Alexandre Bonafim
Cláudio Daniel
Fabio Júlio
(org.)
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Conselho Editorial:
Dr. Alexandre Bonafim (UEG) – Diretor
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Ilustração e composição de capa:
José Joaquim Gomes Neto
Diagramação:
Rones Lima
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Antologia Selvagem: um bestiário da poesia brasileira contemporânea
/ Alexandre Bonafim, Cláudio Daniel e Fábio Júlio (org.) – 1. ed. –
Franca, SP : Cavalo Azul, 2024.
140 p.; 21cm.
ISBN
1. Poesia brasileira I. Título.
CDD B869.1
1. Poesia : Literatura brasileira
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
SUMÁRIO
1.Uma escritura selvagem: poéticas animais
Alexandre Bonafim ..................................................17
Adriana Versiani dos Anjos................................................31
Adriano Espínola...............................................................33
Adriano Eysen ...................................................................35
Adriano Lobão Aragão.......................................................36
Aleilton Fonseca ...............................................................37
Alexandre Bonafim............................................................38
Alexei Bueno .....................................................................42
Álvaro Alves de Faria .........................................................43
Álvaro Cardoso Gomes......................................................44
Ana Cecília Bastos.............................................................46
Ana Costa dos Santos........................................................47
André Dick .......................................................................48
André Luis M. Galvão ......................................................50
Andressa Monteiro ............................................................52
Andityas Soares de Moura .................................................53
Antonio Brasileiro .............................................................54
Antonio Carlos Secchin.....................................................55
Ariadne Oliveira ................................................................56
Assis Lima .........................................................................57
Astrid Cabral.....................................................................58
Bartira Dias ......................................................................61
Bruna Silva........................................................................63
Caio Graco.......................................................................64
Carlos Barbosa ..................................................................65
Carlos Felipe Moisés..........................................................67
Carlos Henrique Costa......................................................69
Carlos Machado ................................................................70
Carolina Brito ...................................................................72
Cecília Furquim ................................................................74
Cecília Lara .......................................................................76
Celso de Alencar................................................................77
Cida Meira ........................................................................79
Claudia Roquette-Pinto.....................................................81
Claudio Daniel..................................................................83
Cleberton Santos...............................................................85
Cristiane Torres.................................................................86
Daniel Borges....................................................................87
Deborah Brennand............................................................89
Donizete Galvão ..............................................................90
Dora Ferreira da Silva........................................................92
Edgard Senaha...................................................................94
Edir Pina de Barros ...........................................................95
Edmar Guimarães .............................................................96
Edson Amaro de Souza......................................................97
Eduardo Brito ...................................................................98
Elson Froes......................................................................100
Elizabeth Abreu Caldeira Brito........................................102
Eunice Arruda .................................................................103
Fábio Júlio.......................................................................104
Fernando Campos...........................................................106
Filipe Artur Queiroz........................................................108
Flávia Savary ...................................................................109
Florisvaldo Mattos...........................................................110
Francisco Perna Filho ......................................................111
Gilberto Tadeu Nable ....................................................113
Hellington Vieira ............................................................115
Henrique Chaudon .......................................................116
Hernane Borges de Barros Pereira....................................118
Horácio Costa .................................................................119
Hudson Santos................................................................124
Idelma Ribeiro Faria........................................................125
Iderval Miranda...............................................................126
Idmar Boaventura............................................................127
Inês Ferreira da Silva Bianchi...........................................128
Isa Corgosinho ................................................................129
Isadora Salazar + Thienne Johnson ..................................131
Ito Pedragrande...............................................................133
Ivan Junqueira.................................................................135
Izaias Gabriel .................................................................136
João Batista Melo ............................................................138
Johny Guimarães.............................................................139
Jorge Amancio.................................................................140
José Luís Monteiro ..........................................................142
Josias Padilha...................................................................143
Juliete Oliveira ................................................................144
Júlio Machado.................................................................145
Júnior Ratts.....................................................................148
Juraci Dórea ....................................................................149
