domingo, 29 de junho de 2025

POESIA. CAVALO AZUL - ANTOLOGIA SELVAGEM


     Cavalos na alvorada: ruços, alazães, negros, melados ou pampos


ANTOLOGIA SELVAGEM


Alexandre Bonafim                                                          

Cláudio Daniel

Fabio Júlio

(org.)


Copyright © 2024 by

EDITORA CAVALO AZUL

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Ana de Eurípia Felizardo

Conselho Editorial:

Dr. Alexandre Bonafim (UEG) – Diretor

Dr. Roberval Pereyr (UEFS)

Dra. Juliana Florentino (USP)

Dra. Marília Silva Vieira Pereira (UEG)

Dra. Solange Fiuza Cardoso Yokozawa (UFG)

Ilustração e composição de capa:

José Joaquim Gomes Neto

Diagramação:

Rones Lima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


Antologia Selvagem: um bestiário da poesia brasileira contemporânea

/ Alexandre Bonafim, Cláudio Daniel e Fábio Júlio (org.) – 1. ed. –

Franca, SP : Cavalo Azul, 2024.

140 p.; 21cm.

ISBN

1. Poesia brasileira I. Título.


CDD B869.1


1. Poesia : Literatura brasileira

Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129


SUMÁRIO


1.Uma escritura selvagem: poéticas animais

Alexandre Bonafim ..................................................17


Adriana Versiani dos Anjos................................................31

Adriano Espínola...............................................................33

Adriano Eysen ...................................................................35

Adriano Lobão Aragão.......................................................36

Aleilton Fonseca ...............................................................37

Alexandre Bonafim............................................................38

Alexei Bueno .....................................................................42

Álvaro Alves de Faria .........................................................43

Álvaro Cardoso Gomes......................................................44

Ana Cecília Bastos.............................................................46

Ana Costa dos Santos........................................................47

André Dick .......................................................................48

André Luis M. Galvão ......................................................50

Andressa Monteiro ............................................................52

Andityas Soares de Moura .................................................53


Antonio Brasileiro .............................................................54

Antonio Carlos Secchin.....................................................55

Ariadne Oliveira ................................................................56

Assis Lima .........................................................................57

Astrid Cabral.....................................................................58

Bartira Dias ......................................................................61

Bruna Silva........................................................................63

Caio Graco.......................................................................64

Carlos Barbosa ..................................................................65

Carlos Felipe Moisés..........................................................67

Carlos Henrique Costa......................................................69

Carlos Machado ................................................................70

Carolina Brito ...................................................................72

Cecília Furquim ................................................................74

Cecília Lara .......................................................................76

Celso de Alencar................................................................77

Cida Meira ........................................................................79

Claudia Roquette-Pinto.....................................................81

Claudio Daniel..................................................................83

Cleberton Santos...............................................................85

Cristiane Torres.................................................................86


Daniel Borges....................................................................87

Deborah Brennand............................................................89

Donizete Galvão ..............................................................90

Dora Ferreira da Silva........................................................92

Edgard Senaha...................................................................94

Edir Pina de Barros ...........................................................95

Edmar Guimarães .............................................................96

Edson Amaro de Souza......................................................97

Eduardo Brito ...................................................................98

Elson Froes......................................................................100

Elizabeth Abreu Caldeira Brito........................................102

Eunice Arruda .................................................................103

Fábio Júlio.......................................................................104

Fernando Campos...........................................................106

Filipe Artur Queiroz........................................................108

Flávia Savary ...................................................................109

Florisvaldo Mattos...........................................................110

Francisco Perna Filho ......................................................111

Gilberto Tadeu Nable ....................................................113

Hellington Vieira ............................................................115

Henrique Chaudon .......................................................116


Hernane Borges de Barros Pereira....................................118

Horácio Costa .................................................................119

Hudson Santos................................................................124

Idelma Ribeiro Faria........................................................125

Iderval Miranda...............................................................126

Idmar Boaventura............................................................127

Inês Ferreira da Silva Bianchi...........................................128

Isa Corgosinho ................................................................129

Isadora Salazar + Thienne Johnson ..................................131

Ito Pedragrande...............................................................133

Ivan Junqueira.................................................................135

Izaias Gabriel .................................................................136

João Batista Melo ............................................................138

Johny Guimarães.............................................................139

Jorge Amancio.................................................................140

José Luís Monteiro ..........................................................142

Josias Padilha...................................................................143

Juliete Oliveira ................................................................144

Júlio Machado.................................................................145

Júnior Ratts.....................................................................148

Juraci Dórea ....................................................................149


Laércio Majadas .............................................................150

Lara de Lemos.................................................................151

Lenilde Freitas.................................................................152

Liana Timm ....................................................................153

Lílian Almeida.................................................................154

Lisley Nogueira ..............................................................156

Luciana Barreto...............................................................157

Luciano de Castro ...........................................................158

Luís Pimentel ..................................................................160

Luiz Sentinela..................................................................162

Luiza Mendes Furia.........................................................163

Lupe Contrim.................................................................164

Marcela Albanesi Parrado ................................................166

Marcia Tigani .................................................................167

Marco Lucchesi ...............................................................169

Maria Carpi.....................................................................170

Mariana Ianelli................................................................171

Mário Alex Rosa .............................................................173

Marli Fróes......................................................................175

Marly de Oliveira ............................................................177

Mylla Taynah .................................................................179


Myriam Fraga..................................................................180

Nara Fontes.....................................................................182

Neurinan Sousa...............................................................183

Nívia Maria Vasconcellos.................................................184

Noélia Ribeiro.................................................................185

Odylia Almacave.............................................................186

Olga Savary .....................................................................188

Paulo André ....................................................................189

Paulo Franchetti ..............................................................190

Paulo Marcelino ..............................................................191

Rafael SG Santos ............................................................193

Raquel Naveira................................................................194

Renata Pallottini ............................................................196

Ricardo Thadeu...............................................................197

Ricardo Vieira Lima .......................................................198

Rilnete Melo ..................................................................199

Roberto Carvalho............................................................200

Roberval Pereyr ...............................................................203

Rodrigo Ortiz Vinholo ..................................................204

Rodrigo Petronio.............................................................205

Rogerio Luz.....................................................................208


Ronald Polito ..................................................................209

Ronaldo Cagiano.............................................................210

Rosana Piccolo ................................................................213

Roseana Murray ..............................................................214

Ruy Espinheira Filho.......................................................215

Ruy Proença ....................................................................218

Sandro Adriano da Silva ................................................220

Sidnei Olivio...................................................................221

Tchello d’Barros..............................................................223

Tida Carvalho .................................................................225

Telma Siqueira ................................................................227

Thaís M Resende.............................................................228

Tom Custódio .................................................................229

Trazíbulo Henrique Pardo Casas......................................231

Uaçaí de Magalhães Lopes ..............................................232

Vera Lúcia de Oliveira .....................................................233

Vladimir Queiroz............................................................234

Walmir Ayala ..................................................................236

W. B. Lemos....................................................................239

Wilson Pereira de Jesus....................................................241

Wilton Cardoso...............................................................242


Wladimir Cazé................................................................243

Zeh Gustavo....................................................................245

Fabio Morábito ...............................................................249

Mary Oliver ....................................................................251

Niní Bernardello..............................................................253

Olga Orozco...................................................................254

Wisława Szymborska .......................................................261

Animais da natureza juntos com o humano. Tela de Franz Marc


1.Uma escritura selvagem: poéticas animais

Alexandre Bonafim1


Dedico este livro a dois poetas amigos, duas grandes almas com quem tive a alegria de conviver e aprender o verdadeiro sentido da palavra e da alegria de criar: Donizete Galvão e Dora Ferreira da Silva

Ao longo da história da literatura ocidental, os animais desempenharam um papel crucial para a configuração de grandes obras de nosso cânone. Desde Moby Dick de Melville à cachorra Baleia de Graciliano Ramos, os animais tornaram-se personagens centrais e fundamentais na trama de textos que, utilizando-se das potencialidades poéticas de tais seres, expandiram nossa sensibilidade artística, permitindo um olhar novo e mais profundo sobre nós mesmos. Os animais, assim, passaram a espelhar nossa condição humana, aprofundando e intensificando aquilo que, em nós, justamente nos diferenciava deles, ou, pelo contrário, nos irmanava a eles.

Nesse sentido, partindo, a princípio, de nossas diferenças, talvez a maior resida precisamente no cogito cartesiano (1)que nos define enquanto espécie, o que nos permite, conforme Heidegger, sermos “a única” testemunha do mundo. Essa mesma consciência de si, por outro lado, carrega o pendor do trágico, pois também nos torna lúcidos ante a morte, fenômeno só apreensível, racionalmente, pelo homem, pois só ele é dotado da consciência desse feito inexorável (2)

Despidos da tragédia desse mal, a consciência reflexiva(3), os animais residiriam em uma realidade quase adâmica, justamente por viverem apenas no instante-já, integralmente. Sua vivência se dá apenas no átimo do agora, não na profundidade de uma consciência do futuro, ou das memórias narradas de um passado. Os animais “são” plenamente, sem máscaras, vivendo em conexão direta com a vida. A poesia sobre animais, então, poderia ter, como um dos intuitos, aproximar-se dessa essência, buscando um retorno ao instintivo, à verdade da experiência, digamos, primitiva.

Aqui, cabe lembrar a genialidade de Graciliano Ramos. A cachorra Baleia, no fatídico capítulo no qual o frágil animal está frente à morte, uma morte que, paradoxalmente, viria pelas mãos daquele que ela mais amava, desvela, pela sua interioridade, nuançada por uma espécie de páthos trágico demasiadamente humano, toda a profunda riqueza existencial desse momento, como se o leitor pudesse ver a morte por dentro, pela intimidade de seu mistério, pelo silêncio de sua verdade inelutável. Tal como acontece com o famoso personagem, de Leon Tolstói, Ivan Ilich, podemos captar, pelo íntimo da personagem, toda a força desse momento cruel e sublime. Tais páginas de nossa literatura brasileira, dentre as mais belas de nossa história, só se tornam possíveis porque Graciliano explora o que é imensamente humano em um ser distante, de certa forma, dessa mesma humanidade. A morte, aqui, é vista pelo viés cósmico, como casualidade fatal da própria natureza, de tudo o que se faz presença na realidade universal. Captamos a morte não pelo cogito cartesiano, mas pela razão sensível, tal como preconizou Michel Maffessoli(4), instância de nossa inteligência múltipla, em conexão com a carne que sente, com a emoção que estertora. Essa razão sensível, aqui, talvez seja o elo fundante da vida e o veio do ser capaz de nos irmanar à alteridade dos animais.

Se a literatura, por muito tempo, buscou, nos animais, aspectos instintivos ou até comportamentais do ser humano, usando-os como meras alegorias de práticas humanas em narrativas repletas de lições morais, como acontece desde as fábulas às narrativas folclóricas, a literatura, em muitos casos, buscou no animal, algo além de uma mera representação de nós, um símbolo da alteridade misteriosa, enigmática e sagrada da própria natureza. Ao falar do lobo que vagueia pela floresta ou do pássaro que corta o céu, o poeta cria pontes entre a nossa subjetividade e aquilo que é ancestral e remoto, aquilo que escapa às palavras, mas permanece na alma.

O silêncio, elemento tão caro à poesia, torna-se emblema dessa complexa relação entre humanos e animais. Estes últimos vivem em uma esfera para além e aquém da própria palavra, num círculo inescrutável para nós, desvelando múltiplas linguagens, apenas perceptíveis, que vão de ações, movimentos e comportamentos, rastros, vestígios de uma comunicação física que nos coloca diante de uma alteridade sempre enigmática.

Para Rainer Maria Rilke, os animais, de certa forma, por viverem numa espécie de paraíso anterior à queda, ao viverem livres da palavra verbal, possuem o privilégio de uma comunicação mais próxima da natureza e do enigma de tudo o que existe. Esse silêncio dos animais, portanto, não é uma ausência de comunicação, mas uma forma de expressão pura e imediata, que existe em total abertura ao mundo e resiste à captura pelo pensamento verbal. Ao observarmos o comportamento de um animal — seu olhar, suas pausas e seu movimento — sentimos uma espécie de mistério que não se deixa decifrar, pois os animais pertencem a uma ordem de existência que não necessita de palavras para significar. Em sua oitava elegia de Duíno, o poeta afirma:

Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto.

Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha

se oculta em torno do livre caminho.

O que está além, pressentimos apenas

na expressão do animal; pois desde a infância

desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos,

ah, esse espaço profundo que há na face do animal.

Isento de morte. Nós só vemos

morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim;

diante de si tem apenas Deus e quando se move

é para a eternidade, como correm as fontes(5).

A pura e imediata relação entre o mundo e o animal, de certa maneira, já é uma transcendência inacessível a nós, humanos, condenados ao pensamento lógico e à linguagem verbal. Daí nasce a fecunda teopoética de Rilke, pois o Aberto, a transcendência, se é algo imanente no animal, para o ser humano, ao contrário, tem de ser uma conquista. A palavra poética, plenitude da própria linguagem verbal, portanto, seria a via de acesso à sacralidade, ao mistério fecundo da natureza, nos permitindo um vislumbre do Aberto. O Aberto, assim, torna-se dádiva, a nós, muito mais pelo êxtase epifânico da poesia do que pela lógica da linguagem prosaica.

Portanto, o homem pode, talvez, “tocar” o Aberto de maneira fugaz e indireta, através de momentos de criação e de contemplação estética. Rilke parece dizer que, embora nunca possamos habitar o Aberto da mesma forma que um animal, a aproximação ao indizível, ao intuitivo e ao sublime nos oferece uma experiência parcial desse estado. Mas esse vislumbre é efêmero, uma centelha em meio à existência consciente e dividida do ser humano. Em última análise, a busca do Aberto torna-se, para Rilke, uma busca espiritual e estética, um caminho que não oferece a fusão completa, mas que nos aproxima, pelo menos, daquilo que é maior que nós mesmos.

A poesia sobre animais, portanto, ganha destaque nesse contexto, pois se transforma em possível instrumento de vislumbre do Aberto. Ao escrever sobre determinado bicho, o poeta, em muitos momentos, empreende uma luta com a palavra, visando à busca de um significado que a transcende.

Essa ideia do animal como ser do Aberto, como entidade que não está encerrada na lógica da interioridade e da representação — ao contrário do homem, cujo olhar se volta sempre para si mesmo —, será explorada poeticamente por autores como Rilke, Francis Ponge, Paul Valéry e, no Brasil, por Orides Fontela, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, entre outros. A imagem do pássaro em Orides Fontela, por exemplo, condensa a liberdade ontológica da criatura em sua pureza de ser, enquanto a rã de Ponge se converte em epifania da matéria, fazendo o poeta buscar, na descrição da superfície do bicho, uma ética do sensível, da atenção.

Na contemporaneidade, a reflexão sobre os animais na literatura encontra respaldo em campos como a ecocrítica, os animal studies e a ontologia pós-humanista. Pensadores como Jacques Derrida, Donna Haraway, Giorgio Agamben e Vinciane Despret problematizam a relação humano-animal para além da oposição binária clássica, propondo modos de coexistência, coevolução, responsabilidade e coimplicação entre as espécies. Em O animal que logo sou (6), Derrida indaga: “O que é um animal?” e, mais profundamente, “o que significa ser olhado por um animal?”. A partir dessa provocação, o filósofo desconstrói o privilégio humano da razão, da linguagem e da moralidade, denunciando o antropocentrismo que rebaixa os outros viventes a instrumentos ou metáforas de nossa própria espécie.

