóteses
que explicam a origem do nome Camisão e, dentre elas, segundo o IBGE, por
apresentarem resquícios de logicidade, destacam-se as duas histórias abaixo:
Conta-se que teria um velho desterrado português que
era proprietário de um rancho e que por sua hospitalidade para com os que ali
passavam e por vestir longas camisolas de algodão, ficou conhecido por todos
como o Homem do Camisão, assim originando-se o nome.[...] Outra hipótese é de
que o nome Camisão originou-se do Coronel Manoel Maria Camisão, entradista
português homenageado pelo Governador Geral do Brasil ao dar seu nome ao
aglomerado de ranchos existentes na região. O mesmo é descendente do herói da
retirada de Laguna durante a Guerra do Paraguai, tenente Coronel Carlos de
Moraes Camisão.5
João Alves, Largo do Pelourinho
É importante destacar que a própria fonte, o IBGE,
declara que não há provas documentais tanto para a primeira como para a segunda
hipótese. É bem provável, então, que João tivesse saído de lá quando a cidade
ainda era conhecida por esse curioso nome, Santana do Camisão. Mesmo deixando
sua terra natal ainda muito novo, é perceptível, em alguns quadros do artista,
a memória de sua infância na referencialidade do sertão, da festa de São João,
nos trens que circulavam os interiores do estado etc. Neste estágio, a pesquisa
não conseguiu dados documentais, registros comprobatórios do nascimento de
João, assim como sua família.
Como já vimos, o professor Milton Santos considera o
crescimento demográfico da cidade do Salvador à vinda de uma população de
origem rural e que, “atraídos pela miragem da grande cidade tentacular, vieram
morar nos velhos casarões da Sé e do Passo, bem como nos da Cidade Baixa”
(SANTOS, 2008, p. 174). Foram atraídos por outras pessoas naturais de suas
regiões que já tinham chegado na capital primeiro, “chamados por uma espécie de
simpatia, característica aliás da distribuição espacial dos habitantes nos
centros metropolitanos” (SANTOS, 2008, p. 174).
Na capital do estado, João chega a morar nos bairros
de Cosme de Farias, Nazaré e Pelourinho, mais precisamente, na esquina da Rua
das Laranjeiras com a igreja de São Domingos, onde, no final desta rua, existia
uma “casinha, como um subterrâneo” com escadaria, ali ele residia segundo
relato de Sante Scaldaferri (2010)6
. Sua cadeira de engraxate ficava instalada na Praça da Sé, ao lado do Palácio
do Arcebispado e próximo ao Cinema Excelsior, onde existia uma oficina de um
judeu ourives. Ali ele pintava.
É importante reforçar a informação de que não há
qualquer texto com aprofundamento, substancialmente, biográfico sobre João
Alves Oliveira da Silva. Sua família é desconhecida, assim como parte de sua
história. Quase uma lenda do Pelourinho, o engraxate-pintor ficou conhecido
pelo seu prestígio com os intelectuais de sua época. Sua obra foi dispersa por
todo o mundo. Turistas domésticos e fluviais7, colecionadores e amigos, todos
eram clientes do homem simples, afrobrasileiro, pobre e trabalhador, que
reinventava o que via, muitas vezes em cunho social, a partir de sua pintura.
Tive dificuldade, confesso, em encontrar alguém que
tivesse conhecido “Seu João”, muitos de seus contemporâneos já não estão mais
entre nós. Muito menos, alguém que reivindicasse qualquer tipo de parentesco
com o artista. João Alves morreu em 28 de junho de 1970, na cidade do
Salvador-Bahia, e parece que ele não deixou herdeiro. Sim, herdeiro porque,
apesar de pobre, ele deixou um tesouro incalculável para a cultura baiana,
representativo de um período áureo das artes plásticas na Bahia, do século XX.
Período este, que carece de um aprofundamento histórico e teórico, que traga
questões e reflexões sobre a arte popular para os dias de hoje. Tempo de
efervescência cultural jamais presenciado no Estado e que, hoje, nos
perguntamos quando ocorrerá algo parecido novamente, ou, pelo menos, que
movimente o circuito das artes plásticas na Bahia, com a valorização de seus
artistas e obras, com o respeito e o reconhecimento que lhes é devido.
João Alves, o pintor da cidade: Incêndio em Salvador, s. d.
Atualmente, o cenário parece estar estagnado artisticamente,
decorrente da falta de investimentos públicos na cultura, fomento e incentivos
de projetos artísticos, resultando na pouca produção cultural em artes
plásticas na Bahia. Isto nos faz olhar saudosos para dias de destaque e
respeito na esfera intelectual da sociedade, quando o cuidado e a atenção para
esse ramo da cultura baiana era valorado com dignidade e considerável apoio.
Dias em que, na Bahia, foram sediadas duas Bienais Nacionais de Artes
Plásticas, as quais serviram como afirmação do panorama artístico local em
resposta à produção nacional, ou seja, uma espécie de descentralização do
Sudeste brasileiro, que ditava e concentrava a produção plástica do país. Mas,
por razões, supostamente, mesquinhas e questionáveis deixaram de existir a
partir do fechamento truculento da II Bienal, em 1968 pelas forças militares.
Falar sobre João Alves é reviver esse momento, e ao
mesmo tempo, é reclamar uma prestação de contas, uma liquidação de uma pequena
parte do débito que a História da Arte tem com aqueles, subestimadamente,
conhecidos por primitivos modernos, que foram decisivos, desde a influência à
construção da arte que hoje chamamos de contemporânea. Portanto, devo começar a
abordagem destacando o valor desse gênero da arte e, com um olhar centrado naquilo
que mais discursa sobre o artista – sua obra, farei uma análise de sua condição
socioeconômica e cultural, questões étnicas que podem ter interferido
diretamente em sua maneira de representar e ressignificar o que via a partir de
sua pintura.
3
Diálogo informal com Athayde, diretora do Museu de Artes da Bahia, em agosto de
2010.
4 Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no
Diário Oficial da União do dia 04/11/2010.
5
Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no Diário Oficial da União do dia
04/11/2010.
6
Entrevista realizada especialmente para esta pesquisa em abril de 2010 7 Termos
utilizados atualmente pelos artistas do Pelourinho para identificar clientes
locais – domésticos; e compradores estrangeiros europeus – fluviais.

João Alves, Lavagem do adro da Igreja do Senhor do Bonfim, s. d.



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