Laércio Majadas .............................................................150
Lara de Lemos.................................................................151
Lenilde Freitas.................................................................152
Liana Timm ....................................................................153
Lílian Almeida.................................................................154
Lisley Nogueira ..............................................................156
Luciana Barreto...............................................................157
Luciano de Castro ...........................................................158
Luís Pimentel ..................................................................160
Luiz Sentinela..................................................................162
Luiza Mendes Furia.........................................................163
Lupe Contrim.................................................................164
Marcela Albanesi Parrado ................................................166
Marcia Tigani .................................................................167
Marco Lucchesi ...............................................................169
Maria Carpi.....................................................................170
Mariana Ianelli................................................................171
Mário Alex Rosa .............................................................173
Marli Fróes......................................................................175
Marly de Oliveira ............................................................177
Mylla Taynah .................................................................179
Myriam Fraga..................................................................180
Nara Fontes.....................................................................182
Neurinan Sousa...............................................................183
Nívia Maria Vasconcellos.................................................184
Noélia Ribeiro.................................................................185
Odylia Almacave.............................................................186
Olga Savary .....................................................................188
Paulo André ....................................................................189
Paulo Franchetti ..............................................................190
Paulo Marcelino ..............................................................191
Rafael SG Santos ............................................................193
Raquel Naveira................................................................194
Renata Pallottini ............................................................196
Ricardo Thadeu...............................................................197
Ricardo Vieira Lima .......................................................198
Rilnete Melo ..................................................................199
Roberto Carvalho............................................................200
Roberval Pereyr ...............................................................203
Rodrigo Ortiz Vinholo ..................................................204
Rodrigo Petronio.............................................................205
Rogerio Luz.....................................................................208
Ronald Polito ..................................................................209
Ronaldo Cagiano.............................................................210
Rosana Piccolo ................................................................213
Roseana Murray ..............................................................214
Ruy Espinheira Filho.......................................................215
Ruy Proença ....................................................................218
Sandro Adriano da Silva ................................................220
Sidnei Olivio...................................................................221
Tchello d’Barros..............................................................223
Tida Carvalho .................................................................225
Telma Siqueira ................................................................227
Thaís M Resende.............................................................228
Tom Custódio .................................................................229
Trazíbulo Henrique Pardo Casas......................................231
Uaçaí de Magalhães Lopes ..............................................232
Vera Lúcia de Oliveira .....................................................233
Vladimir Queiroz............................................................234
Walmir Ayala ..................................................................236
W. B. Lemos....................................................................239
Wilson Pereira de Jesus....................................................241
Wilton Cardoso...............................................................242
Wladimir Cazé................................................................243
Zeh Gustavo....................................................................245
Fabio Morábito ...............................................................249
Mary Oliver ....................................................................251
Niní Bernardello..............................................................253
Olga Orozco...................................................................254
Wisława Szymborska .......................................................261
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Animais da natureza juntos com o humano. Tela de Franz Marc |
1.Uma escritura selvagem: poéticas animais
Alexandre Bonafim1
Dedico este livro a dois poetas amigos, duas grandes almas com quem tive a alegria de conviver e aprender o verdadeiro sentido da palavra e da alegria de criar: Donizete Galvão e Dora Ferreira da Silva
Ao longo da história da literatura ocidental, os animais desempenharam um papel crucial para a configuração de grandes obras de nosso cânone. Desde Moby Dick de Melville à cachorra Baleia de Graciliano Ramos, os animais tornaram-se personagens centrais e fundamentais na trama de textos que, utilizando-se das potencialidades poéticas de tais seres, expandiram nossa sensibilidade artística, permitindo um olhar novo e mais profundo sobre nós mesmos. Os animais, assim, passaram a espelhar nossa condição humana, aprofundando e intensificando aquilo que, em nós, justamente nos diferenciava deles, ou, pelo contrário, nos irmanava a eles.
Nesse sentido, partindo, a princípio, de nossas diferenças, talvez a maior resida precisamente no cogito cartesiano (1), que nos define enquanto espécie, o que nos permite, conforme Heidegger, sermos “a única” testemunha do mundo. Essa mesma consciência de si, por outro lado, carrega o pendor do trágico, pois também nos torna lúcidos ante a morte, fenômeno só apreensível, racionalmente, pelo homem, pois só ele é dotado da consciência desse feito inexorável (2).