A literatura, nesse sentido, não serve apenas para falar sobre os animais, mas para falar com, ou a partir de uma animalidade que questiona a linguagem humana. A poesia sobre animais pode ser compreendida, então, como uma tentativa de reencantar o mundo, de reconfigurar o lugar do humano na teia da vida, e de reconhecer, no outro-animal, um espelho turvo de nós mesmos, ou um abismo repleto de sentido. Como bem observou John Berger em seu ensaio Por que olhamos para os animais?(7) , com o advento da modernidade, os animais foram sendo gradativamente exilados da vida cotidiana, convertendo-se em imagens domesticadas, entretenimento, recurso ou vestígio. Berger vê na literatura uma forma de resistência a esse apagamento simbólico: ali, o animal ainda pode ser portador de mistério, alteridade e verdade.

A esse respeito, vale lembrar alguns dos grandes animais da tradição literária ocidental, verdadeiros arquétipos de sentidos simbólicos profundos. O cavalo de Aquiles, o cão Argos de Ulisses, o rinoceronte de Ionesco, o corvo de Poe, a barata de Kafka, o jaguar de Lezama Lima, o boi de Guimarães Rosa em “Conversa de bois” — todos são exemplos de como os animais não apenas compõem cenas narrativas, mas instauram núcleos filosóficos, mitológicos e linguísticos de alta complexidade. Neles, a animalidade já não é apenas um tema, mas uma perspectiva de mundo.

É possível afirmar que há ao menos três grandes linhas de sentido no uso dos animais na literatura: (1) a alegórica, na qual os animais representam tipos humanos ou virtudes/vícios, como nas fábulas de Esopo ou La Fontaine; (2) a existencial-ontológica, em que os animais aparecem como portadores de um modo de ser alternativo ao humano, como em Rilke ou Clarice Lispector; e (3) a pós-humanista ou especulativa, em que a animalidade rompe os parâmetros humanos de subjetividade, abrindo espaço para novas formas de imaginar a vida, como ocorre em Tokarczuk ou Coetzee.

Na poesia, em especial, há uma tendência a explorar o animal como signo de pureza ontológica e como metáfora do indecifrável. Em Orides Fontela, os pássaros não são apenas imagens da liberdade, mas vestígios do absoluto, daquilo que escapa à linguagem, mesmo quando é convocado por ela. Em Manoel de Barros, os animais falam pelo delírio da infância, pela gramática do chão, pelo assombro do ínfimo. Já em Hilda Hilst, o animal se converte em pulsão, carne, grito e erotismo cósmico. O animal, nessas poéticas, encarna forças originárias: aquilo que está antes e além da consciência, da moral, da história.

Também é necessário reconhecer o papel do animal na construção de uma ética do cuidado, da atenção, da alteridade. A literatura que se volta para os bichos é, muitas vezes, uma literatura da escuta, do rastro, da espera, do silêncio. A escuta de um miado no escuro, a atenção à dança de um inseto, o registro do balançar das patas de um cão ou da plumagem de um pássaro são gestos de abertura ao mundo como diferença radical.

Por isso, pensar o animal na literatura é pensar o próprio lugar do humano, não como centro, mas como um nó instável em uma rede de sentidos mais vasta. A poesia que nasce do animal ou que se volta a ele é, por excelência, um exercício de descentramento, de humildade e de maravilhamento. É uma tentativa de dizer o indizível, de tocar o ser com palavras, de apreender o silêncio com linguagem. E é nesse ponto que essa nossa Antologia selvagem se inscreve como um bestiário contemporâneo em que o animal reaparece não como metáfora esvaziada, mas como presença viva, vibrante, irredutível: bicho, corpo, signo e cosmos.

I.I. Sobre essa Antologia selvagem:

Se a poesia é uma forma de escuta, o animal é aquilo que resiste à linguagem e, ao mesmo tempo, a provoca. Esta Antologia selvagem nasceu do desejo de reencontrar, no coração do poema, a presença do bicho como enigma vivo. Não como metáfora ou espelho moral, mas como outro radical, ser que nos observa de um lugar que escapa à nossa lógica, mas nos inquieta, nos convoca, nos transforma.

Os poetas aqui reunidos não se voltam aos animais para traduzi-los, mas para se aproximar de sua força ininteligível, sua opacidade vibrante, sua existência que pulsa fora da história e do discurso. Há, em cada um desses poemas, um gesto de humildade: a tentativa de ouvir aquilo que não fala, mas significa; de tocar com a palavra aquilo que não se diz, mas se impõe como presença.

Talvez seja isso que a poesia possa fazer diante do animal: não o capturar, mas deixar-se afetar por sua alteridade. Não dizer por ele, mas reconhecer, em seu silêncio, um sentido que antecede o humano. E então escrever, não para traduzir, mas para acompanhar. Cantar, não para dominar, mas para partilhar a própria vida comum.


1 - Alexandre Bonafim é poeta, ficcionista, crítico literário e professor de literatura da Universidade Estadual de Goiás.

2 - Animais também demonstram sinais de consciência da morte, como o estresse no abatedouro, mas é no humano que essa consciência se torna matéria narrativa e filosófica.

3 Alguns animais demonstram formas elementares de autoconsciência, mas é a racionalidade humana que possibilitou a criação da cultura - muitas vezes usada não para integração, mas para exploração da natureza, culminando no atual colapso ecológico. 

4 MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrópolis: Vozes, 1998.

5 RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução e comentários de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013. 

6 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

7 BERGER, John. Por que olhar para os animais? Tradução de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Fósforo, 2021


ANTOLOGIA SELVAGEM


Réptil

Adriana Versiani dos Anjos


Apenas um réptil,

me compadeço da morte das nascentes.

Mesmo sendo frio meu sangue e eu apenas isso,

um réptil,

diante da grandeza extinta do rio,

me compadeço.

Estou sobre a terra e bebo pouco.

O sol racha a lama em losangos imperfeitos.

A vida arde no couro grosso que protege meu corpo.

Sou um réptil

E por isso não choro,

me compadeço.

2

No escuro, guardo os ovos para o próximo período.

Não sinto raiva, ansiedade ou medo.

Apenas um réptil,

fito os olhos do animal secando na areia do deserto.

Neste universo apinhado de estrelas, eu,

apenas um réptil,

me compadeço.

3

Diante da singularidade da natureza,

sou também natureza,

incapaz de pensar a minha natureza.

Trago na boca uma língua pegajosa que guarda o mistério

do último inseto.

O espaço está repleto de fantasmas

e o universo se alimenta de corpos que apodrecem.

Eu,

apenas um réptil,

não lamento o universo,

me compadeço.


O cavalo e o mar

Adriano Espínola


1

Na praia um cavalo azul

imita o mar.

Com as crinas espumantes

ondula sobre a areia.

Arremete furioso

contra as dunas.

(Na sua garupa de algas

El-Rei Dom Sebastião

encantado já cavalga

com sua espada na mão).

Veloz busca asas:

mito trespassado de sonhos

& sargaços.

2

O mar com suas líquidas patas

cavalga na praia.

Com os músculos retesados

de maré cheia

investe resfolegante

contra a areia.

Com as crinas de algas

escoiceia a manhã.

Encrespa-se todo

buscando o cavalo:

mito ondulado de sal e tempo.

3

Ali os dois se enfrentam:

o cavalo marinho

& o mar equestre.

Indiferente

o sol assiste

à peleja perene das criaturas.


O cão e o homem


Adriano Eysen


Alguns rastros

em meus ombros inúteis,

lá fora, sem mapas,

um cão fareja amores perdidos.

Eu e o cão

espreitados sob a noite

convertemos desejos

em vãs aventuras.

Há um cão dentro de mim

e na brevidade do quarto

sinto as mãos de Deus

tocando meu fingimento.

E na carne das lembranças

o tempo abriga

cães e homens.


A uma abelha que se prendeu no âmbar


Adriano Lobão Aragão


em beleza, delícia e decoro

pela tarde divaga a breve abelha

desejando a eternidade envolvê-la

quando na seiva arriscasse seu pouso

mas que outra forma no âmbar deixaria

a delicada essência de teu voo

muito além dos limites desse corpo

no pouso impresso na matéria fria

quem sabe o tempo ou o corpo somente

revestido na resina do instante

quem sabe o voo colhido nesse ventre

quando nenhum outro engenho enfim alcance

sem que a morte para este fim se invente

ao colher a beleza que lhe encante


O domador de pirilampos


Aleilton Fonseca

Jamais esqueço dos pirilampos

Que iluminavam a minha infância.

Eram respingos de luz nos campos

E são piscos de luz na lembrança.

Admirando, eu já contava cada

Claro rastro de brilho no ar,

O ritmo certo do acende e apaga

Que ainda me faz imaginar.

O destino dolente rasura

O passado que será futuro.

A sua garra pega e tritura

Os sonhos que rebrilham no escuro.

A luz piscante dos pirilampos

Que iluminaram a minha infância

Ainda alimenta meus encantos

E faz brilhar a minha esperança.


O lagarto


Alexandre Bonafim


Sob o sol

cáustico

repousa

o lagarto

sobre pedra.

Não é feita

de tempo

a dormência

do lagarto.

Ali ele permanece

sem início

sem fim.

O lagarto

acostumou-se

à pedra

tão cinza

quanto

às suas

escamas.

O lagarto

é a pedra

habituado

a lutar

contra

a noite

a chuva

o ar.

O lagarto

não soube

o que foi

a vida

entretanto

sua pele

reflete

a amplidão

das estrelas.

O lagarto

é flor

que não se soube

pétala

e perfume.


É lagarto simplesmente.

Coisa que não existe

que nunca existiu.

O lagarto

poderia ser cântico

mas é grito

tão estridente

que não se ouve.

Quem olhar

o lagarto

nada verá.

Ele é nada.

Um quinhão

de poesia

tão repleto

de poesia

que se fez

silêncio.

Coisa que ninguém sente

ninguém pega.

O lagarto

é um pranto

seco

tão seco

que poderia

ser lágrima.


Abatedouro de cavalos


Alexei Bueno


Ei-los, servos do Sol e dos heróis,

Pendurados do teto, entre os patifes.

Balançam — como peixes dos anzóis —

De ganchos, onde aguardam virar bifes.

Das crinas, já ondeadas pelo vento,

Pinga sangue, e da língua. Sobre os joelhos

Decepam-lhes as patas. Grosso e lento,

O pelo se incha de borrões vermelhos.

Os épicos, os régios, os hieráticos

Animais, degolados, logo em latas

Caberão. Sós, num canto, alvos, estáticos,

Seus olhos fixam campos e cascatas.

Serão patês, almôndegas, conservas...

Seus fantasmas, que os médiuns não conhecem,

Relincharão furiosos sobre as ervas,

Junto a sombras que os sonhos nunca esquecem.


Os cavalos


Álvaro Alves de Faria


Os cavalos mastigam as plantas

como se fossem anjos tocando harpa

desses que habitam as noites

enquanto os cavalos raivosos pisam nas flores

como abelhas que fogem

e permanecem junto às árvores

enquanto os cavalos cavam a terra                       

Cavalo Azul, de Franz Marc

como gafanhotos comem as folhas

e tiram os olhos do espantalho

enquanto os cavalos em fúria

bebem o rio no fundo da casa

como se fossem peixes dourados

que voam como os pássaros

enquanto os cavalos escovam as crinas

como uma mulher diante do espelho

a tratar dos cabelos

como pérolas amarelas

e a passar batom vermelho na boca

enquanto os cavalos saem à planície

e adormecem o mundo

para terminar o poema.


Morcego


Álvaro Cardoso Gomes


Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle

Baudelaire, LXXVII – Spleen


Quando o céu é escuro e sujo

Como a loja de um Antiquário,

Não há mais em meu coração

Nem alegrias e nem esperanças.

Quando o tempo é como um lago,

Cujas águas geladas

Há muito, estão mudas e paradas,

Vejo a Esperança como uma velha enrugada.

Quando os cabelos da noite

São mais brancos que a neve

Ou tão frágeis como as folhas secas,

Ouço os gritos das desesperadas árvores.

Eu não queria ser

Como um solitário morcego

Batendo as feridas asas

Contra as paredes,

E esperando em vão

Pelo bafo quente da noite.


Definição do gato


Ana Cecília Bastos


Contato portátil com a natureza.

Nuvem atravessando a mesa

e outros espaços imprevistos.

Nova casa se revela

na fotografia

felina,

em ângulos de precisão

e neblina.

O mundo visto em sobressaltos.

O desafio e o salto,

sempre mais alto,

sempre mais belo,

o gato amarelo.

Ei-lo.

Elo.


Voo


Ana Costa dos Santos


Morto, o pássaro

está a salvo:

não há risco após a queda.

Então por que me espantam

seu sono,

seu silêncio,

o baque ao pé

da árvore, igual

ao de uma fruta

podre

qualquer,

seu corpo dissecável,

onde, buscando, eu acharia

uma garganta, um coração

quieto?

Dizem que certos pássaros

dormem voando –

este talvez

voe dormindo.


Urso polar


André Dick


Eu recebo notícias vindas

de algum lugar ao norte

o lugar mais frio que conheço

plantas

quase geométricas capazes

de interceder dois polos,

o globo terrestre

manifesto sob as patas

de um urso polar.

Quando ele pisa mais forte,

sinto em meus pés

o mundo rachando

sem qualquer aviso

ou sobreaviso de embarcação

as sombras do relento

o navio atrás das baleias.

Barulho noturno e oceânico,

à deriva indo buscar

mais longe onde sobreviver

e concluir:

sou como o urso

quase naufragando

na encosta desaparecendo

entre as trevas do golfo, bem devagar.


Sobre cães e homens


André Luis M. Galvão


Os cães estão na rua:

pretos, brancos, amarelos, tigrados...

Criam suas turmas, e algumas vezes

sobrevivem à rua

Os cães não são iguais aos homens:

os cães têm raça

e isso representa a diferença

entre um lar e a rua

Os cães não são iguais aos homens:

os cães amam os homens,

os homens não amam os cães.

Os homens amam?

Os cães aglomeram as ruas

e brigam por território

ou por causa de um cio ensandecido

que inebria seus sentidos


Os homens aglomeram as ruas

e brigam por dinheiro

ou para impor suas vontades,

mesmo que seus iguais morram

Os cães não são iguais aos homens:

nas ruas, ou sob o abrigo de um lar

os cães são autênticos e generosos,

devolvem mais do que recebem

Os cães não são iguais aos homens:

sem ambição ou mesquinhez,

servem aos homens, são fiéis

mas nem sempre são retribuídos

Os cães têm muito a ensinar,

mas os homens quase nunca

estão dispostos a aprender

as suas valiosas lições.


Cavalo


Andressa Monteiro                             

Cavalo na natureza, tela de Franz Marc



                    

me procura lentamente

quando eu estiver longe da trama       

de pérolas de seus pés

canta a minha perda

caso não me aches em seus

ermos enredos desfeitos

e cuide para que eu não possa

escutar seus gritos de cólera

se a pedido seu um deus qualquer

se negue a coletar os olhos

de um cavalo em troca dos meus

no equinócio quando os montes



Andityas Soares de Moura


anunciam o ardor leve

e calmo

dum paço distante

faca

prata de orvalho

dentro do matagal

cavalos beijam-se

o negro então

torna tudo muito

quente e

oleoso


Estudo 92


Antonio Brasileiro


Todo o recôndito, enfim, nu, se mostrava

e seis touros de raiva e suas douradas patas e os cornos: aço

rasgando o tempo

eram como se a face que guardáramos

se desse, de repente, à mostra - era

como se de repente nos revelássemos.

