sexta-feira, 14 de novembro de 2025

PINTURA PRIMITIVISTA DA BAHIA - JOÃO ALVES

    João Alves, Cidade do Salvador, com o Elevador Lacerda, s/d.

https://gmepae.com.br/wp-content/uploads/2022/04/dissertacao_marciolima_compressed.pdf


MÁRCIO SANTOS LIMA

 

JOÃO ALVES, O PINTOR DA CIDADE

RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA

“PRIMITIVA” E O MODERNISMO BAIANO

 

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais.

Área de concentração: História da Arte

Orientadora: Profa. Dra. Elyane Lins Corrêa

 

SALVADOR

2012

 

Não vejo nele nem o pitoresco nem a lenda, não vejo nele o curioso folclore para gaudio dos turistas, o ex-engraxate, e ex-vendedor de refrescos, sei lá o que, Deus meu! Vejo, sim, o pintor da cidade, de suas casas, suas ruas, sua gente miúda da festa do Bonfim e da eterna mulher-dama do Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos afoxés, das areias sob a lua, e da cor desta cidade da Bahia, cor de João Alves, homem bom, de sofrida humanidade e generoso coração. Um homem do povo, nascido e plantado na pobreza e na grandeza das Portas do Carmo, um verdadeiro artista, um poderoso criador, um homem do povo e um mestre do povo, mestre da cidade e seu arquiteto, o pintor João Alves, um grande da Bahia.

Jorge Amado, 1964

 

RESUMO

 

Nesta pesquisa, tive como objetivo principal estudar e analisar a obra de um dos artistas autodidatas mais expressivos do período do Modernismo baiano, em meados do século XX: o pintor e ex-engraxate João Alves. As interações e as relações dialógicas entre sua pintura e o denominado Movimento Moderno oferecem um pano de fundo para a elaboração do texto, trazendo à discussão o contexto histórico e algumas implicações culturais, étnicas e socioeconômicas. Partindo do método histórico-biográfico, optei por adotar o uso de entrevistas, depoimentos e revisão literária, além da pesquisa bibliográfica. Cabe salientar que não havia, até a atual dissertação, qualquer obra biográfica do referido artista. Portanto, na pesquisa, busquei montar, através de depoimentos de artistas, colecionadores, escritores, catálogos, recortes de jornais, fotografias e documentos, a sua biografia. Para tanto, ressalto a relevância das palavras de Jorge Amado, em seus textos literários, os escritos dos críticos de arte José Valladares e Clarival do Prado Valladares, bem como as entrevistas realizadas com contemporâneos do artista e com Renot, dono da Galeria Querino, na qual João expôs. Destaco a importância das contribuições dos artistas plásticos Sante Scaldaferri, com depoimento e com sua coleção, e Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo, com seu posicionamento crítico e combatente contra o emprego do termo primitivo para definir a arte de João Alves. Essa expressão foi questionada e problematizada no intuito de refletir sobre seu caráter evolucionista e, logo, preconceituoso de claro teor eurocêntrico. A falta de um arcabouço bibliográfico especializado na discussão sobre a pintura primitiva, no Brasil, foi o que me motivou para a organização e sistematização cronológica da investigação desse termo polissêmico no universo artístico baiano. Enfim, finalizei a pesquisa com a análise de pinturas de João Alves, que fazem jus ao seu título de Pintor da Cidade. Foram as obras que, tematicamente, versaram entre as igrejas de Salvador e os casarios do Pelourinho, representando com interpretação pessoal a Bahia, sua beleza, encanto e seus problemas sociais. Destaco também o enorme esforço para reunir, de maneira organizada, por tema e ano, a obra de João Alves que fora dispersa pelo mundo. Como resultados, as discussões não foram esgotadas nem conclusivas, foram propositivas e abriram possibilidades, quem sabe, para novas pesquisas e aprofundamentos futuros sobre referido tema e o artista João Alves.