Despidos da tragédia desse mal, a consciência reflexiva(3), os animais residiriam em uma realidade quase adâmica, justamente por viverem apenas no instante-já, integralmente. Sua vivência se dá apenas no átimo do agora, não na profundidade de uma consciência do futuro, ou das memórias narradas de um passado. Os animais “são” plenamente, sem máscaras, vivendo em conexão direta com a vida. A poesia sobre animais, então, poderia ter, como um dos intuitos, aproximar-se dessa essência, buscando um retorno ao instintivo, à verdade da experiência, digamos, primitiva.
Aqui, cabe lembrar a genialidade de Graciliano Ramos. A cachorra Baleia, no fatídico capítulo no qual o frágil animal está frente à morte, uma morte que, paradoxalmente, viria pelas mãos daquele que ela mais amava, desvela, pela sua interioridade, nuançada por uma espécie de páthos trágico demasiadamente humano, toda a profunda riqueza existencial desse momento, como se o leitor pudesse ver a morte por dentro, pela intimidade de seu mistério, pelo silêncio de sua verdade inelutável. Tal como acontece com o famoso personagem, de Leon Tolstói, Ivan Ilich, podemos captar, pelo íntimo da personagem, toda a força desse momento cruel e sublime. Tais páginas de nossa literatura brasileira, dentre as mais belas de nossa história, só se tornam possíveis porque Graciliano explora o que é imensamente humano em um ser distante, de certa forma, dessa mesma humanidade. A morte, aqui, é vista pelo viés cósmico, como casualidade fatal da própria natureza, de tudo o que se faz presença na realidade universal. Captamos a morte não pelo cogito cartesiano, mas pela razão sensível, tal como preconizou Michel Maffessoli(4), instância de nossa inteligência múltipla, em conexão com a carne que sente, com a emoção que estertora. Essa razão sensível, aqui, talvez seja o elo fundante da vida e o veio do ser capaz de nos irmanar à alteridade dos animais.
Se a literatura, por muito tempo, buscou, nos animais, aspectos instintivos ou até comportamentais do ser humano, usando-os como meras alegorias de práticas humanas em narrativas repletas de lições morais, como acontece desde as fábulas às narrativas folclóricas, a literatura, em muitos casos, buscou no animal, algo além de uma mera representação de nós, um símbolo da alteridade misteriosa, enigmática e sagrada da própria natureza. Ao falar do lobo que vagueia pela floresta ou do pássaro que corta o céu, o poeta cria pontes entre a nossa subjetividade e aquilo que é ancestral e remoto, aquilo que escapa às palavras, mas permanece na alma.
O silêncio, elemento tão caro à poesia, torna-se emblema dessa complexa relação entre humanos e animais. Estes últimos vivem em uma esfera para além e aquém da própria palavra, num círculo inescrutável para nós, desvelando múltiplas linguagens, apenas perceptíveis, que vão de ações, movimentos e comportamentos, rastros, vestígios de uma comunicação física que nos coloca diante de uma alteridade sempre enigmática.
Para Rainer Maria Rilke, os animais, de certa forma, por viverem numa espécie de paraíso anterior à queda, ao viverem livres da palavra verbal, possuem o privilégio de uma comunicação mais próxima da natureza e do enigma de tudo o que existe. Esse silêncio dos animais, portanto, não é uma ausência de comunicação, mas uma forma de expressão pura e imediata, que existe em total abertura ao mundo e resiste à captura pelo pensamento verbal. Ao observarmos o comportamento de um animal — seu olhar, suas pausas e seu movimento — sentimos uma espécie de mistério que não se deixa decifrar, pois os animais pertencem a uma ordem de existência que não necessita de palavras para significar. Em sua oitava elegia de Duíno, o poeta afirma:
Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto.
Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha
se oculta em torno do livre caminho.
O que está além, pressentimos apenas
na expressão do animal; pois desde a infância
desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos,
ah, esse espaço profundo que há na face do animal.
Isento de morte. Nós só vemos
morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim;
diante de si tem apenas Deus e quando se move
é para a eternidade, como correm as fontes(5).