Todo o recôndito, enfim, nu se mostrando

e seis touros de raiva e suas patas

douradas e os cornos: aço

rompendo o tempo

eram como se a face que guardávamos

mostrasse subitamente a Face - era

como se de repente não nos mostrássemos!

Leda e o Cisne, 1598-1599. Pintura do alemão Peter Paul Rubens


Cisne


Antonio Carlos Secchin

À memória de Cruz e Sousa


Vagueia, ondula, incontrolado e belo,

um cisne insone em solitário canto.

Caminha à margem com a plumagem negra,  

em meio a um bando de pombas atônitas.

Encontra um outro, de alvacentas plumas,

um ser sagrado no monte Parnaso,

e enquanto o branco vai vencendo a bruma

ele naufraga, bêbado de espaço.

Em vão indaga, o olhar emparedado

na vertigem de luz que o sol encerra:

“Se em torno tudo é treva, tudo é nada,

como sonhar azul em outra esfera?”

Negro cisne sangrando em frente a um poço.

Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto.


Liturgia da asa


Ariadne Oliveira


Os urubus traçam o inefável

em círculos azuis

E levam os mortos até o céu

dentro dos intestinos

que nem Deus


O amigo do homem


Assis Lima


Passeando no parque,

convicto em seu carrinho de bebê,

o lindo cachorrinho parecia gente:

não cabia em si de contente.

Para alcançar a humanidade

e ingressar nas hostes de Caim,

o que lhe faltaria?

Parar de latir e passar ao latim.


Baleia albina


Astrid Cabral


Pelo úmido azul

a baleia albina baila

e assombra

a sala em penumbra

barbatanas rêmiges

a massagear

volumosa massa d’água

o trêmulo transparente

corpo marinho...

Marítima mamífera

a espraiar

a cútis de elanca

Enquanto as gordas vastas ancas

nadam dançam

se lançam

pelos pastos salgados

de algas e sargaços...

Será menina

a baleia albina?

Será adulta

a náufraga lua animal?

Ou centenária

a submarina cetácea nau?

Senhora dona do aquático sítio

supondo-se

solitária soberana

desfila tranquila na líquida passarela

e revela

coreografia de estrela

e solfeja

cantiga de amor arquiantiga

e corteja

sem saber-se a prima-dona

de um mega espetáculo

sem pressentir

a intimidade exposta

à ribalta de mil olhos

pelo globo em volta...

Como o mar tão vasto

cabe entre sofás?

como nos toca o mar

se a pele não nos molha?

À noite os gatos são pardos

À noite somos jonas e pinóquios

acomodados na barriga da sala

essa estranha baleia

cujas paredes entranhas

o oceano invade

e lambe até tarde...

Somos então outra casta de peixes

pescados nas malhas

de eletrônica rede.


O amor é uma barata


Bartira Dias


O amor é uma sobra

que perto dos escombros

se move

com o afastar das coisas

ao vento que o leva

se amontoa em tantos outros intentos

e se subtrai em meio à gula das aranhas

no seu trabalho árduo

de construir suas casas                 

Barata, ícone de novela de Franz Kafka

e mantê-lo

o amor se arrasta e voa

e quando denso

vira chuva

carrega mares

destrói templos

amor não é de gente

é poeira solta

atrás da porta

que o humano varre

pra limpar seu ambiente

por que o amor é sujo

e não cabe

na zona limitada

deste mundo.


Dois cães


Bruna Silva


No mais sujo beco

da mais vil das ruas,

um cão sem dono late.

Late e me persegue.

Encurralado e entregue,

não resisto.

E ele, como se soubesse,

cala e segue. É isto!


Ave em quantidade


Caio Graco


a cisma toca no caroço

inigualável do olho

como estreito bico

crescendo a saídas

cisma de assomar carne

ao deserto do dente

no globo que o galo

coça com esporão

no globo em que o galo

(poeta-pavão) choca

a inascença do ovo

contra o cio da barata

do ovário sem

de ave com casca


Borboletas baianas


Carlos Barbosa


tomo conhecimento das borboletas baianas,

não das que vejo nos jardins,

mas daquelas que voejam em casamentos

nossas borboletas fazem sucesso

em casórios Brasil afora

viajam de avião,

em caixinhas com furos para ventilação

as borboletas são exigência de noivos românticos:

querem com elas embelezar

suas histórias de amor

mas são caras nossas borboletas,

muito caras

precisam ser contadas

para o devido pagamento

e para tanto,

colocam as caixas por um tempinho em geladeiras:

é que assim as borboletas desmaiam

e é possível então fazer a contagem

por fim, as caixas são levadas ao pé do altar

e lá aguardam pelo grande momento,

as sobreviventes

após o beijo do novo casal,

as borboletas são soltas

mas estão fragilizadas, tontas, combalidas

então o pessoal dá o último toque ao show:

batem nas caixas para espantar as borboletas

que se projetam no ar

em arquejo final de vida,

para morrer em seguida em pleno voo

ou onde quer que pousem,

depois de obterem o aplauso da plateia

e ares de extremo contentamento

dos nubentes,

aquele batalhão de borboletas baianas

borboletas que viajaram de avião

e desmaiaram no gelo

em suas curtas vidas de tortura e horror

para beleza e glória do amor


Lagartixa


Carlos Felipe Moisés

para Margarida


O peito é de vidro.

Os olhos, porcelana

delicada e astuta.

Da língua

escorre

o néctar sutil.

As patas são de estanho,

mas sabem se mover

imóveis: mal flutuam.

O ventre é quase nada,

pura transparência

onde se escondem

o dorso e seus andaimes.

Não tem entranhas.

A pele

de tão fina

já não é:

limita

semovente

o nada de fora

e o quase nada

de dentro.

O peito é de vidro

mas às vezes se desmancha

em pétalas.

Dentro

pulsa um coração

que imobiliza

tudo em torno.

O rabo, sim,

é feito de algo

insuspeitado:

nuvem

algas

milhares de roldanas

e desejos

enrodilhados na engrenagem

que espaneja o chão

e foge

para o céu aberto.


A morte do besouro


Carlos Henrique Costa


Ao pé do abajur,

a morte do besouro é fato esquecido.

Ninguém na sala é capaz de lembrar

há quanto tempo ele jaz próximo ao cinzeiro.

Também não lembro

há quantos dias o vejo figurativo,

incorporado, agora, à natureza mineral do destino.

Apenas lembro, cada vez que passo por ali,

que um dia serei besouro

e, de mim mesmo, nem eu darei conta.


Galo


Carlos Machado


O galo

em seu instante de besta.

Quando o instinto

fera infalível

é maior que o fogacho

da crista

ou a aresta do canto.

Quando o galo

ou a força

a cavalgá-lo tem

o bote da serpente

a senha do lobo

o estro desembestado.

Quando o galo

é monumento

irisado de nervos

regalo puro dos genes

soldado cego

da natureza.

O galo

em seu instante de falo.


Visita Andorinha


Carolina Brito


Andorinha, tu vieste me ver

e disseste tão belas canções

em gorjeios que me calam

e me fazem condoer

Andorinha, estou sem braços

muito menos, asas de ave

no espaço em que me movo

não se contempla a calma

Caminho habitando

um respiro profundo

quisera, Andorinha,

encher de ar limpo

o peito e sossegar

Andorinha, leva-me a conhecer

aquelas árvores ali?

ficar um dia inteiro perto de ti

e viria a esquecer

de qualquer dor que me consome

Porque, Andorinha,

tu e Deus têm o mesmo nome


Formigas


Cecília Furquim


não sei como começou

não sei ao certo

as formiguinhas pequenas

que rondavam a cozinha

o açúcar, o mel

escondiam-se nos vãos da construção

e fugiam diante da aproximação humana

não mais as vejo

as que tomam o meu lar agora

são maiores, vermelhonas

e não buscam só comida

tomam todos os cômodos da casa

inclusive minha cama

andam em cima de minhas mãos

pés, pernas e braços

sem a menor cerimônia

e como não picam

desisti de afastá-las do caminho

deixo-as subindo e descendo do corpo

fazendo suas rotas

numa convivência insólita

me vejo inclusive tomando todo o cuidado

o cuidado que elas não tomam

para não esmagar, bater, assustar

como se fossem elas a me ceder

a tolerância do seu

contato

me pergunto se um dia

elas podem invadir

meus espaços internos

boca, nariz, boceta

ou se quando me distraio

é de lá que saem


Gaivota


Cecília Lara


aprendi com Prado a reservar uma parte do meu dia

[para chorar.

há pouco o pranto foi tão intenso

que inundou minha pequena varanda.

estava chovendo muito, mas insisto

que a água na varanda era salgada, portanto,

de pranto, e não de chuva.

fui tirar a água com um balde

e estava gostando de ficar descalça

com água pelas canelas

quando inesperadamente senti o cheiro

da casa da minha vó.

imaginei que ela estivesse comigo.

por algum motivo saíra de seu sono de raízes

e achara importante me visitar.

perguntei: veio pra ajudar ou pra julgar?

ela disse: ajudar. vim te contar um segredo.

pois diga.

você não é uma mulher. você é uma gaivota.

e acariciou minhas penas, e alisou meu bico fino.


Os cachorros da Rua da Barca


Celso de Alencar


Eram dois.

Pretos como os felinos pretos.

Surgiram como surgem

os ventos e as tempestades.

Pela manhã reluziam seus pelos

quando apontava o sol

abundante e fecundado.

Eram dois cachorros pretos, puros,

com porte de elefante e pescoço de girafa.

Eram os dois únicos da minha rua

e os olhava como aos grandes animais europeus

e os lambia como aos cachorros indianos

que saíam de campânulas encantadas.

Dóceis como as borboletas de três cores,

traziam dentro de seus olhos pequenos lírios

que desciam, ornamentando suas cabeças cintiladas.

Hoje os vejo como fantasmas.

À tarde, ao caminhar pela minha rua,

vejo com exatidão,

duas sombras pretas, floridas,

crestando, dentro de mim, a minha garganta.


Insecta


Cida Meira


Voam mesmo segmentadas

espiral voo rasante

vespas abelhas formigas

doam seu mel abundante.

Beleza e variedade

nas magníficas libélulas

mariposas borboletas

cores e complexidade.

Para um perfeito equilíbrio

são vitais moscas baratas

mas nas joaninhas múltiplas

a graça é compensada.

Estas cigarras longevas

na profundeza da terra

no esfregar das asas música

toda a vida é uma espera.


De perfeita camuflagem

as noturnas esperanças

no inverno deixam seus filhos

um verão sua passagem.

São todas belas insectas

num ciclo de servidão

atravessam solitárias

momentos de escuridão.

Recolhe-se feia lagarta

flexível se fortalece

singular benigna rara

para ressurgir em breve.


Parda, preta, pintada


Claudia Roquette-Pinto


mecê pensa que ela é muitas, ela tá

virando outras

Guimarães Rosa


fala do nada com isso:

o coisa nenhuma

ronco no oco do

bicho choque que

se transmite se

a mão (em sonho ou viso

de intenção) caminha

do fio-veloso-das-costas

ao mastro do rabo

em riste

fala que fala consigo

à roda

iauaretê, meu tio? não-nunca

que delírio se instrui no

lume do corisco

pintada ei palavra vis


lumbre na greda

e o rastro: areia

que desaba

ao peso, sempre,

das patas


Caranguejo


Claudio Daniel


Aquática paisagem, faixas de areia e uma sequência de morros,

horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e

mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma

cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune


com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalíp-

ticas. Há um furacão nas ilhas Fidji. Esferas planas surgem


no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento

aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada

que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar,

nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano

dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma


linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos as-

tros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos. Tudo


isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como

algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu


só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha cara-

paça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da


dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste

enigma, a contradição de um crustáceo.


Agouros


Cleberton Santos


guardo no abismo da palavra

silêncios vomitados por pássaros cativos

os mesmos pássaros outrora livres do rancor

agora tomados de revolta

grávidos de agouros


Três segundos


Cristiane Torres


Mais um dia insosso

Fiquei a olhar pela janela e aguardar por um pouco

[de aventura

Uma gota que fosse

Ela não veio, nem gota, nem aventura, nem floreio

Só uns pensamentos negativos sobre mim e meia

[dúzia de pessoas

Uma mente infértil, não pode florescer.

Mas num momento, de súbito

Parou na altura dos meus olhos

Com despudor e desenvoltura

Um azulão dos beija-flores.

Olhou-me nos olhos por três segundos e se foi

Nunca mais voltou.


Sonho Alado


Daniel Borges


na infância

criei um cavalo

que trotava

sem nome

pelos campos

da imaginação

na hora de dormir

com medo de apagar a luz

ele vinha manso

e levava

um por um

meus medos de criança

puxados na carroça

hoje

quando chego em casa

assustado

sóbrio demais

fecho os olhos

e tateio a memória

em busca de vestígios:

não sei onde o deixei

(essa é a verdade)

ou

não sei onde fui deixado

(essa também

é a verdade)

morreu

muito jovem

pobre cavalinho

relinchando

pela abóbada celeste

e fez de mim

um adulto

que tranca as portas

escuta cascos

e dorme sempre

de luzes acesas.


Leão


Deborah Brennand


Rasgando a escuridão, entre nuvens selvagens,

a fera surge faiscando o luminoso pelo

e com patas de fogo fere a sombra

desafiando as flechas de ventos caçadores.

Por mais que asas levem a vida

em noturnos voos inalcançáveis

o lampejar de seus olhos rubros

audaciosos nunca assustarão o rei.

Estendido, preguiçoso no espaço,

nem da armadilha do sonho será cativo

este animal que vence as léguas e o sol

saciado de comer o coração do tempo.


Escoiceados


Donizete Galvão


Meu pai e eu

nunca subimos

num alazão

que galopasse

ao vento.

Tínhamos

um burro

cinza malhado:

o Ligeiro.

Foi apanhado

de um conhecido

por ninharia.

Chegou com fama

de sistemático,

cheio de refugos.

De trote tão curto

que dava dor

nas costelas.

De certa vez,

caímos do burro.


Meu pai e eu.

Eu e meu pai.

Embolados.

Joelhos esfolados

no pedregulho.

Levamos

bons coices.

Meu pai e eu.

Os dois

nunca subimos

na vida.


Elegia Dos Golfinhos


Dora Ferreira da Silva


Viu (porque só ver podia)

sem interferir, eles feriam

o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada

protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado

para as latarias de consumo. Tudo servia

aos velhacos: matemática, um navio branco

— noivo da Morte —, redes atiradas

em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.

Tiros ecoavam no ar, encapelando

a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.

Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno,

acorram nereidas Anfitrite em lágrimas com

seus cavalos marinhos em torno das malévolas

mandalas

de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas

formas desfeitas, não vês que o rei Midas

tudo transforma agora no ouro do negócio?

Os golfinhos tranquilos começam a morder.


Ah, cascata iridescente no limiar da morte

em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,

o usurpador, o peixe voltado para a esquerda,

involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças

e corações! Vociferem as pitonisas

de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!

São golfinhos os novos educadores

com sua graça natural, com sua dança

que a morte não detém. Eles propõem MUSICA.


Outro Ser


Edgard Senaha


O “o” do olho

O olho do furacão

Comendo espaços

Espaventando o chão.

No espaço vento

Do turbilhão

Sendo fome e fúria

Eco grito eco.