Palavras-chave: Pintura “primitiva”. João Alves. Modernismo baiano. Pelourinho.

 

BREVE RELATO BIOGRÁFICO: DE IPIRÁ AO PELOURINHO

(Excerto)

 

 João Alves é o pintor da cidade, de suas casas, de suas ruas, de sua gente miúda, da festa do Bonfim, e da eterna mulher-dama do Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos afoxés.

Jorge Amado

 

João Alves Oliveira da Silva (1906-1970) ainda não era capaz de viver de arte, embora suas telas fossem bem aceitas, sobretudo pelos turistas, assim, sua renda principal continuava sendo a de seu ofício de engraxate. Isso mesmo, o artista em questão foi um engraxate. Só mais tarde, depois da fama, conseguiu manter-se com a pintura. Afro-brasileiro, nascido em Ipirá - Bahia, em 1906, logo cedo, ainda criança, veio morar em Salvador. Segundo Ceres Coelho (1973), ao completar 19 anos, passou a exercer várias profissões, como qualquer batalhador de baixa renda vindo do interior para a capital do Estado. João Alves foi empregado doméstico, auxiliar de torneiro, carregador de caminhão, estivador, carroceiro e, por fim, engraxate, além de desenhista nas horas vagas, quando, com lápis de cor, rabiscava caixas de papelão. Adquiriu uma cadeira de engraxate num bazar de antiguidade, segundo Sylvia Athayde3. Para Milton Santos (2008), entre os moradores do Centro de Salvador, 60% eram de imigrantes rurais. Esse contingente de famílias vindas do interior do Estado pelo êxodo não dispunha de trabalho permanente, na maior parte dos casos uma forma de “subemprego” com salários quase miseráveis.

Entre os ofícios mais frequentes, encontramos sobretudo os seguintes: bicheiro, encanador, lavadeira, cozinheiro, bombeiro, pequeno funcionário, porteiro, engraxate, encerador, viajante comercial, tipógrafo, empregado doméstico, vendedor ambulante, chofer, condutor de ônibus, camelô etc. Em suma, são pequenos empregados ou pessoas sem uma ocupação permanente ou bem definida. Seu local de trabalho era, de preferência, no centro da cidade. (SANTOS, 2008, p. 172)

João Alves foi mais um naquele contingente rural que tenta a sorte na capital do estado. “Sem lenço e sem documento”, pode-se dizer, o que justifica a dificuldade e o insucesso na busca de registros documentais sobre sua existência. Nem mesmo no Arquivo Público do Estado da Bahia foi encontrada alguma nota de seu nascimento, nem de sua morte. Família não foi encontrada, sequer alguém com certo grau de parentesco. Por essa razão, na atual dissertação, considero as pesquisas oral e bibliográfica como fundamentais para a estrutura metodológica do João Alves foi mais um naquele contingente rural que tenta a sorte na capital do estado. “Sem lenço e sem documento”, pode-se dizer, o que justifica a dificuldade e o insucesso na busca de registros documentais sobre sua existência. Nem mesmo no Arquivo Público do Estado da Bahia foi encontrada alguma nota de seu nascimento, nem de sua morte. Família não foi encontrada, sequer alguém com certo grau de parentesco. Por essa razão, na atual dissertação, considero as pesquisas oral e bibliográfica como fundamentais para a estrutura metodológica do trabalho. É de real valor citar que a revitalização do Pelourinho, abordada acima, que retirou dezenas de famílias, dificultou a localização de antigos moradores, prováveis contemporâneos e vizinhos de João Alves. Muitos já devem ter falecido e outros, não há informações para onde foram deslocados.

Seguindo com o que pude encontrar, é certo, através de depoimentos e registros de exposição, que João Alves Oliveira da Silva nasceu no município de Ipirá, na Bahia. A cidade de onde vem o engraxate e artista modernista João Alves é um município a 209 km de Salvador, sertão baiano, com área de 3.049 km2 , que hoje4 tem uma população de aproximados 57.640 habitantes.