A pura e imediata relação entre o mundo e o animal, de certa maneira, já é uma transcendência inacessível a nós, humanos, condenados ao pensamento lógico e à linguagem verbal. Daí nasce a fecunda teopoética de Rilke, pois o Aberto, a transcendência, se é algo imanente no animal, para o ser humano, ao contrário, tem de ser uma conquista. A palavra poética, plenitude da própria linguagem verbal, portanto, seria a via de acesso à sacralidade, ao mistério fecundo da natureza, nos permitindo um vislumbre do Aberto. O Aberto, assim, torna-se dádiva, a nós, muito mais pelo êxtase epifânico da poesia do que pela lógica da linguagem prosaica.
Portanto, o homem pode, talvez, “tocar” o Aberto de maneira fugaz e indireta, através de momentos de criação e de contemplação estética. Rilke parece dizer que, embora nunca possamos habitar o Aberto da mesma forma que um animal, a aproximação ao indizível, ao intuitivo e ao sublime nos oferece uma experiência parcial desse estado. Mas esse vislumbre é efêmero, uma centelha em meio à existência consciente e dividida do ser humano. Em última análise, a busca do Aberto torna-se, para Rilke, uma busca espiritual e estética, um caminho que não oferece a fusão completa, mas que nos aproxima, pelo menos, daquilo que é maior que nós mesmos.
A poesia sobre animais, portanto, ganha destaque nesse contexto, pois se transforma em possível instrumento de vislumbre do Aberto. Ao escrever sobre determinado bicho, o poeta, em muitos momentos, empreende uma luta com a palavra, visando à busca de um significado que a transcende.
Essa ideia do animal como ser do Aberto, como entidade que não está encerrada na lógica da interioridade e da representação — ao contrário do homem, cujo olhar se volta sempre para si mesmo —, será explorada poeticamente por autores como Rilke, Francis Ponge, Paul Valéry e, no Brasil, por Orides Fontela, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, entre outros. A imagem do pássaro em Orides Fontela, por exemplo, condensa a liberdade ontológica da criatura em sua pureza de ser, enquanto a rã de Ponge se converte em epifania da matéria, fazendo o poeta buscar, na descrição da superfície do bicho, uma ética do sensível, da atenção.
Na contemporaneidade, a reflexão sobre os animais na literatura encontra respaldo em campos como a ecocrítica, os animal studies e a ontologia pós-humanista. Pensadores como Jacques Derrida, Donna Haraway, Giorgio Agamben e Vinciane Despret problematizam a relação humano-animal para além da oposição binária clássica, propondo modos de coexistência, coevolução, responsabilidade e coimplicação entre as espécies. Em O animal que logo sou (6), Derrida indaga: “O que é um animal?” e, mais profundamente, “o que significa ser olhado por um animal?”. A partir dessa provocação, o filósofo desconstrói o privilégio humano da razão, da linguagem e da moralidade, denunciando o antropocentrismo que rebaixa os outros viventes a instrumentos ou metáforas de nossa própria espécie.
A literatura, nesse sentido, não serve apenas para falar sobre os animais, mas para falar com, ou a partir de uma animalidade que questiona a linguagem humana. A poesia sobre animais pode ser compreendida, então, como uma tentativa de reencantar o mundo, de reconfigurar o lugar do humano na teia da vida, e de reconhecer, no outro-animal, um espelho turvo de nós mesmos, ou um abismo repleto de sentido. Como bem observou John Berger em seu ensaio Por que olhamos para os animais?(7) , com o advento da modernidade, os animais foram sendo gradativamente exilados da vida cotidiana, convertendo-se em imagens domesticadas, entretenimento, recurso ou vestígio. Berger vê na literatura uma forma de resistência a esse apagamento simbólico: ali, o animal ainda pode ser portador de mistério, alteridade e verdade.
A esse respeito, vale lembrar alguns dos grandes animais da tradição literária ocidental, verdadeiros arquétipos de sentidos simbólicos profundos. O cavalo de Aquiles, o cão Argos de Ulisses, o rinoceronte de Ionesco, o corvo de Poe, a barata de Kafka, o jaguar de Lezama Lima, o boi de Guimarães Rosa em “Conversa de bois” — todos são exemplos de como os animais não apenas compõem cenas narrativas, mas instauram núcleos filosóficos, mitológicos e linguísticos de alta complexidade. Neles, a animalidade já não é apenas um tema, mas uma perspectiva de mundo.