Mil escamas

Se desdobrando

Em pó, poeiras,

Eras e etcéteras.

O centro do fogo

Nomeando sua região

De rastros sem nome:

Dragão.


Onça pintada


Edir Pina de Barros


Sagaz caminha lenta e poderosa,

debaixo das piúvas enfloradas,

na mansidão das ternas madrugadas,

deixando a bicharada em polvorosa.

E assim se vai atenta, firme e airosa,

na densa mata que, beirando aguadas,

encobre o chão com sombras bem rendadas,

pisando-o devagar, demais manhosa.

Fareja a tenra caça, estanca o passo,

olhar atento, músculos de aço,

prepara o abraço, afia unhas, dentes.

Com suas garras fortes, inclementes,

silente vai, caminha, avança e para,

apresa, de repente, a capivara.


Um gato


Edmar Guimarães


As vidas medram

dentro do gato.

Gordo não sobe

na sombra do muro.

Digere todas as presas

definitivas.

No corpo estofado,

dorme fundo.

Afunda-se nos ossos.

Inútil afagá-lo

sobre o peito.

A morte refuta

os afetos da vida.


Breve catálogo das abelhas brasileiras


Edson Amaro de Souza


I

Pequena zebra dourada,

Nossa mandaçaia voa.

Quem a vê na flor pousada

Aguarda colheita boa.

II

Quem conhece a jataí

Não confunde co’ outra abelha:

A mais mansa por aqui

Qual pequena e nua ovelha.

III

Uma uruçu amarela

Um girassol poliniza:

Na moldura da janela

O quadro se volatiza.


A ave e a calma


Eduardo Brito


A calma é uma ave que passa e vem, pousa e repousa.

Mas aqui não há mais área para que pousos se deem.

A ave não é calma: precisa comer e beber água,

e evitar qualquer ser que lhe faça presa.

A ave é uma calma invertida:

sonho de paz no coração das demandas.

A ave não quer nenhuma lógica (ou é a rainha delas?):

nidifica, voa, pousa – figuração da vida em si mesma.

Em menos de moléculas do cronograma do dia

ela reina absoluta numa paz conquistada.

Paz repousada: quando depois do voo se finaliza.

Quando encontra uma brecha nas cerdas da coroa

[em que se deita.


É aquela paz mesma, microfínea, que se traduz

[em calma

e que se traduziria em nós se soubéssemos pousá-la.


Mas não há mais área nossa para que pousos se deem,

ainda que a calma exista e seja uma ave que vem,

[pousa e repousa.


Cantam pássaros nos olhos


Elson Froes


I

Cantam pássaros nos olhos

flaps nos giros ritmados

enquanto tecem estrelas

trêmulas iridescendo no ar

Cantam pássaros nos olhos

e a todo canto um sol reluz

ramagens no bico do futuro

dourado riscando os olhos

Num rasante rotatório

ninho do futuro a caminho

de seu voo circular

plumas fulguram o rastro

O canto de pássaro em sol

plumas cantam reluzentes

dourando voo no espaço

plumas relâmpagos ecoam

II

Ex-pássaro pluma e olhos

só os voos do passado

o espaço se curva sem asas

o sol não brilha mais

suas penas não douram

sobre o círculo azul

leves os galhos das garras

sem ninhos nem bicos

nas frutas


Camanáu8


Elizabeth Abreu Caldeira Brito


Uma bala,

um casaco de peles.

Um doce,

uma vestimenta.

Uma bala

um casaco de peles,

soo9

ao chão.

Derme aconchega.

Exterminação...


8 Do tupi: caça

9 Do tupi: animal, bicho


Paisagem


Eunice Arruda


Helicópteros

sobrevoam

os assassinos do dia

Pombas

pesadas de símbolo

tentam voar


O avesso do espelho


Fábio Júlio


de um lado o lobo refletido no espelho.

do outro o rebanho de espectros

[foi dele que lhe tirei]

presas nas paredes empoeiradas,

as sombras.

há mil espelhos na casa, mas em nenhum vejo seu rosto.

esse objeto que encobriu as teias do destino

partiu as memórias de sua juventude e suas virtudes

[em mil pedaços.

não mais o vejo.

dezembro passado: um floco de neve cai em seu

[umbigo e nocrucifixo impostado

[sobre a penteadeira.

o lobo, calmo, agora observa por detrás dos

[galhos ressequidos

o mancebo borrifando um perfume doce lançando-o

contra o espelho.

o rebanho mergulha em cada gota adocicada que

[se espalhou pelo chão.

nessa fragrância que se forma um rio em que nadam

[contra a correnteza agora só há rachaduras:

como o gelo trincado, como uma casa a ruir.

nus, alma fria, água gélida.

aquela face juvenil me olha, mas nela não há olhos,

somente o lobo que sereno ri.

na vitrola um mancebo canta um rito folclórico,

em sua face havia uma boca vermelha de luxúria,

como uma maçã cortada por um punhal que sangra.

o mancebo rola sobre a neve coberta por

[cacos luminosos

o rebanho rola opaco e pálido sobre sal, cravo,

[pimenta e pétalas de flores ressequidas.

e é nesse instante em que ocorre o sacrifício

[e o lobo alcança o seu trunfo.


A solidão dos cães


Fernando Campos


A solidão dos cães é sem preceitos.

Não vem de águas ou por

melismas.

A solidão dos cães decresce com a lua.

A solidão dos cães se acrescenta à lua.

A solidão dos cães vai direto ao ponto,

a solidão.

A solidão dos cães dispensa

qualquer volta,

qualquer curva,

preitos.

Quando pensamos que não,

lá estão eles,

seus olhos turvos.

Mantêm certa distância,

por receio.


A solidão dos cães se confunde com nossos próprios dias

— nem severa

nem cúmplice.

A solidão dos cães.


Leão


Filipe Artur Queiroz


O bicho que como o filhote

Não é fera

É homem.


Aquário


Flávia Savary


Janela tonta, inválida,

Afogada entre algas

De plástico.

Janela de água,

Janela de nada...

Janela de tédio

Do peixe no aquário,

Presa de meninos

Presos em prédios.


A cabra


Florisvaldo Mattos


Talvez um lírio. Máquina de alvura

sonora ao sopro neutro dos olvidos.

Perco-te. Cabra que és já me tortura

guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.


Máquina e jarro. Luar contraditório

sobre lajedo o casco azul polindo,

dominas suave clima em promontório;

cabra: o capim ao sonho preferindo.


Sulca-me perdurando nos ouvidos,

laborado em marfim – luz e presença

de reinos pastoris antes servidos –


teu pelo, residência da ternura,

onde fulguras na manhã suspensa:

flor animal, sonora arquitetura.


Barroco


Francisco Perna Filho


O touro

invade a noite.

Firme, fixo,

arrastando os cascos,

na maciez das folhas.

Seus passos,

prolongando as sombras,

seguem o instinto,

traçam o destino.


Calada,

a flor intata espera,

do outro lado da noite,

os seus fantasmas,

a sua fera,

não vê saída.


De olhos rotundos

o animal avança,

não se comisera,

é fera:

cisca,

funga,

urra,

erra.

Eros

no labirinto.


Dois cavalos


Gilberto Tadeu Nable


Existem dois cavalos, o estético e o político, e

que o romancista hispano-americano deve montar

em ambos ao mesmo tempo, ou ainda que talvez

esses cavalos sejam um só e o mesmo, porque toda

obra literária fiel a suas premissas e lograda em sua

realização, em sua expressão, tem um significado

social.


Carlos Fuentes - Anais do 1o e 2o Simpó-

sios de Literatura Comparada. Belo Horizonte:

UFMG, 1987.

1

Para ser um poeta latino-americano

é preciso saber montar em dois cavalos,

conforme o que nos circos se apregoa:

dois cavalos, mas de uma só vez,

um pé no estribo de um, e outro pé,

em pelo, firme, no lombo do outro.


2

Se montado apenas no cavalo estético,

é bem menor o risco de cair da sela.

Um cavalo arriado e que tem rédea,

animal de marcha que gosta de bridão,

penachos, antolhos, loro e barrigueira.

E nem dá coice, tombo ou tropeção.


3

O cavalo político é animal coiceiro,

não aceita arreio, cisma de empinar,

destemperado, refuga e corcoveia.

É um corcel da cabeça empinada,

pelagem, orelha e a crina eriçada,

amigo encantado do galope ligeiro.


4

O poeta latino-americano deve

saber montar nesses dois cavalos,

um bem armado e o outro no pelo,

meio cavalo de Troia, meio unicórnio.

E não pode ficar tão longe do seu povo:

jóquei de clube, mas peão de auditório.


Fio de luz


Hellington Vieira


amor

de andorinha

está sempre por um fio

de luz


Uma noite, uma gata


Henrique Chaudon


Ela está agora em meu colo, enrodilhada, e serenamen-

te ressona confiante. Para ela, o mundo lá fora não existe.


Apenas ela e eu, tarde da noite.

Passo a mão em sua cabeça, desço ao pescoço, ao dorso,

até ao fim, que se encontra com o início, de onde recomeço.


Agora lhe afago o queixo, onde sinto todo o seu con-

tentamento. Olhos cerrados, ela se entrega totalmente.


É assim quase todas as noites, enquanto diante do mo-

nitor de led vou assistindo ao mundo lá fora, distante, como


a um filme distópico, bizarro e cruel. Facilmente passo a outro

filme onde vejo as belezas e maravilhas desse mesmo mundo,

tão contraditório.

Agora saltou de meu colo e me pede água. Levanto-me


da cadeira, vou ao banheiro, abro a torneira e ela bebe na con-

cha de minha mão. Sinto-me, a um tempo, senhor e vassalo.


Não poucas vezes reflito sobre a nossa relação. Cons-

truo analogias, humanizo essa proximidade, busco saber


quem, dos que já se foram, está aqui hoje comigo, neste corpi-

nho que me aquece as pernas. Mas não sou budista, não sei se

creio em metempsicose.


Ela cobriu o focinho com a pata esquerda. Faz um frio

leve e saudável, a lua já vai minguando, amanhã será um novo

dia. De minha janela verei o dia renascer, ouvindo galos, bem-

-te-vis e os papagaios estridentes.

As novas folhas do ipê já brotam, o sol aparece a cada

dia um pouco mais à direita, e mais cedo. Começam os cantos

das sabiás.

Antes que esqueça: consegui ver a conjunção da Lua

com Júpiter e Saturno por três noites.

E ela dorme, apenas dorme.

A eternidade é uma gata adormecida.


O voo do carcará


Hernane Borges de Barros Pereira


A luz que me ardia

permitiu-me vê-lo planar

sombrio

sereno

pairando

olhando

mergulhando

no nada.


Morreu Filipa de Lencastre


Horácio Costa


Não, não a rainha, ou pelo menos

não aquela rainha que todo mundo conhece,

mas a do-lar, a deste lar,

a Filipa, minha querida chow-chow,

e se foi assim, não mais que de repente.

O cordão da sua guia extensível arrebentou

quando ela corria como um bólido

para ladrar contra o seu inimigo no 1,

o golden retriever Zé Carlos, que mora

rotundamente na torre ao lado.

Grande celeuma canina mas ninguém atacou

ninguém, tudo só latidos escandalosos e

comme d’habitude, seguimos em frente.

Na pracinha onde todas as noites eles

dão voltas antes de dormir,

aqui dentro deste condomínio,

ouço um ruído e alguns gemidos

às minhas costas e corro à Filipa caída.

A cena não tardou mais do que quinze

segundos de pura impotência e

logo tinha ela já expirado.

Trato de reanimá-la mas

a grande língua roxa que saía da boca

e o olhar baço, falto de qualquer

contato visual, me confirmam

que a nossa companheira da alma,

a Filipa de Lencastre, já mais

lá não estava. Na manhã seguinte

levo ao veterinário o corpo

para que seja preservado em ambiente

refrigerado e peço uma autópsia:

demorará cerca de 60 dias.

Este não é um poema sobre esses dois meses

que virão. Três dias depois, a morte já impôs

o seu calendário de morte. Já chorei e

contei para o Francisco e a alguns amigos

o que aconteceu, e deles recebi apoio.

O meu tempo humano, com bancos,

efemérides, jornal, está rodando

para sua certeira consumição.

O esquecimento já está competindo

com a ceifeira e tem a certeza de que

a médio prazo dela ganhará. Esta,

paciente, permite-lhe o exercício

de sua certeira ilusão.

Nos próximos dois meses, talvez antes

de que a causa mortis venha a ser

estabelecida, o esquecimento, teimoso,

debalde flexionará seus músculos.


Este não é um poema sobre a luta

entre tais contendores clássicos

na indócil arena da minha psique.

Nem eu, nem eles, podemos esperar

variação nenhuma memorável

e sequer digna de um poema,

no episódio, triste por certo,

da surpreendente morte da Filipa.

Este é um poema sobre o Achado

de Assis, o companheiro mestiço

da fulva chow-chow racée.

Eu vivo no tempo e pratico a memória,

assim como o esquecimento sua sina.

O Achado, não.

O tempo dos cães é sem tempo,

o que chamamos tempo.

O Achado não se convenceu

da morte de sua mestra, cadela-

alfa, amiga de correrias matinais

e dona da rotina de ambos,

a quem ele sempre deixava

comer primeiro, beber primeiro,

agir antes dele, que se submetia

de bom grado ao pacto que fizeram

quando chegou, como garantia

de que a ordem entre ambos era

aquela, e natural, e harmônica.

Não tocou bebida ou comida

o aprendiz viúvo, por dois dias. Cada vez

que saio com ele do apartamento

esquadrinha todas as plantas e pedras

do caminho: pelo olfato procura Filipa.

Ontem e hoje correu até o ponto

em que ela caiu e morreu e voltas

e voltas deu no espaço

cheirando cada milímetro.

Quando o solto da guia para correr,

pára a cada 30, 50 metros e olha

para trás, com o corpo e particularmente

as orelhas alertas. Ela virá? Se esconde

a minha Filipa? Logo me interroga

com os olhos e lhe repito a terrível nova

que não decifra.

No apartamento, não me faz companhia.

Hoje bebeu água, há pouco. Quase três dias

a secas. Não uiva, não dorme.

Afinados estivemos nestas últimas

três noites insones.

Mas a prova de que o seu tempo

e o meu diferem é que escrevo

sobre o jogo de cartas marcadas

entre o esquecimento e a morte

e sei muito bem que desta a vitória final

é inevitável e, pois, benfazeja.

Enquanto escrevo aqui está Achado

a três metros de mim, deitado

precisamente no lugar da Filipa,

onde ela se colocava durante os meses

de calor nos seus sete e meio anos de vida:

na frente do ventilador que por ela girava

o dia inteiro, e mesmo a inteira noite

para que se sentisse mais confortável

debaixo da camada de pelos

que caracterizam sua raça.

Achado nunca ocupou esse lugar.

Era o da Filipa.

Não mais.

Agora ali ele deita, ao pé do ventilador

desligado.

Osasco, 29 VII 2020


As asas do colibri arrastam o poente


Hudson Santos


As asas do colibri arrastam o poente

até as águas noturnas

do tempo

há uma galáxia de coisas perdidas

no sul do seu rosto

na arquitetura fluvial do seu corpo

há um nome escrito na água

o colibri é uma ave que fugiu do céu

e pousou apenas em flores sem nome

antes do princípio

o colibri morre no voo

depois de velejar em torno de uma rosa


Uma Abelha ao Sol


Idelma Ribeiro Faria


Uma Abelha ao Sol

Do alvorecer ao anoitecer

Com o Sol a pino

de flor em flor, sem outro norte

se entrega a abelha a seu trabalho

que não tem fim.