Ipirá localiza-se na Microrregião Homogênea e Administrativa de Feira de Santana e, do ponto de vista econômico, na Região do Paraguaçu. Segundo o sítio eletrônico ipiranegocios.com.br, na pecuária destacam-se os rebanhos de bovinos, suínos, equinos, asininos, caprinos e ovinos. No setor de bens minerais, é produtor de pedra. Seu parque hoteleiro registra 62 leitos. No ano de 2001, o município registrou 9173 consumidores de energia elétrica com um consumo de 13.893MWH. Segundo dados da SEI/IBGE, o PIB do município para 2003 foi de R$122,88 milhões, sendo 28,98% para agropecuária, 17,39% para indústria e 53,63% para serviços. A Indústria de couro é uma atividade secular, que tem importância fundamental na economia local, através da geração de emprego e renda. A feira livre da cidade é considerada a segunda maior do Nordeste. Ipirá situa-se com altitude em torno de 330 m. Mas desmembrou-se de Feira de Santana em 20 de abril de 1855, quando foi automaticamente emancipada pela resolução provincial de número 520. A partir do decreto 7.521 de 20 de julho de 1931, passa a se chamar Ipirá, palavra de origem Tupi que significa "Rio de peixe", fazendo relação com o rio que banha parte das terras locais, de mesmo nome.

Santana do Camisão, assim que era chamada no passado, mais conhecida como "Camisão", segundo o senso, ainda hoje, divaga no terreno das especulações a origem do nome da cidade. Várias são as hipóteses que explicam a origem do nome Camisão e, dentre elas, segundo o IBGE, por apresentarem resquícios de logicidade, destacam-se as duas histórias abaixo:

Conta-se que teria um velho desterrado português que era proprietário de um rancho e que por sua hospitalidade para com os que ali passavam e por vestir longas camisolas de algodão, ficou conhecido por todos como o Homem do Camisão, assim originando-se o nome.[...] Outra hipótese é de que o nome Camisão originou-se do Coronel Manoel Maria Camisão, entradista português homenageado pelo Governador Geral do Brasil ao dar seu nome ao aglomerado de ranchos existentes na região. O mesmo é descendente do herói da retirada de Laguna durante a Guerra do Paraguai, tenente Coronel Carlos de Moraes Camisão.5

    João Alves, Largo do Pelourinho

É importante destacar que a própria fonte, o IBGE, declara que não há provas documentais tanto para a primeira como para a segunda hipótese. É bem provável, então, que João tivesse saído de lá quando a cidade ainda era conhecida por esse curioso nome, Santana do Camisão. Mesmo deixando sua terra natal ainda muito novo, é perceptível, em alguns quadros do artista, a memória de sua infância na referencialidade do sertão, da festa de São João, nos trens que circulavam os interiores do estado etc. Neste estágio, a pesquisa não conseguiu dados documentais, registros comprobatórios do nascimento de João, assim como sua família.

Como já vimos, o professor Milton Santos considera o crescimento demográfico da cidade do Salvador à vinda de uma população de origem rural e que, “atraídos pela miragem da grande cidade tentacular, vieram morar nos velhos casarões da Sé e do Passo, bem como nos da Cidade Baixa” (SANTOS, 2008, p. 174). Foram atraídos por outras pessoas naturais de suas regiões que já tinham chegado na capital primeiro, “chamados por uma espécie de simpatia, característica aliás da distribuição espacial dos habitantes nos centros metropolitanos” (SANTOS, 2008, p. 174).

Na capital do estado, João chega a morar nos bairros de Cosme de Farias, Nazaré e Pelourinho, mais precisamente, na esquina da Rua das Laranjeiras com a igreja de São Domingos, onde, no final desta rua, existia uma “casinha, como um subterrâneo” com escadaria, ali ele residia segundo relato de Sante Scaldaferri (2010)6 . Sua cadeira de engraxate ficava instalada na Praça da Sé, ao lado do Palácio do Arcebispado e próximo ao Cinema Excelsior, onde existia uma oficina de um judeu ourives. Ali ele pintava.