É possível afirmar que há ao menos três grandes linhas de sentido no uso dos animais na literatura: (1) a alegórica, na qual os animais representam tipos humanos ou virtudes/vícios, como nas fábulas de Esopo ou La Fontaine; (2) a existencial-ontológica, em que os animais aparecem como portadores de um modo de ser alternativo ao humano, como em Rilke ou Clarice Lispector; e (3) a pós-humanista ou especulativa, em que a animalidade rompe os parâmetros humanos de subjetividade, abrindo espaço para novas formas de imaginar a vida, como ocorre em Tokarczuk ou Coetzee.
Na poesia, em especial, há uma tendência a explorar o animal como signo de pureza ontológica e como metáfora do indecifrável. Em Orides Fontela, os pássaros não são apenas imagens da liberdade, mas vestígios do absoluto, daquilo que escapa à linguagem, mesmo quando é convocado por ela. Em Manoel de Barros, os animais falam pelo delírio da infância, pela gramática do chão, pelo assombro do ínfimo. Já em Hilda Hilst, o animal se converte em pulsão, carne, grito e erotismo cósmico. O animal, nessas poéticas, encarna forças originárias: aquilo que está antes e além da consciência, da moral, da história.
Também é necessário reconhecer o papel do animal na construção de uma ética do cuidado, da atenção, da alteridade. A literatura que se volta para os bichos é, muitas vezes, uma literatura da escuta, do rastro, da espera, do silêncio. A escuta de um miado no escuro, a atenção à dança de um inseto, o registro do balançar das patas de um cão ou da plumagem de um pássaro são gestos de abertura ao mundo como diferença radical.
Por isso, pensar o animal na literatura é pensar o próprio lugar do humano, não como centro, mas como um nó instável em uma rede de sentidos mais vasta. A poesia que nasce do animal ou que se volta a ele é, por excelência, um exercício de descentramento, de humildade e de maravilhamento. É uma tentativa de dizer o indizível, de tocar o ser com palavras, de apreender o silêncio com linguagem. E é nesse ponto que essa nossa Antologia selvagem se inscreve como um bestiário contemporâneo em que o animal reaparece não como metáfora esvaziada, mas como presença viva, vibrante, irredutível: bicho, corpo, signo e cosmos.
I.I. Sobre essa Antologia selvagem:
Se a poesia é uma forma de escuta, o animal é aquilo que resiste à linguagem e, ao mesmo tempo, a provoca. Esta Antologia selvagem nasceu do desejo de reencontrar, no coração do poema, a presença do bicho como enigma vivo. Não como metáfora ou espelho moral, mas como outro radical, ser que nos observa de um lugar que escapa à nossa lógica, mas nos inquieta, nos convoca, nos transforma.
Os poetas aqui reunidos não se voltam aos animais para traduzi-los, mas para se aproximar de sua força ininteligível, sua opacidade vibrante, sua existência que pulsa fora da história e do discurso. Há, em cada um desses poemas, um gesto de humildade: a tentativa de ouvir aquilo que não fala, mas significa; de tocar com a palavra aquilo que não se diz, mas se impõe como presença.
Talvez seja isso que a poesia possa fazer diante do animal: não o capturar, mas deixar-se afetar por sua alteridade. Não dizer por ele, mas reconhecer, em seu silêncio, um sentido que antecede o humano. E então escrever, não para traduzir, mas para acompanhar. Cantar, não para dominar, mas para partilhar a própria vida comum.
1 - Alexandre Bonafim é poeta, ficcionista, crítico literário e professor de literatura da Universidade Estadual de Goiás.
2 - Animais também demonstram sinais de consciência da morte, como o estresse no abatedouro, mas é no humano que essa consciência se torna matéria narrativa e filosófica.
3 Alguns animais demonstram formas elementares de autoconsciência, mas é a racionalidade humana que possibilitou a criação da cultura - muitas vezes usada não para integração, mas para exploração da natureza, culminando no atual colapso ecológico.
4 MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrópolis: Vozes, 1998.
5 RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução e comentários de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.