E assim prossegue até a morte.

Não pelo mel, pela colmeia

Ou pelo amor a sua rainha

Ou a seu labor.

Mas porque este é o seu destino.


Romaria


Iderval Miranda


O leão de Canindé acorda

como um passarinho calmo e triste

e fixa com seus grandes olhos

a alegria das pedras que se encontram.

Lá fora,

a vida peida e se abotoa.


A náusea e o vômito


Idmar Boaventura


A náusea:

porcos deglutindo deuses

numa terça-feira gorda.

O vômito:

porcos e deuses ganindo

na quarta-feira de cinzas.


Abismo


Inês Ferreira da Silva Bianchi


Se não amanhecer pássaros

abrir janelas para nuvens

dançar noturnas constelações

serei pedra para o poema.

Ele surge quando desapareço

e me devora oceano

num vórtice de inquietudes.


Selvagem


Isa Corgosinho


Que labuta

do cão

para ser gato

do rato para ser cão

e não estar nas garras do gato

Que labuta ser gato

ter sete vidas

invejar o hábito

do tigre que devora

homens e espaços

Que labuta ser cão

que ao homem dedica afagos

sem as garras do tigre

e a desconfiança felina dos gatos

Que labuta ser homem

e cultivar hábitos de rato

rói o pão dos aliados

entrega o cão

à fúria dos tigres

e toma pra si

a ilusão das sete vidas

do gato

rouba a infância

dos homens --

afagos leais do cães --

e a entrega ao holocausto!


Bolo de milho


Isadora Salazar + Thienne Johnson


(Futuro = 1% x 7bilhões – 0.0083 x 7 bilhões – 592024

x 300milhões população afetada)TJ


Sobra o Humano quando todo o mais naufraga: quan-

do a cadela abandonada no meio da pista da BR volta para


casa; quando a cadela abandonada grávida no meio da BR


repleta de carros em alta velocidade volta para casa e é barba-

ramente espancada; quando a cadela abandonada grávida no


meio da BR repleta de carros em alta velocidade volta para

casa, é barbaramente espancada e recolhida por uma vizinha;

quando a cadela fiel e abandonada prenha no meio da pista

da BR repleta de carros em alta velocidade volta para casa e é


barbaramente espancada, recolhida por uma vizinha que de-

nuncia os maus tratos desse animal a um órgão do Estado;


quando a cadela abandonada no meio da BR repleta de carros

em alta velocidade volta para casa, é barbaramente espancada,

recolhida por uma vizinha que denuncia os maus tratos em


um órgão do Estado e o servidor que recebe a denúncia en-

cobre esse delito; quando o servidor encobre o delito de maus


tratos enquanto brada em suas redes sociais “salve as vítimas


do outro lado do mundo”, mas não é capaz de denunciar a

briga do vizinho que espanca barbaramente a namorada no

apartamento do outro lado da rua. A interrupção [fora das

câmeras] das brigas do outro lado da rua não gera likes; o

resgate [off the tape] da cadela espancada e submetida a maus


tratos e abandono não gera cliks; o aborto espontâneo da mu-

lher espancada não gera fluxo; o pão que o imigrante anônimo


não come não gera holofotes; o lábio leporino não operado de


mais uma criança vítima de intoxicação pelo mercúrio derra-

mado nos rios afluentes dos garimpos da Amazônia não gera


engajamento; a vacina que não chegou ao braço de mais uma

vítima indígena ou de trabalho escravo no meio do que um


dia foi uma floresta não gera daguerreótipo ou repercussão na-

cional; os milhares de civis trucidados pelas 59 guerras ativas


estimadas em 2024 cuja cobertura midiática não interessa aos

verdadeiros donos dos carros não gera passeatas de parar as

pistas da BR ou investigação por uso de armas químicas ou

genocídio. Em silêncio, a vizinha do outro lado da rua ganha

na Justiça o direito de ser a tutora da cadela abandonada e lhe

dá o nome de Muria. Em silêncio, sobra o Humano quando

todo o mais naufraga.


Serpentário


Ito Pedragrande


Arrasto-me segurando a mão de Cleópatra.

Vagarosamente vou entre pedras e torrões,

Em nome de Eva, Helena, Maria Bonita e Yoko,

Do Nilo ao Meia Ponte, chicoteando em vaivéns,

Passando por labirintos de ruas com nomes ilegíveis,

Acima das sobras, dos lixos nos quintais do mundo.

Arrasto-me pelos tempos das brumas aniladas.

Arrasto-me fria, deixando peles pelas esquinas,

Sobre moitas espinhosas, asfaltos quentes

E empoeiradas estradas, entre rastros ancestrais.

Arrasto-me ferida sob olhares desconfiados e repulsivos,

Entre faiscados arbustos, chumaços de cabelo, cajados.

Arrasto-me em sono profundo de noites quase eternas.

Por entre múltiplas interjeições, infindáveis palavrões,

Arrasto-me serena, como serenamente nunca me olham.

Arrasto-me nos esgotos da humanidade,

Nas enxurradas da humana idade,

Entre Odisseus e Macunaímas, Sátiros e Curupiras.


Arrasto-me entre gotejares e jorrares, entre a fonte e a seca,

Covas e berçários, entre a fome e o desperdício prossigo.

Meu arrastar dá ordem a desordenados lamentos.

Não me entendem, mas me arrasto e me arrasto...

Fosse eu um pássaro, a gaiola estaria me aguardando.

Fosse eu um peixe, o anzol estaria já iscado.

Fosse eu um homem, só ilusão e desgosto.

Não sou nenhum desses. Sou o que não se percebe.

Fora do meio, longe do miolo, corrompo a seleção natural.

Não preciso de casa, não preciso de emprego,

Não preciso esquecer nem lembrar de nada.

Rir? Também não. Muito menos chorar.

Chorar? Nem mesmo pelo seu coração esnobe,

Um ingrato e perigoso coração

Que por pouco não me envenenou.

Arrasto-me.


Cavalo azul


Ivan Junqueira


E assim de azul vestiram tua imagem,

outrora esboço lento e fatigado,

andrajo dissolvido na paisagem

do tempo, como um gesto abandonado.

Recordo tuas crinas, teu selvagem

perfil rasgando o espaço calcinado,

teus flancos de aleluia, tua linguagem

onírica - monólogo cifrado...

Depois não vi mais nada: em meio à bruma

dos píncaros desfez-se teu clarão.

Às vezes, todavia, quando o grito

de minha infância acorda a escuridão,

ainda ouço teu tropel pelo infinito

- catarse azul, visão, corcel de espuma!


Primeiros raios de liberdade


Izaias Gabriel


Na imensidão da planície verde,

Onde o céu encontra a terra,

Um potro, recém-nascido,

Explora os segredos que a vida encerra.

Seus passos são leves, incertos,

Em pernas que aprendem a dançar,

Os olhos refletem a vastidão,

E a liberdade começa a pulsar.

Cada vento traz uma história,

Cada sombra, um convite a correr,

O mundo é vasto e cheio de promessas,

E ele descobre a alegria de viver.

Corre, potro, nas planícies do sonho,

Sob o sol que abençoa o seu trajeto,

Há um universo nas pastagens,

E o horizonte, seu único teto.


O futuro é uma canção que ecoa,

Em cada galope, em cada salto,

E ele sabe, na essência do momento,

Que a vida é um presente, um asfalto.

Nos olhos do potro, brilho puro,

O reflexo das estrelas em sua jornada,

E a terra, generosa e vasta,

É o palco de sua dança iluminada.


A escalada


João Batista Melo


Por que existimos tão frágeis e efêmeras? Por que sem-

pre em busca de um prazer que mal começa, já se extingue?


Ela se perguntou enquanto escorria dentro da gota de mel,

rumo ao fundo do pote, onde outras formigas já flutuavam

inertes no meio de um lago dourado.


Haicais


Johny Guimarães


têm sido

duros os dias

à espera do cavalo azul


na areia da praia

os olhos do peixe morto

e um silêncio azul


o silêncio da aranha

e o drama da mosca

na trama da teia


Não se deve matar algo tão belo


Jorge Amancio


para Isadora Salazar


borboletas no rio guamá

flertam na mata

do mangal das garças

néctar das flores leoas

doces na boca da amada

lua de mel no telado

brutas lagartas

amanhecem borboletas

dançam à luz da natureza

lua de beleza sob o sol

mulher -búfalo-borboleta

refloresce alvissareira

tão vento, tão raio, tão fogo


dia ditoso, final de tarde

floresta engole a escuridão


A nervura das coisas


José Luís Monteiro


Quando a nervura das coisas

me fala

do teu coração delicado,

olho para os mosquitos

atarefando-se no meu quarto

enquanto a noite

lhes sobra

para tantas viagens.

De vez em quando

a imobilidade destes seres

liberta o muro

da sua brancura

e penso em Fernando Pessoa

visitando descaradamente

a sua alma e o seu corpo, para ir chegar

à língua do cérebro,

até entrar

na vigilância do silêncio

ao sitiar o mundo.


Mirmecologia


Josias Padilha


na calada da noite

formigas laboram distâncias.

riscam linhas de perpétuo movimento.

traços creptantes para ouvido absoluto.

aquele absoluto capaz de alcançar

o estalo de sua própria impossibilidade:

o estalo do improvável silêncio.

.

na noite calada

.

as formigas laboram creptâncias.

concertam na acústica do escuro.

estalidos INsonDÁVEIS:

sonância pulsante que reverbera tudo

o que move


Polifônica alegria


Juliete Oliveira


é da fala das outras que nadam na superfície

[da minha língua

que elaboro o cão raivoso sílaba a sílaba

buscando saída do labirinto enganoso e frio

afundo, na maioria das vezes

submersa enxergo mais

guiando o cadáver em busca de quem sou,

fui, ou serei

sempre uma encruzilhada para depositar as oferendas

na cabeça do santo moinhos e vendavais

na saia da mulher-guia a anágua de cristalina alvura

um rótulo, marcas mapeadas nas linhas quiromantes

dos seres oníricos que me buscam

saltando sobre mim.


O cão e o câncer


Júlio Machado


E contra as verdades de Deus,

o cão comido pelo câncer,

sem mineiros para a crua,

difusa solidariedade.

Vede como prima, vagamundo

no quintal sem ervas,

em ouvir estrelas de murcho brilho,

ou adivinhar, entre pus e urtigas,

antigas violetas (mesmo esterco,

sem dar por isso).

Lázaro ou lunático de evangelho,

não reconhece mais a água,

não teme ao fogo.

Árcade de ovelhas em tosquia,

não sabe quando é noite ou quando é dia.

Esquecido do que fora o céu

e belezas,

esparge inconsciente, entre incertezas,

seu bafio álacre de carne podre

em tons de ocre.

Mas, veja-se: impassível.

Não daria de si

sinal algum de sofrimento,

não fosse a lágrima amarela

que verte se percebe,

contra o esfarelar de sua pele,

a integridade das pedras.

Mas como, em meio à dor,

esquivar-se da matéria?

Ou, sem morfina,

acalentar o espírito?

Sabe: devia morrer,

mas não o morrem.

Há mesmo uma fina crueza

no ato de sobrevivê-lo,

embora não se lhe notem,

mesmo nas unhas em degredo,

sinais de desespero.

Busca apenas, desancado e torto,

em quartos, flancos, frangalhos,

um qualquer restolho

dos olhos, que secaram,

dos dentes, que caíram,

dos pelos, que voaram.


E depois,

um só cancro de orelha e rabo,

esperar que alguém,

por nojo, piedade ou trinta dinheiros,

o enterre ao pé do muro.

Como a cidade mesma,

ao pé do morro.


Gatos veem demais


Júnior Ratts


Sinto que os gatos veem

Demônios em mim

Eles me encaram na rua

Furiosos

E miam alto

E às vezes avançam

E conseguem me arranhar

Eu queria também

Poder enxergar

As entidades que me

Consomem

Mas me acostumei

A ser um bom anfitrião

E quando posso

Sem incomodás-la

Grito e me rasgo

Tal gato comendo gato


Fábula


Juraci Dórea


Homens e porcos

não dormem no mesmo chão.

Os porcos não são humanos.

Os porcos se iludem com bananas,

circo e pão.

Os homens, não.


Seriema


Laércio Majadas


Majestosa rainha

Das penas.

Com suas meias rosáceas,

No seu galope

De ossos...

Rompe o cerrado

Com sua tiara

De fios.


O Tempo E Seus Cascos


Lara de Lemos

Para Laury Maciel


Um cavalo corta o pasto

no verde do descampado

um cavalo corta o vento

na dança dos arvoredos.

Um cavalo corta o corpo

de meus ancestrais perdidos

um cavalo corta o peito

fere o coração ferido.

Um cavalo corta o tempo

no nevoeiro esquecido

um cavalo corta o pasto

e perco gleba e destino.


O peixe


Lenilde Freitas


Nada

o peixe na lua

espelhada na água.

Impele,

leve como num sonho,

o bojo vazio.

Alheio

à coruscante dádiva

— que ele sabe breve —

enxágua seu longo silêncio

no fundo do rio.


Sotão


Liana Timm


um gato no teclado do vizinho espreita

o sol do abandono

ameaça chover!

um mormaço ronrona

no oco da cumieira


Abutre


Lílian Almeida


insana

procuro o judas

o torpe nas minhas carnes.

há de haver um lugar onde ele esteja

e eu o veja nos olhos

– cara a cara.

hei de revirar a pele.

trocar as roupas que visto como máscaras

em busca do abjeto em mim.

não há outra salvação

a minha mesma

frente a frente ao que me mata e apodrece.

e ao encontrá-lo, chorarei a dor última

de ter perdido quem fui para o que nunca serei

de deitar sangue – o meu e o dos meus

no rastro dos meus pés pra nascer lavandas.


chorarei a falta, a imensa falta

de um coração que sinta mais do que saiba

e reconheça o serviço prestado pelo urubu

em dias de olor de lírios.


Cavalo (ou onde nascem as ondas)


Lisley Nogueira


desenfrear-se galope

urgente ímpeto

a ignorar o tempo

esbaldar-se

à melodia da crina

de espécie ora trêmula ora impacto

: o cavalo em extremos

a se apropriar do caminho

como se fosse

-apenas como se fosse-

aliado do horizonte que o molda.


Escudo


Luciana Barreto


Vi em cada um dos teus olhos de gude

o espelho infernal da minha busca

em vão miro a tua órbita esquerda

– translúcida? –

abrigando mil vidros cegos

e azuis

e o escudo escovado de Perseu

Inutilmente perscruto o outro olho

(ainda mais transparente)

e no fundo do fundo do fundo

o vazio do mundo ali estatelado

a me puxar mais e mais e mais

para aqueles ladrilhos intocados

Emerjo

e abro – com força –

todas as minhas pálpebras

tarde demais

: a ave em looping perfura a piscina.


A visita do lobo cinzento


Luciano de Castro


vi que não era bicho daqui

guará, jaguatirica, quati

era um bicho estrangeiro

não era desse mundo de cá

quando vi, estava ele lá

me olhando sereno

um grande lobo cinzento

de grandes olhos amarelos

enorme, imponente, hierático

não sei como entrou no meu quarto

tarde da noite, horas mortas

morte da sorte, horas tortas

o bicho me deixou confuso

não era sonho, era real

ali, parado, do lado da cama

será que ele vai me atacar?

se ele quiser

faz meu corpo em estilhas

os lobos são seres sanguinários

ainda mais os cinzentos


mas esse era tranquilo

não me atacou

não me estilhaçou

olhou-me fixamente

depois deitou-se

aconchegou-se no tapete

e mansamente

adormeceu.