É importante reforçar a informação de que não há qualquer texto com aprofundamento, substancialmente, biográfico sobre João Alves Oliveira da Silva. Sua família é desconhecida, assim como parte de sua história. Quase uma lenda do Pelourinho, o engraxate-pintor ficou conhecido pelo seu prestígio com os intelectuais de sua época. Sua obra foi dispersa por todo o mundo. Turistas domésticos e fluviais7, colecionadores e amigos, todos eram clientes do homem simples, afrobrasileiro, pobre e trabalhador, que reinventava o que via, muitas vezes em cunho social, a partir de sua pintura.

Tive dificuldade, confesso, em encontrar alguém que tivesse conhecido “Seu João”, muitos de seus contemporâneos já não estão mais entre nós. Muito menos, alguém que reivindicasse qualquer tipo de parentesco com o artista. João Alves morreu em 28 de junho de 1970, na cidade do Salvador-Bahia, e parece que ele não deixou herdeiro. Sim, herdeiro porque, apesar de pobre, ele deixou um tesouro incalculável para a cultura baiana, representativo de um período áureo das artes plásticas na Bahia, do século XX. Período este, que carece de um aprofundamento histórico e teórico, que traga questões e reflexões sobre a arte popular para os dias de hoje. Tempo de efervescência cultural jamais presenciado no Estado e que, hoje, nos perguntamos quando ocorrerá algo parecido novamente, ou, pelo menos, que movimente o circuito das artes plásticas na Bahia, com a valorização de seus artistas e obras, com o respeito e o reconhecimento que lhes é devido.

    João Alves, o pintor da cidade: Incêndio em Salvador, s. d.

Atualmente, o cenário parece estar estagnado artisticamente, decorrente da falta de investimentos públicos na cultura, fomento e incentivos de projetos artísticos, resultando na pouca produção cultural em artes plásticas na Bahia. Isto nos faz olhar saudosos para dias de destaque e respeito na esfera intelectual da sociedade, quando o cuidado e a atenção para esse ramo da cultura baiana era valorado com dignidade e considerável apoio. Dias em que, na Bahia, foram sediadas duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas, as quais serviram como afirmação do panorama artístico local em resposta à produção nacional, ou seja, uma espécie de descentralização do Sudeste brasileiro, que ditava e concentrava a produção plástica do país. Mas, por razões, supostamente, mesquinhas e questionáveis deixaram de existir a partir do fechamento truculento da II Bienal, em 1968 pelas forças militares.

Falar sobre João Alves é reviver esse momento, e ao mesmo tempo, é reclamar uma prestação de contas, uma liquidação de uma pequena parte do débito que a História da Arte tem com aqueles, subestimadamente, conhecidos por primitivos modernos, que foram decisivos, desde a influência à construção da arte que hoje chamamos de contemporânea. Portanto, devo começar a abordagem destacando o valor desse gênero da arte e, com um olhar centrado naquilo que mais discursa sobre o artista – sua obra, farei uma análise de sua condição socioeconômica e cultural, questões étnicas que podem ter interferido diretamente em sua maneira de representar e ressignificar o que via a partir de sua pintura.

 

3 Diálogo informal com Athayde, diretora do Museu de Artes da Bahia, em agosto de 2010.

4 Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no Diário Oficial da União do dia 04/11/2010.

5 Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no Diário Oficial da União do dia 04/11/2010.

6 Entrevista realizada especialmente para esta pesquisa em abril de 2010 7 Termos utilizados atualmente pelos artistas do Pelourinho para identificar clientes locais – domésticos; e compradores estrangeiros europeus – fluviais.

João Alves, Lavagem do adro da Igreja do Senhor do Bonfim, s. d.




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