6 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
7 BERGER, John. Por que olhar para os animais? Tradução de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Fósforo, 2021
Réptil
Adriana Versiani dos Anjos
Apenas um réptil,
me compadeço da morte das nascentes.
Mesmo sendo frio meu sangue e eu apenas isso,
um réptil,
diante da grandeza extinta do rio,
me compadeço.
Estou sobre a terra e bebo pouco.
O sol racha a lama em losangos imperfeitos.
A vida arde no couro grosso que protege meu corpo.
Sou um réptil
E por isso não choro,
me compadeço.
2
No escuro, guardo os ovos para o próximo período.
Não sinto raiva, ansiedade ou medo.
Apenas um réptil,
fito os olhos do animal secando na areia do deserto.
Neste universo apinhado de estrelas, eu,
apenas um réptil,
me compadeço.
3
Diante da singularidade da natureza,
sou também natureza,
incapaz de pensar a minha natureza.
Trago na boca uma língua pegajosa que guarda o mistério
do último inseto.
O espaço está repleto de fantasmas
e o universo se alimenta de corpos que apodrecem.
Eu,
apenas um réptil,
não lamento o universo,
me compadeço.
O cavalo e o mar
Adriano Espínola
1
Na praia um cavalo azul
imita o mar.
Com as crinas espumantes
ondula sobre a areia.
Arremete furioso
contra as dunas.
(Na sua garupa de algas
El-Rei Dom Sebastião
encantado já cavalga
com sua espada na mão).
Veloz busca asas:
mito trespassado de sonhos
& sargaços.
2
O mar com suas líquidas patas
cavalga na praia.
Com os músculos retesados
de maré cheia
investe resfolegante
contra a areia.
Com as crinas de algas
escoiceia a manhã.
Encrespa-se todo
buscando o cavalo:
mito ondulado de sal e tempo.
3
Ali os dois se enfrentam:
o cavalo marinho
& o mar equestre.
Indiferente
o sol assiste
à peleja perene das criaturas.
O cão e o homem
Adriano Eysen
Alguns rastros
em meus ombros inúteis,
lá fora, sem mapas,
um cão fareja amores perdidos.
Eu e o cão
espreitados sob a noite
convertemos desejos
em vãs aventuras.
Há um cão dentro de mim
e na brevidade do quarto
sinto as mãos de Deus
tocando meu fingimento.
E na carne das lembranças
o tempo abriga
cães e homens.
A uma abelha que se prendeu no âmbar
Adriano Lobão Aragão
em beleza, delícia e decoro
pela tarde divaga a breve abelha
desejando a eternidade envolvê-la
quando na seiva arriscasse seu pouso
mas que outra forma no âmbar deixaria
a delicada essência de teu voo
muito além dos limites desse corpo
no pouso impresso na matéria fria
quem sabe o tempo ou o corpo somente
revestido na resina do instante
quem sabe o voo colhido nesse ventre
quando nenhum outro engenho enfim alcance
sem que a morte para este fim se invente
ao colher a beleza que lhe encante
O domador de pirilampos
Aleilton Fonseca
Jamais esqueço dos pirilampos
Que iluminavam a minha infância.
Eram respingos de luz nos campos
E são piscos de luz na lembrança.
Admirando, eu já contava cada
Claro rastro de brilho no ar,
O ritmo certo do acende e apaga
Que ainda me faz imaginar.
O destino dolente rasura
O passado que será futuro.
A sua garra pega e tritura
Os sonhos que rebrilham no escuro.
A luz piscante dos pirilampos
Que iluminaram a minha infância
Ainda alimenta meus encantos
E faz brilhar a minha esperança.
O lagarto
Alexandre Bonafim
Sob o sol
cáustico
repousa
o lagarto
sobre pedra.
Não é feita
de tempo
a dormência
do lagarto.
Ali ele permanece
sem início
sem fim.
O lagarto
acostumou-se
à pedra
tão cinza
quanto
às suas
escamas.
O lagarto
é a pedra
habituado
a lutar
contra
a noite
a chuva
o ar.
O lagarto
não soube
o que foi
a vida
entretanto
sua pele
reflete
a amplidão
das estrelas.
O lagarto
é flor
que não se soube
pétala
e perfume.
É lagarto simplesmente.