Enigma


Luís Pimentel


Para onde fogem os pássaros

em sua agonia?

Como enfrentam a morte

quando se anuncia?

Será que se escondem,

como os elefantes,

muito além dos montes?

Onde eles se exilam?

Onde se desnudam?

Como se aniquilam?

Que bater de asas

diz que o pássaro em chamas

tem o bico trêmulo?

Como se despena?

Despenca do galho?

Vira luz efêmera?


O pássaro em pânico

não lamenta a sorte,

não celebra a morte,

pois só sabe a vida.

Qual será o canto

de sua despedida?


O perseguido


Luiz Sentinela


Sou perseguido por linhas

e pontes invisíveis

de informações etéreas

carregadas e penetradas de poesia;

como o som está para o ouvido,

como a água está para o corpo,

para a terra e o arco-íris;

sendo portal natural de riquezas,

como o sorriso permanente do golfinho,

como a alegria da minhoca

no escuro molhado da terra,

e o deslizar devagar do caracol,

que leva a casa nas costas.


Último instante


Luiza Mendes Furia


Vi uma abelha agonizar

na mesa sob a palmeira

– território branco

e áspero.

A perna quebrada

o voo impossível

apesar das asas.

O corpo

antes ereto

em delicado

equilíbrio

cada vez mais

curvo,

fechado

em seu casulo.

A morte é redonda.


Pavão


Lupe Contrim


Ritmado andar azul

e calculado

de um solene pavão

— longa cauda em flor,

adorno de linguagem

e proteção.

Num grito gutural,

agudo como soluço do mundo,

o súbito apelo da solidão,

no corpo prolongado

de plumas e surpresas.

Ao ver-se observado

desabrocha em súbito arco-íris,

provando que a beleza

pode ser escudo iluminado

e que a vaidade

lhe confere uma auréola de certeza

na inutilidade.


Dentro da paisagem

cortada de pássaros

um vôo se cala,

enquanto o pavão cintilante,

aberto em primavera,

caminha pela terra um orgulho

sincopado,

sabendo que a natureza

derramara nele

um gesto distraído e delicado,

no instante em que criava o verme

e sonhava a estrela.


Joaninha


Marcela Albanesi Parrado


pintada

vai pra rua

de vermelho

a gordinha

com suas asinhas

de fora

cora a cidade

não esconde a pinta

de mariquita

e pinta pinta pinta

como uma lady


O tigre e a estepe


Marcia Tigani


Vem da estação fria

a grama queimada

em terra estéril

Arrepio na espinha :

grandes olhos

negros como nanquim

vigiam o mundo

sondam seus perigos

sublimam diástoles

Pressentem asteróides

sobre cabeça e torso

e com assombro

olham da planície à diátese

descobrindo a solidão

(só a palavra o acompanha)


As dores estão guardadas

numa caixa de metal

à espera da partida

Morrer tantas e tantas vezes

e retornar à estiagem

como pedra, argila ou totem


Hipocampo


Marco Lucchesi


Vaga

nas solidões

marinhas

mágoa

das estrelas

pudor

das actínias

o sublimado

sonho

onde se salva

na pátria

de crepúsculos

perdidos


O Cão


Maria Carpi


Tive vários cães, mas esse

espera-me, à hora certa,

na saída da escola e carrega

a pasta de cadernos entre

os dentes e espera-me depois,

em incerta hora, para morrer,

inchado entre a alta vegetação

e o terreno de meu assombro,

onde arrasta a ferida deflagrada.

Esse, a segurar a folha que escrevo.


No escuro deste mundo canibal


Mariana Ianelli


Nada sei sobre cachorros

Seus latidos me enervam

Seus excessos eufóricos ou furiosos

Seu faro invasivo

Suas cavalgadas caóticas

Tudo isso me exaspera

E me desgosta como desgostaria

A um gato.

Mas quando meu cachorro desaba com estrondo

Estirando no chão seu porte de corça

Quando vou até ele

E ele me estende as patas

Ofertando seu peito alto

Quando toda a energia excedente do dia

Já foi drenada

E seu corpo é tenro e felpudo

Eu o abraço

Me aninho junto ao seu peito

Aspiro seu odor quente de carne

E ele bufa

Com a força que ainda lhe resta

Ele bufa (de olhos fechados)

Como se escapasse todo no ar

Como se já sonhasse

Ficamos os dois unidos

Rendidos no escuro deste mundo canibal

Aglutinados numa só figura

Que me regozija e o regozija

E esse regozijo (essa figura) é o que de melhor sei

Sobre o amor

Esse amor tanto mais sagrado

Quanto mais animal.


Se eles falassem


Mário Alex Rosa


Se os burros falassem,

o que diriam aos homens?

Se os macacos falassem,

o que diriam aos homens?

Se os cachorros falassem,

o que diriam aos homens?

Se os pássaros falassem,

o que diriam aos homens?

Cuidado com as suas burrices,

responderiam os burros após recusarem tal comparação.

Cuidado com seus pulos,

responderiam os macacos depois de alguns saltos.

Cuidado com os comandos repetitivos,

responderiam os cães ao fingirem de mortos.


Cuidado com as suas gaiolas,

responderiam os pássaros ao voarem.

Entretanto, como Ovídio alertou há séculos:

[“se os bichos falassem, nada diriam.”


Sobre a pedra


Marli Fróes


esverdeado, tons bronze

entre matizes

rupestres

no lajedo

corpo ectotérmico,

entre fuligens

e musgos

mistério invisível

luz que esconde

escuridão que revela

réptil escamado

elegância rastejante

na caatinga

patas sobre a terra

anda sobre águas

conexão com a natureza

convite à voz

do silêncio,

aos sonhos

e sentidos

portal entre mundos

geometria triangular

axé das criaturas

canto das florestas

***

calango tango

eu também quero calanguejar

quem não tem couro duro

não atravessa o rio

pra não se molhar


Natureza morta


Marly de Oliveira


A mesa, a toalha branca,

e sobre a mesa, plácido,

como em puro repouso,

um faisão dourado.

De que aljava, de que arco,

sobre o mar, que tardes,

que navegando céus

azuis de aves e barcos,

de que mãos, de que cega

vontade de ferir

terá partido a seta,

direto ao voo, ao peito,

às plumas frias e altas?

Que cega pontaria

te tombou no horizonte,

como um feixe de luzes

tuas penas brilhantes,

tua mínima vida

colorida e deserta?

Vejo teu corpo, o claro

movimento retido

na pousada asa aberta,

e penso em mim, em ti,

urdo os fios da trama,

e temo a minha seta.


No meio de uma travessia


Mylla Taynah


No meio de uma travessia

O Chapim-real abre o seu canto

Enquanto folhas avermelhadas vão ao chão

E assim, surge um lindo fundo de outono

No meio de uma travessia

O encontro glacial do branco no branco

Onde poucas coisas se encontram

E outras se camuflam como a raposa polar

No meio de uma travessia

Uma renovação na natureza acontece

Entra o azul de sanhaço e de anil na era

E o desabrochar da primavera prevalece

No meio de uma travessia

Aproxima-se o tempo da frutificação

Cores por todos os lados

A festa dos vaga-lumes vai começar


O gavião


Myriam Fraga


O que o sustenta

É o centro,

Onde se apoia o compasso.

Ele mesmo faz a rota

Da órbita

Que não ultrapassa.

Assim o vôo é espiral

Amplíssima e regulada,

Expectante planar tranquilo

Em que vibra uma emboscada.

E para que não se sinta

Ausente,

desvinculado,

Existe um fio estendido

Em seu olhar imantado,

Um fio que o liga à presa

E que, rápido, se enovela

No mergulho vertical

Onde a morte se desdobra

Em grito

Das suas garras.


Haicais


Nara Fontes


mormaço na tarde

quero-quero alerta:

temporal em marcha


na beira do lago

pernilongos esperam

pernas distraídas


vento minuano

faz lobo-guará

voltar para a toca


Haicais


Neurinan Sousa


na pedra do dia

o tijubina fareja

minhas incertezas


o canto do galo

risca a quentura da tarde

um cão se espreguiça


nos olhos do búfalo

o reflexo das acácias

na paz do poente


Viúva-negra


Nívia Maria Vasconcellos


Nociva e voluptuosa seda,

fia a intriga, urde a trama,

emaranha o enredo.

Moira, Parca.

Tece do homem a tragédia,

prende em teias seu destino,

é o texto que não quer ser lido.

Disfarça-se de beleza.

À flor da pele, ameaça a vida:

desgasta o corpo que visita.


Haicais


Noélia Ribeiro


sinal de primavera

canto solo da cigarra

abertura do coral


ventania de inverno

instabilidade no voo

de pelicanos e grous


sob o brilho solar

a libélula parada

com asas invisíveis


O cavalo da romaria


Odylia Almacave


Foi exaurido o cavalo da romaria

& como um graveto:

da ponte o atiraram.

Seu mergulho durou poucos segundos

& quando aterrou com um baque na mata

A fé de nenhum dos fiéis foi abalada.

O cavalo relinchou.

Um relincho tão relâmpago, único

que se hoje eu tivesse apenas três desejos para fazer a

qualquer gênio

Eu gostaria de saber o significado por trás daquele

som.

Talvez o cavalo tenha negado o ocorrido?

Foi um acidente, suas mãos suadas de tanto orar me fizeram

deslizar...

Talvez tenha sido um relincho de raiva?

Que se dane a divindade em seus corpos fracos e preguiçosos,

incapazes da estirada.


Talvez tenha sido o som de barganha?

Por favor, me ajude. Prometo cavalgar com mais agilidade,

puxar com mais força,

esperar pacientemente

pelo oitavo dia. Com

vocês; como vocês.

Talvez tenha sido a tristeza dizendo que assim é

melhor?

Estou exausto. O bem interior destrói a alma,

e a minha, que creem não existir, foi destruída há tempos.

Talvez, porém, tenha sido um relincho de aceitação?

Ficarei bem. Pressinto o descanso que me aguarda nos

Campos Elísios — 

Flórida


Tamanduá


Olga Savary


Cada dia a língua

do desejo reinventa

cupins e formigas.


189

Aurora


Paulo André


A guerra de galos.

E a mancha de sangue no céu


190


Como aquele peixe


Paulo Franchetti


como aquele peixe

que se une à fêmea

e perde depois os olhos

nadadeiras e todo o mais apetrecho

da vida solitária

ligado a ela a ponto

de o coração ser um

e um o movimento e a vontade

assim também eu queria

no calor do teu corpo

como areia na praia

e chuva no mar


191

Maria-farinha


Paulo Marcelino


Maria-farinha

Paulo Marcelino

Tom sobre tom

na praia sílica areia

o bicho pernas desconfia...

Vai de lado, corre ágil, para.

OlhOs

sobre

quadrada cabeça carapaça

periscópios tudo fitam

Tac-Tac

Chispa, passa, para.

Silêncio.

Pinças peixeiras ao alto

talvez guerra...


192

Foge feito raio,

entra em toca,

se enterra.


193

Janela


Rafael SG Santos


Um pássaro peita na janela

Pendura-se se desnorteado.

Depois, recupera-se e volta a voar.

Mas é isto que a vida é:

Peitar em janelas e voltar a voar

Nem que vendavais arrebentem asas.


194

Elefante


Raquel Naveira


Quando brilha a lua nova,

Monto num elefante ajaezado de prata,

Sua cabeça ostenta

Uma pedra vermelha

Que refulge como raio,

Entre as orelhas que abanam

De forma lenta.

Saio pela savana,

No poder,

No controle;

Eu,

Tão pequena,

Sobre seu dorso,

Torno-me gigante.

Ele me leva

A lugares que não se esquece:

Campos de folhas,

Fímbrias de mares,


195

Erguendo a tromba

Em direção às estrelas.

Elefante,

Seu mistério

Faz de mim

Rainha e amante.


196

Gato em Volutas


Renata Pallottini


Chegou-se a mim, com pés forrados de silêncio.

Seu rastro sinuoso marcara-se com plumas.

Ei-lo que roça no ser humano

sua egoísta subserviência.

Recolhe as unhas, como quem guardasse

um íntimo segredo invulnerável.

Ó gato, quanto mais eu te amaria

se me houvessem rasgado tuas unhas

a frágil carne, a de afeição canina!

Afasta-se, seus olhos impossíveis

fitos em alguma outra parte.

Quedo, à distância ignora o tempo morto.

E em mim a essência morta.


197

Preditiva III


Ricardo Thadeu


O elefante, como flato,

fratura nossos sentidos.

Enquanto mito (inventado)

desmente as trilhas

dos matos.

No céu, pesado, levita

flácido

em seu voo invertido.

O elefante, lá do alto,

prediz seu voo impávido

como se caísse

de fato.


198

Aboio


Ricardo Vieira Lima


Mário de Andrade é boi de cambão.

Augusto Frederico Schmidt é um legítimo

[boi de coice. Manuel Bandeira, boi de cambão.

Carlos Drummond de Andrade começou

boi de cambão e acabou boi de coice.

Murilo Mendes tem pedaços de boi de

coice e pedaços de boi de cambão.

Walt Whitman é boi de cambão.

T.S. Eliot é boi de coice.

W.H. Auden, boi de cambão.

Dylan Thomas faz o possível para ser boi de cambão,

mas só consegue ser boi de coice.

Rimbaud é um misto, talvez o mais completo,

de boi de coice e boi de cambão.

Animais de carga e corte à parte,

a poesia é o aboio,

esse canto plangente e canônico.

Mas é também o estouro da boiada.


199

Amor Felino


Rilnete Melo


À meia-noite

a sombra no telhado

vagueia misticamente,

sem deixar rastro,

olhos com o brilho

da lua,

espreitam

pela fresta

da minha janela

e na cama,

levando-me ao céu

o gato com seu feitiço

deixa-me em êxtase

felinamente nua.


200

Dibujo


Roberto Carvalho


touros, touros, touros

todos explodem na ponta de meus dedos

e vão se transformando em nítidas formas

de touros a lápis de ponta fina

de ponta seca num caderno de linhas bem apertadas

como certas vielas da velha Pamplona

uma matrona risonha e vermelha

de braços abertos para acolher suas crias.

os animais em disparada quase todos negros de grandes cor- nos

quase todos negros brilhantes

cujas pontas ora apontam para a terra, ora para o céu

às vezes se entortam para ajustar-se às ruelas tortas

em que explodiram enfurecidos de fome e sede

depois de longo tempo abandonados

em currais.


farda branca quase neve, faixa rubra quase sangue à cintura


201


e no pescoço, a turba ensandecida de homens brancos,

alguns quase louros, muitos quase prata

uns mais ensandecidos à frente, outros tantos, às centenas,

ensandecidos pelas laterais, atiça os animais

espetando-lhes com longa vara de ponta metálica o quadril

as virilhas, suas coxas. quase mil metros de fúria ardem

ao sol de verão ao meio-dia

esticados até à Monumental Plaza de Toros,

incendiando ao fim da jornada vinte mil gargantas

sequiosas de sangue na maior praça de touros do reino de Navarra

erguida à custa da fortuna de homens da casa de misericórdia

em honra de San Fermín

para saudar um mártir

para celebrar um dia santo.

apoplética onda branca sarapintada toma repentinamente de assalto

a arena em delírio. homens esvoaçam pelos ares

para fugir à sanha de animais desembestados

agora então laçados

e novamente encurralados

até que, finda a tarde, são levados ao sacrifício.

com pesada capa rosa vivo e amarelo ouro

o toureiro avalia seu oponente

para desvario das multidões.

quer a ovação, a glória por sua arte de sangrar.