Coisa que não existe
que nunca existiu.
O lagarto
poderia ser cântico
mas é grito
tão estridente
que não se ouve.
Quem olhar
o lagarto
nada verá.
Ele é nada.
Um quinhão
de poesia
tão repleto
de poesia
que se fez
silêncio.
Coisa que ninguém sente
ninguém pega.
O lagarto
é um pranto
seco
tão seco
que poderia
ser lágrima.
Abatedouro de cavalos
Alexei Bueno
Ei-los, servos do Sol e dos heróis,
Pendurados do teto, entre os patifes.
Balançam — como peixes dos anzóis —
De ganchos, onde aguardam virar bifes.
Das crinas, já ondeadas pelo vento,
Pinga sangue, e da língua. Sobre os joelhos
Decepam-lhes as patas. Grosso e lento,
O pelo se incha de borrões vermelhos.
Os épicos, os régios, os hieráticos
Animais, degolados, logo em latas
Caberão. Sós, num canto, alvos, estáticos,
Seus olhos fixam campos e cascatas.
Serão patês, almôndegas, conservas...
Seus fantasmas, que os médiuns não conhecem,
Relincharão furiosos sobre as ervas,
Junto a sombras que os sonhos nunca esquecem.
Os cavalos
Álvaro Alves de Faria
Os cavalos mastigam as plantas
como se fossem anjos tocando harpa
desses que habitam as noites
enquanto os cavalos raivosos pisam nas flores
como abelhas que fogem
e permanecem junto às árvores
enquanto os cavalos cavam a terra
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Cavalo Azul, de Franz Marc |
como gafanhotos comem as folhas
e tiram os olhos do espantalho
enquanto os cavalos em fúria
bebem o rio no fundo da casa
como se fossem peixes dourados
que voam como os pássaros
enquanto os cavalos escovam as crinas
como uma mulher diante do espelho
a tratar dos cabelos
como pérolas amarelas
e a passar batom vermelho na boca
enquanto os cavalos saem à planície
e adormecem o mundo
para terminar o poema.
Morcego
Álvaro Cardoso Gomes
Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle
Baudelaire, LXXVII – Spleen
Quando o céu é escuro e sujo
Como a loja de um Antiquário,
Não há mais em meu coração
Nem alegrias e nem esperanças.
Quando o tempo é como um lago,
Cujas águas geladas
Há muito, estão mudas e paradas,
Vejo a Esperança como uma velha enrugada.
Quando os cabelos da noite
São mais brancos que a neve
Ou tão frágeis como as folhas secas,
Ouço os gritos das desesperadas árvores.
Eu não queria ser
Como um solitário morcego
Batendo as feridas asas
Contra as paredes,
E esperando em vão
Pelo bafo quente da noite.
Definição do gato
Ana Cecília Bastos
Contato portátil com a natureza.
Nuvem atravessando a mesa
e outros espaços imprevistos.
Nova casa se revela
na fotografia
felina,
em ângulos de precisão
e neblina.
O mundo visto em sobressaltos.
O desafio e o salto,
sempre mais alto,
sempre mais belo,
o gato amarelo.
Ei-lo.
Elo.
Voo
Ana Costa dos Santos
Morto, o pássaro
está a salvo:
não há risco após a queda.
Então por que me espantam
seu sono,
seu silêncio,
o baque ao pé
da árvore, igual
ao de uma fruta
podre
qualquer,
seu corpo dissecável,
onde, buscando, eu acharia
uma garganta, um coração
quieto?
Dizem que certos pássaros
dormem voando –
este talvez
voe dormindo.
Urso polar
André Dick
Eu recebo notícias vindas
de algum lugar ao norte
o lugar mais frio que conheço
plantas
quase geométricas capazes
de interceder dois polos,
o globo terrestre
manifesto sob as patas
de um urso polar.
Quando ele pisa mais forte,
sinto em meus pés
o mundo rachando
sem qualquer aviso
ou sobreaviso de embarcação
as sombras do relento
o navio atrás das baleias.
Barulho noturno e oceânico,
à deriva indo buscar
mais longe onde sobreviver
e concluir:
sou como o urso
quase naufragando
na encosta desaparecendo
entre as trevas do golfo, bem devagar.