202

envolto agora em leve capa encarnada

à mão uma pequena espada curva

o grande animal à sua frente.

ao dominá-lo completamente, extorquindo-lhe

os restos de altivez

chega então à altura de o matar

de acertar-lhe diretamente o coração com o curto estoque metálico.

sua carcaça jaz, suja e humilhada, entre duas apertadas linhas

do meu pequeno caderno de desenho.


203

Tempo


Roberval Pereyr


Ladra insistentemente

no fundo da noite, um cão.

Ouvi-lo assim dissolve-me

num imenso não.

Mas um não que devora

sob todo sim

toda a vã memória

que floresce em mim.


204


Entendo o urutau


Rodrigo Ortiz Vinholo


O choro noturno da mãe-da-lua

assombra e inspira lá no quintal.

Os olhos grandes, a voz profunda,

faz com que distraído conclua

que é um fantasma, esse urutau.

Mas não há mal na voz, não confunda.

A melancolia está nos ouvidos

de quem ouve o chamado,

e o mal está nos olhos de quem vê.

Talvez por isso que fiquem escondidos,

tal como tronco desfolhado,

disfarçando-se de quem em erro crê.


205

Os peixes


Rodrigo Petronio


A forma-bexiga

Desliza hebdômada

E anônima

Pelos corpos de piche e sal

O rei verde-amarelo

Reina em sua barriga amarelo-verme

Apodrecida e cheia de inseticida

Enquanto o sol come as plantas

As estações e os edifícios

E as carnes dos pobres

Sob os viadutos e os abutres

Anunciam o amanhã em folhas de celofane azul

Os nanopeixes

Em suas maquinações

Em suas magnitudes de anêmona

Disseminam imagens

Pelos intestinos da mente e da cidade

Manchas de amianto e rastros de escorbuto

O grande peixe-navio

Submerso no ventre de Jonas imenso peixe-boi


206

Iridesce nos céus do Brasil

Sigo o fluxo do limo

Desvio dos cadáveres

Resisto à clorofila e às algas do passado

Sim elas querem me esquartejar

Abençoo as ilhas sim as ilhas elas se elevam

Milhares milhares delas polvilham o horizonte

Iluminam meus testículos os micro-peixes

As aranhas e a urina luminosa festeja meu corpo

[dissolvido por enguias

O peixe-rei

Se aproxima retém meus pulmões os alvéolos

[nadadores fluem

Se abrem em uma constelação de plástico

Os detritos verde-amarelos se misturam

[às minhas células

Meu corpo expandido corpo denso viscoso

[corpo vivo e morto

Permeado de peixes e de plantas

Atravessado por líquenes e fungos e plânctons

Entretecido por lumens e fíbulas acende

[e apaga na escuridão da noite

Imensa e oceânica noite da cidade engolida

Pelo atlas oceânico e urgente

Os peixes se desfazem em células

Os peixes se transformam em florestas

Os peixes cospem os detritos finais do Apocalipse

E ressuscitam fluem pelas ruas vazias

Capturam meu corpo em suas estrias de luz

Me erguem em direção ao espaço sem vida e sem nome


207


E eu finalmente salvo em meio aos cacos do cosmos

[em meio aos peixes

Os órgãos esfacelados

Em estrelas em uma cópula divina

Os peixes os peixes ainda posso ouvir seus salmos


208

Cavalo


Rogerio Luz


O cavalo introduz

nas formas naturais uma elegância

semelhante à da luz:

cor da pelagem, ânsia


que o calmo olhar traduz – brilho de infância.


209

Gorila


Ronald Polito


Nunca terei teu pulso, a

exatidão do instante do

soco, da força dos

dedos quando premem,

estrangulam, teus

braços, tua

cintura.

Quando esmurro os músculos dos próprios

peitos, o que faço só

se vencer, é

a ti que vivifico

palidamente,

é tua glória ainda

a causa única pelo

peso de tudo.

Mesmo treinando muito

não posso alcançar

a solenidade

que você transpira

sentado.


210


Qual rato é o rato?


Ronaldo Cagiano


Cantemos o desencontro

a vida errada num país errado

novos ratos mostram a avidez antiga.

Sophya de Mello Breyner Andresen


É um animal

sem outra angústia, senão

a inquisitorial sentença de ser rato.

Atravessando a rua,

chafurdou na lixeira do McDonald’s;

sorrateiro, como água entre pedras,

aninhou-se entre as prateleiras

das Lojas Americanas,

mas outros mamíferos, de sangue azul

e pedigree,

em sua comensalidade financeira,

deixaram a rataria à míngua;


211

sem constrangimento

ou solenidade,

fez o rescaldo do que sobrou

das enchentes

que submergiram a Havan;

numa madrugada qualquer

batizou as latas de cerveja do Carrefour

drenando sua urina

com sub-reptícia leptospirose.

Esse arisco roedor,

que deita fezes aos pés

da estátua do general

e esbulha o celeiro

de gregos & troianos,

mais que toda filosofia ou metafísica,

além das tabacarias e chocolates,

sabe que

o poder

a justiça

a política

e o capital

roubaram-lhe ciência e ideias

sem pagar direitos autorais.

E acima do insalubre subsolo

onde chafurdam, im(p)unes

os seus algozes,


212

com sua infecciosa espoliação,

o mundo – com seus vernizes e flatos –

é o verdadeiro

esgoto,

onde enérgicos parasitas

pululam em

renovado cio.


213


República dos gatos


Rosana Piccolo


À porta da noite, quando a tarde acaba em lombadas,

quando tudo são xícaras e prateleiras – os gatos então,

de todas as telhas ou terreno baldio, gatos pretos,

de todos os braseiros e navio clandestino,

gatos bárbaros (que urinam nas ágoras), gatos brancos,

donde fêmeas ovulam nevascas, gatos mandrakes,

vazando pela eternidade como lanças d’água, a mando

de ninguém mais outros gatos, dão por miar e miam,

gatos gatos, à porta da noite por aí se desfiam.

Quando o poeta, sendo igualmente viajante,

indaga à lua o destino, ela se dilata, verdejante e seca,

responde na lata – é a pata dos gatos!


214

Garça


Roseana Murray


um poema nasce

como garça se equilibra

na superfície fina

do nada

de que é feito

o espaço que ocupa

de que impalpável matéria

mistério labareda ou voo?

um poema nasce

se espraia vertiginosamente

como areia

em direção nenhuma

em sua frágil arquitetura

o caos se arruma


215


Um cachorrinho na tarde


Ruy Espinheira Filho


Neguinho se sentia especial naquele fim de tarde.

Na verdade, quase sempre se sentia

especial. Mas, naquele fim de tarde,

sentia que se sentia especialmente

especial.

E foi o que disse num primeiro e meigo

latido. Ou melhor: quase um ronronar

(o que há tempos vinha tentando aprender

com os inúmeros gatos

da casa).

Depois, como não houvesse nenhum efeito,

latiu mais alto, algumas vezes.

Dois ou três humanos saíram à porta.

Ele ficou mais contente, abanou energicamente o rabo,

provocou umas risadas. E logo estava novamente só

no gramado.


216


Não, ninguém tinha percebido como se sentia especial

naquele fim de tarde. Tão especial

que o fim da tarde ficou também especialmente

especial.

O que o comovia tanto que ele quase chorou,

mas se conteve para que não o achassem

um cachorrinho imaturo e mimado.

(Mimado, sim, admitia. Imaturo, jamais!)

E ele ficou por ali,

vendo, ouvindo e cheirando tudo

enquanto a tarde morria.

Olhos, ouvidos e faro que apreendiam o mundo

e os mundos depois dos mundos.

E Neguinho correu velozmente três vezes,

ou quatro,

talvez cinco,

de uma ponta a outra do gramado.

Ofegante, farejou algo mais precioso.

E latiu, latiu com força, latiu

até que as pessoas vieram novamente à porta.

E então também viram e saudaram

a Lua Cheia

que se erguia no horizonte.

E ele percebeu que os humanos também, olhando a Lua,

se sentiram especiais.

E assim ficaram por alguns instantes.

E logo depois ele estava novamente sozinho,

banhando-se de luar.


217


Sozinho,

mas ainda especialmente

especial.

Quantos perceberiam que assim estava ele?

A Lua, talvez, porém de longe, longe demais.

Já os gatos só prestavam atenção, egoisticamente,

às suas próprias especialidades...

E as pessoas da casa... Entendiam, sim,

algo dos seus gestos e latidos,

mas que poderiam saber do que lhe pulsava

profundamente,

do que nele era tão especial?

Abanou a cabeça, sentindo-se um pouco cansado.

Escolheu um cantinho protegido da varanda.

Deitou-se, espreguiçou-se.

Sim, seria especialmente muito bem-vindo um cochilo.

Fechou os olhos.

E, logo antes de dormir,

pensando um pouco em suas dificuldades,

concluiu,

com um amplo bocejo,

que era melhor mesmo conformar-se,

humildemente,

com ser incompreendido como qualquer outro

poeta.


218

A galinha


Ruy Proença


a galinha tem pavor ao mar

e mal sabe dar braçadas no ar

a galinha tem garras pontiagudas

para plantar-se no chão

e desejar-se raiz

a galinha cisca o terreiro

e a cal do muro

e mal distingue a quirera do sol

que se levantou no passado

e migra para o escuro

ciosa do ovo perfeito

pois nele guarda o futuro

estende sua teia de nervos

e estaca como um para-raios


219

choca como uma árvore

dia e noite

para ver maduro seu fruto

e quando um pé-de-vento

põe a poeira em remoinho

lá está ela

comandante louca

de olhos esbugalhados

ancorados no seco da tempestade


220


Glossário mínimo para

seres desimaginados

(ou poesia de circunstância)


Sandro Adriano da Silva


i.

flamingo:

rosa e vermelho

tremula turvo e solitário

sobre o lago anoitecido

ii.

um cão fere a carne –

retocando febrilmente o dia

iii.

caranguejo:

bailarino de dupla coreografia –

ladeando o que não é mar

cavando um buraco no dia


221

Traçada


Sidnei Olivio


a traça trança a vida

em traços: projetados

delineados

lentamente traçados

num esboço de astúcia

ardilosamente

corrói

destrói

descreve o rastro no texto

no contexto

sinaliza o trecho no rastro

sem hesitação

destrói

corrói

numa tração de hábito

(no hálito)


222

o vício da traição literária:

imponderável

corrói

destrói

as últimas folhas (páginas

inacabadas)

da minha tracejada-ilusão:

hífen dos desejos

vestígios poéticos do futuro

pré-traçado


223


O devorável mapingrafo


Tchello d’Barros


O Mapingrafo é um bicho invisível

Desses que se escondem nos livros

Mas dizem que ultimamente

Foi visto também em telas de plasma

Ele bem lembra uma traça gigante

Mais lindo que um ornitorrinco

Suas escamas são feitas de letras

E seus dentes são mil C cedilhas

Devora tudo que vê pela frente

Sejam poemas, contos ou crônicas

Já engoliu dois romances também

Onde passa deixa um rastro de tinta

Sua voragem por versos e laudas

Levou-o a devorar livros também

De cordéis a pesados dicionários

Comeu trinta e cinco bibliotecas


224

Mas suspeitos relatos recentes

Contam que ampliou seu cardápio

Incluindo em sua voraz dieta

O corpo e a alma dos literatos


225

Monstras


Tida Carvalho


Aracnídea tece seus contos e contas,

fios invisíveis ligam monstras

mortas convivem com as vivas,

árvores produzem leite.

Performances contadas com seis pares

de apêndices articulados, quatro pares de pernas,

Aranha montada num sapo gigante

flutua fantasma fogo fátuo.

Vira o tecido ao avesso

põe tudo na bolsa e sacoleja

esqueletos calados, fantasmais.

Nessa solidão a atmosfera esvanece

Feérica

são monstras de meia-idade

mulheres fantasmas

mulheres raposas

cabeludas carecas cuidadoras,

lindas, irascíveis, deformadas


226

maravilhosamente monstruosas

potentes, singelas

Assombram pela sagacidade em

imagens absurdas


227

Poema


Telma Siqueira


O poeta vai ao quintal

olhar lagartixas no muro.

Ninguém entende quando ele,

cego de ver, enlouquece

pela casa insone

e com seu estilete esferográfico

vinga-se do mundo.


228


Encanto selvagem


Thaís M Resende


Tenho me encantado com o poeta Manoel [de Barros]

Como uma criança que volta a ser,

e, a (re)olhar com singeleza os insignificantes pormenores

Onde, a partir desse novo vislumbre, fita grandiosidades

Como aquela menina, que um dia fui, e que

[por vezes volta, espontânea...

encantada com aquele pequeno grilo verde,

a saltar e a cair sobre minhas pernas

Ou, com o meu colo que se fez pouso para aquele

[pequenino e verdoso ser saltitante

É assim que o encanto se faz

Simples e esmiuçado, entre

o verso e o anverso

Ah menino Manoel!


229


Bate o vento sobre as copas de pinho


Tom Custódio


bate o vento sobre as copas de pinho

pouco a pouco, lento e só

segue em frente o explorador sem caminho

ruma atento pra floresta e, vizinho,

punha-se a grasnar sem dó

outro corvo sobre o pé de azevinho

gelo ralo sobre o chão, raio da manhã

passa pelo filtro musgo acima

dentre uma raiz de lenho, uma breve flor

medra como quem lembrasse do céu

roça o farfalhar sedoso do arminho

soa nítido no ar

um cristal que foi pousar sobre a pluma

quando mais além, se crendo sozinho,

junto dele só bruma


230

ouve perto o passo de um puma


231

desejo


Trazíbulo Henrique Pardo Casas


estou farto de tristezas

e de alegrias.

quero apenas um cavalo doido.

para dar coices

nesta paz amarela.


232

Pequena aranha


Uaçaí de Magalhães Lopes


Pequena aranha, que teces?

Teces a vida ou a morte?

Que teces, pequena aranha,

meu destino, minha sorte?

Nossa vida é tão vazia.

Nossos destinos são teias,

que tecemos cada dia:

barcos singrando nas veias.

Pequenina, ao que parece,

tua teia não nos guia.

Nossa vida é que se tece

numa outra teia, ungida,

que se encontra em outra via,

para além da nossa vida.


233

Os pássaros


Vera Lúcia de Oliveira


os pássaros de pedra dilatam as oferendas

os pássaros de carne batem-se contra as grades

os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos

os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos

os pássaros de papel voam para dentro das crases

os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre

os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva

os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto


234

Onça pintada


Vladimir Queiroz


Algumas pegadas vão pela mata adentro

somem ao pé de uma árvore

onde dorme a pintada.

Quem te pintou?

Foi a mão divina.

Algumas pegadas vão pela mata adentro

somem no ribeirão

onde ruge a felina.

Quem te tornou fera?

Foi a espera no tempo.

Algumas pegadas vão pela mata adentro

somem no dorso da caça

onde se farta a grandalhona.

Quem te deixou faminta?

Foram os rebentos carnívoros.

Algumas pegadas vão pela mata adentro

some a onça,


235

sombra deusa da floresta.

Quem te seguiu?

Foi o homem...


236

Unicórnio


Walmir Ayala


Tenho um raro e terrível unicórnio.

Coração de rosa dos ventos

domo-o pelos quatro pontos

cardeais de suas patas.

Alimento-o por montes e vales inventados,

sinto-o palpitar junto aos córregos.

É meu.

É meu porque tangi suas crinas acesas,

porque aspirei seu hálito quente e silencioso

de besta solitária; é meu

porque volta ao estábulo irreal

que ergui junto às roseiras silvestres.

Tenho meu companheiro para o sonho. Às cegas

tanjo sua cavalgada que me pertence;

jogamos a cabra cega e ele permite

que eu me perca sobre sua sombra,

enquanto ri, de longe, e há ondas


237

de mar sobre seu dorso que rutila.

Meu unicórnio é de metal, é de espuma

e silêncio. Amo-o pelo amor,

e no meu prado

ele cavalga muito antes de Sirius e Aldebarã.

Prisioneiro dos desertos ele é o oasis de si mesmo,

sua claridade são as rédeas

com que ilude minha graça

de tê-lo. Ele me tem

e consente o paraiso

para salvar na sombra a minha alma.


238


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Trilhando a cauda do tigre


W. B. Lemos


“Morrer – isso não se faz a um gato.”

Wisława Szymborska


Superior é o Seu Gato Pior.

Tem uma parte com humanos e

outra com a Coisa Incógnita,

prediz o relato do Livro dos Gatos.

É sobre ele o poema, Namorada.

Resmungando em negrume,

agora escrevo o interdito.

Eu gosto muito de Gato.

De Pior, sou a sombra mordida,

protetor da comida que come.

Velo seus sonhos e limpo seu chão,

na esperança, arranhada e incerta,


240

de escapar à vingança e aos perigos,

encobertos no dorso rajado-laranja.

Às vezes, amando (me(n)digo comigo),

Pior fica muito, muito Pior,

mas é o melhor lugar ainda.

Ninguém pode me afastar o seu branco,


porque esse branco é mercê merecida

em caminho homicida de tantos.

Ao mais, é sabido, Seu Gato é você.


241


Estruturas Sobrepostas


Wilson Pereira de Jesus


Nos labirintos do tempo

habita um touro terrível

e nos espanta ao dormirmos.

Nos labirintos do medo

descansa um touro dormindo

– quem ousará despertá-lo?

Nos labirintos da vida

perdemo-nos do nosso berço

– quem haverá de encontrar-nos?


242

Nirvana


Wilton Cardoso


Alheio à multidão

de células que o são,

de desejos que o povoam,

de pessoas que pensam

saber mais que os seus

olhos ferinos, de galáxias

que o fazem menos

que o ínfimo do pó,

de anos-luz que virão

e se foram na duração,

de deidades e teorias

que se passam por verdades,

alheio

à foto que o flagrou

e a este poema quebrado

e sem precisão, ele dorme

(numa tigela)

o sono preciso e singelo

da fúria contínua de um corpo

(por acaso) felino.


243

Caracol


Wladimir Cazé


Eremita dos interiores

de si mesmo,

íncola na caverna

(casulo que carrega

aonde quer que vá,

onde hiberna),

um caracol itinera

degraus de mármore,

moroso, mole.

No mineral horizonte

que o sol caustica,

ele delicadamente

rasteja o salitre verde

quase transparente

que desce de orifícios em seu ventre


244

e umedece a superfície de pedra,

vestígio da energia

dispendida na travessia

que acaba quando

a lesma lâmina

deposita a couraça na terra

e se libera

de seu próprio labirinto

para refletir a luz do céu.


245


Bilubi Che, o bom cão-gente — ou guia


Zeh Gustavo


Bilubi Che veio ao nosso mundo chamado casa

nem mês completo tinha. Menor dos rebentos,

o mais-com-fome, retremia-se todo,

por nada ou pouco, naquele então,

olhos fechadiços se abrindo meio vesguinhos

para tanta coisa luminosa de ver a vir.

Comia — e comia — a ração, o picutcho deitava, a fim

de dormir-sonhar. Encontrara: um lar.

E o tempo, ele foi agindo: logo-loguíssimo

Bilubi Che virou sapeco de correr-morder móveis,

viciou-desviciou de madeira e até um cigarrinho

que o achasse. Viciou-não-desviciou comer papel.

O latir, primeiro fino e repetitivo, hoje só é usado

profissionalmente, modo avisar perigos

em boa monta imaginários;

ou pedir, pra pitar, folha que cai da árvore

mas fica presinha no parapeito da janela.

Passear ele comunica diferente, o sabidinho.


246


Como bom poeta de esquina animal doméstico,

lambe caras, coleciona meias velhas e nos olha nos olhos.

Sabe disfarçar a dor de existir, na sua independente

solidão de baio de matilha, ele tão de algodão...

Bilubi Che tapacateia

suas querências e saudades

atento ao trânsito das gentes

de cujo êxodo de si

sempre pode brotar

um afago ou fortuito aviso

um reles e vil safanão

um toque de pôr a correr com tudo

ou mesmo um beijo na contramão


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Tenho um cão invisível


Fabio Morábito


Tenho um cão invisível,

carrego um quadrúpede por dentro

que levo ao parque

como os outros aos seus cães.

Os outros cães,

quando me curvo

e o deixo em liberdade

para que brinque e corra, o perseguem,

só seus donos não o veem,

talvez também a mim não me vejam.

Foi-se formando à força de passeios,

anima e inquieta a cachorrada,

e entre os donos cresce a inquietação

e eles chamam seus cães

para que não se forme a matilha.

Talvez também a mim não me vejam,

sentado num banco,

um pouco curvado

pelo esforço de deixá-lo livre,

e embora não possam vê-lo,


250

talvez sim vejam o cão

que invisível, como o meu,

levam dentro,

a besta que nunca soltam,

o cão que reprimem

levando a passear seus cães.


251


Pássaro Vermelho


Mary Oliver


O pássaro vermelho veio durante todo o inverno,

incendiando a paisagem

como só ele poderia fazer.

É claro que amo os pardais,

esses amados de cor parda,

tão famintos e tão numerosos.

Sou a que nutre os pássaros, temente a Deus —

sei que Ele tem muitos filhos,

nem todos de espírito audaz.

Ainda assim, por qualquer razão —

talvez porque o inverno seja tão longo

e o céu tão negro-azulado,


252


ou talvez porque o coração se estreite

tanto quanto se abre —

sou grata

pelo pássaro vermelho que veio durante todo o inverno,

incendiando a paisagem

como só ele saberia fazer.


253

Sonho infantil


Niní Bernardello


Deitada em cruz debaixo de um

cavalo branco, minha boca recebe

o jato caudaloso da sua urina

absolutamente límpida e amarela

arco de ouro fugaz em eterna queda.

A felicidade invade-me e, pela primeira vez,

foi única, irrepetível, incomparável.


254


Cantos a Berenice


Olga Orozco


III


Quero pensar que não eras a cria repudiada,

filha de gato errante e de gata cativa

— a companheira precária, vitoriosa na lei

[de um único acasalamento

e submissa ao decreto de algum Malthus tardio

[que impera no sótão.

Posso crer que não eras troféu nem resíduo

lançado ao acaso do alto da rocha,

nem eu a tecelã que detém com redes milagrosas o voo

[ou a queda.

Algo mais do que piedade, do que providência e desatino

erigiu nossa tenda invulnerável entre as carcomidas fundações.

Algo que começamos a saber entre um prato de leite

e ossos, só ossos de ausências, tão duros de roer.


255


V

Tu reinaste em Bubastis

com os pés na terra, como o Nilo,

e uma constelação por cabeleira no teu duplo celeste.

Eras filha do Sol e combatias o malfeitor noturno

— lama, traição ou toupeira, roedores do muro do lar,

[do leito do amor —,

multiplicando-te desde as adornadas dinastias de pedra

até as cinzentas espécies da cozinha,

desde o halo do templo até o vapor das panelas.

Esfinge solitária ou sibila doméstica,

eras a deusa do lar e abrigavas um deus, como uma pulga insone,

em cada dobra, em cada trama de tua inefável anatomia.

Aprendeste pelos ouvidos de Ísis ou de Osíris

que teus nomes eram Bastet e Bast e aquele outro que sabes

(ou será que uma gata não deve ter três nomes?);

mas quando as fúrias mordiam teu coração como um favo de pragas

tu te inflavas até alcançar a estirpe dos leões

e então te chamavas Sekhet, a vingadora.

Mas também, também os deuses morrem para serem imortais

e voltarem a acender, num dia qualquer, o pó e os escombros.

Rolou teu guizo, sua música amordaçada pelo vento.

Dispersou-se tua bolsa nas inúmeras bocas da areia.

E teu escudo foi um ídolo confuso para a lagartixa e o centopeia.

Te acolheram os séculos em tua necrópole deserta

—a cidade envolta em faixas que anda nos pesadelos infantis—,


256


e porque cada corpo é apenas uma parte do imenso sarcófago

[de um deus...


IX

Mas salta, salta outra vez sobre as papoulas,

salta sobre as fogueiras de junho sem te queimar,

como se soubesses.

Inclina-te outra vez à plena luz pela tua sombra entreaberta,

ainda que semeemos apenas como névoa rasteira,

como invasão de aranhas transparentes,

a suspeita de que somos de novo a bruxa e a emissária.

Não lamberão teu rastro dois cães amarelos,

nem voarás em nuvens eriçadas à festa de Brocken.

Não tivemos mais coruja que a vigília alerta no fundo do so- nho,

nem mais sapo lacaio que a rajada fria para afugentar os

duendes.

Nossa maldita aliança com o diabo

foi o poder do terror contra os roedores inatingíveis

que escavavam suas armadilhas debaixo da casa;

nossa marca satânica,

a mesma desmesura na pupila

para precipitar ali as intenções da noite mascarada;

nosso pacto de sangue,

nada mais que aquela troca de enigmas insolúveis:


257

outras de nós mesmas.


X

Sim, tu, meu outro eu mesma na fôrma encantada de outra

pele

cevada à memória do rito e da preguiça.

Não fetiche, onde rangem com asas de gafanhoto os espíritos

postos

a secar;

não talismã, como uma estrela alheia engastada na proa da

própria treva;

não amuleto, para afugentar os negros semeadores do acaso;

não gato em sua função de animal gato;

mas tu, o tótem palpitante na corrente rompida do meu clã.

Esse vínculo como uma troca de segredos em plena combus- tão!

Esse sopro recíproco infundindo os sinais do mal, os sinais

do bem,

em todo tempo e a qualquer distância!

Essas sortes ligadas sob o lacre e os selos de todos os destinos!

Não guardavas acaso minha alma absorta como um tromba

azul entre tuas sete vidas?

Não vigiava eu tuas sete vidas,

semelhantes a um arco-íris noturno no meu espaço interior?

E este rumor e esse borbulhar,

este remoto jato de bolhas subterrâneas


258


e esse zumbido rouco de zangão suspenso entre os labirintos

do teu sangue,

não seriam acaso meu mantra mais oculto e teu indizível

nome

e a palavra perdida que ao refazer-se refaz com penas brancas

a criação?

XI

Em que alfabeto mítico aprendeste a interpretar os símbolos?

Que fábulas heroicas te ensinaram

a sitiar os anúncios sinistros com o fosso da monotonia

e a cravar-lhes depois o punhal do relâmpago?

Teu poder era o poder da distância

que, com um golpe, fecha seu leque e expulsa o invasor.

Horas que foram anos, alertas como lâmpadas,

pacientes como estátuas diante de hóspedes que vêm e vão.

Tu, imóvel, submersa em dourados jardins de inverno,

em visões letárgicas bordadas pela conspiração do sol e de

suas

ondas,

espreitavas um flanco com súbitas listras de leopardo,

a música irisada de um zangão cego perfurando de repente

todo

o cosmo,

para fazer explodir, sob um único golpe de pata, suas ameaça- doras engrenagens.

Assim pudeste um dia retrair o espaço

e descobrir no fundo do meu coração alguma sombra intrusa


259


entre outras sombras,

ou adivinhar que oculta teia tramavam, ao destecer-se, os

meus tecidos,

ou que veios funestos forjavam sob minha pele um mármore

implacável,

e escavaste, escavaste com felpas e garras até arrancar o mal

como uma pérola negra que se dissolve em pó,

em nada.

Eu te pergunto agora, entre nós,

era realmente nada?

Ou guardaste acaso, uma por uma, essas contas sombrias

e enfiastes um colar que virou nó em torno de tua garganta?

XIII

Desabou o silêncio,

suas atrozes membranas se abriram como as de um morcego

anterior ao dilúvio,

seu canto como o corvo da negação.

Tua boca já não acerta o alimento.

Desencaixaram-se tuas mandíbulas

como as metades de uma cápsula incapaz de conter

a amêndoa do destino.

Tua língua é o Saara retraído na penumbra.

Teus olhos já não interrogam as vãs equações das coisas e dos

rostos.

Deixaram de copiar com lantejoulas amarelas os fugazes mo- delos


260


deste mundo.

São apenas dois poços de opalina até o fundo onde se afoga o

tempo.

Teu corpo é uma rígida armadura sem ninguém,

sem outro peso que a luz que o apaga e o amortalha em lágri- mas.

Tuas unhas, soltas da inalcançável salvação,

percorrem de modo lancinante o reverso impensável,

a corda de um êxodo infinito em seu acorde final.

Tua pele é uma mancha de carvão sufocado que atravessa o

esteiro

dos dias.

Tua morte foi apenas um leve rumor de moita que se arranca,

e depois, já não estavas.

A tarde te desertou;

lançou-te como escória à outra margem,

sob uma mesa inominável, muda, estranhamente impenetrá- vel,

ali, junto aos desamparados resíduos,

os toscos inventários de uma casa que rola para o poente, que

oscila, que desaba,

que se transforma em nuvem.


261


O gato no apartamento vazio


Wisława Szymborska


Morrer — isso não se faz a um gato.

Pois o que um gato há de fazer

num apartamento vazio?

Escalar as paredes.

Roçar-se pelos móveis.

Nada parece mudado,

e, no entanto, está tudo diferente.

Nada parece alterado,

e, no entanto, está tudo fora do lugar.

E, à noite, a lâmpada já não acende.

Ouvem-se passos na escada,

e, no entanto, já não são os mesmos.

A mão que punha o peixe no pires

Também já não é a mesma.

Algo aqui não começa

na mesma hora de sempre.

Algo aqui não acontece

como deveria acontecer.


262

Alguém aqui esteve, esteve,

e de repente sumiu

e teima em não estar.

Todos os armários foram vasculhados,

procurou-se por todas as estantes,

olhou-se até debaixo do tapete

até se quebrou a regra

de não espalhar os papeis.

Que mais se pode fazer

senão dormir e esperar?

Que ele ao menos volte,

que ao menos apareça.

Aí sim, ele vai ver

que isso com um gato não se faz.

Irá para junto dele

como quem não quer ir,

bem devagar,

com patas muito ofendidas.

E nada de pular ou miar a princípio.


E muitos não têm a sorte

De vê-lo passar um dia

O cavalo Azul

Gilbert Bécaud


Esta edição foi impressa em formato fechado de

140x210 mm e com mancha de 100x165 mm.

Os papéis utilizados foram o pólen 80 g/m2 para

o miolo e o Cartão 250 g/m2 para a capa. O texto

principal foi composto em Adobe Garamond Pro

12/15,2 e os títulos em Adobe Garamond Pro

18/20. Impresso no Brasil.




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