Sobre cães e homens
André Luis M. Galvão
Os cães estão na rua:
pretos, brancos, amarelos, tigrados...
Criam suas turmas, e algumas vezes
sobrevivem à rua
Os cães não são iguais aos homens:
os cães têm raça
e isso representa a diferença
entre um lar e a rua
Os cães não são iguais aos homens:
os cães amam os homens,
os homens não amam os cães.
Os homens amam?
Os cães aglomeram as ruas
e brigam por território
ou por causa de um cio ensandecido
que inebria seus sentidos
Os homens aglomeram as ruas
e brigam por dinheiro
ou para impor suas vontades,
mesmo que seus iguais morram
Os cães não são iguais aos homens:
nas ruas, ou sob o abrigo de um lar
os cães são autênticos e generosos,
devolvem mais do que recebem
Os cães não são iguais aos homens:
sem ambição ou mesquinhez,
servem aos homens, são fiéis
mas nem sempre são retribuídos
Os cães têm muito a ensinar,
mas os homens quase nunca
estão dispostos a aprender
as suas valiosas lições.
Cavalo
Andressa Monteiro
![]() |
Cavalo na natureza, tela de Franz Marc |
me procura lentamente
quando eu estiver longe da trama
de pérolas de seus pés
canta a minha perda
caso não me aches em seus
ermos enredos desfeitos
e cuide para que eu não possa
escutar seus gritos de cólera
se a pedido seu um deus qualquer
se negue a coletar os olhos
de um cavalo em troca dos meus
no equinócio quando os montes
Andityas Soares de Moura
anunciam o ardor leve
e calmo
dum paço distante
faca
prata de orvalho
dentro do matagal
cavalos beijam-se
o negro então
torna tudo muito
quente e
oleoso
Estudo 92
Antonio Brasileiro
Todo o recôndito, enfim, nu, se mostrava
e seis touros de raiva e suas douradas patas e os cornos: aço
rasgando o tempo
eram como se a face que guardáramos
se desse, de repente, à mostra - era
como se de repente nos revelássemos.
Todo o recôndito, enfim, nu se mostrando
e seis touros de raiva e suas patas
douradas e os cornos: aço
rompendo o tempo
eram como se a face que guardávamos
mostrasse subitamente a Face - era
como se de repente não nos mostrássemos!
![]() |
Leda e o Cisne, 1598-1599. Pintura do alemão Peter Paul Rubens |
Cisne
Antonio Carlos Secchin
À memória de Cruz e Sousa
Vagueia, ondula, incontrolado e belo,
um cisne insone em solitário canto.
Caminha à margem com a plumagem negra,
em meio a um bando de pombas atônitas.
Encontra um outro, de alvacentas plumas,
um ser sagrado no monte Parnaso,
e enquanto o branco vai vencendo a bruma
ele naufraga, bêbado de espaço.
Em vão indaga, o olhar emparedado
na vertigem de luz que o sol encerra:
“Se em torno tudo é treva, tudo é nada,
como sonhar azul em outra esfera?”
Negro cisne sangrando em frente a um poço.
Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto.
Liturgia da asa
Ariadne Oliveira
Os urubus traçam o inefável
em círculos azuis
E levam os mortos até o céu
dentro dos intestinos
que nem Deus
O amigo do homem
Assis Lima
Passeando no parque,
convicto em seu carrinho de bebê,
o lindo cachorrinho parecia gente:
não cabia em si de contente.
Para alcançar a humanidade
e ingressar nas hostes de Caim,
o que lhe faltaria?
Parar de latir e passar ao latim.
Baleia albina
Astrid Cabral
Pelo úmido azul
a baleia albina baila
e assombra
a sala em penumbra
barbatanas rêmiges
a massagear
volumosa massa d’água
o trêmulo transparente
corpo marinho...
Marítima mamífera
a espraiar
a cútis de elanca
Enquanto as gordas vastas ancas
nadam dançam
se lançam
pelos pastos salgados
de algas e sargaços...
Será menina
a baleia albina?
Será adulta
a náufraga lua animal?
Ou centenária
a submarina cetácea nau?
Senhora dona do aquático sítio
supondo-se
solitária soberana
desfila tranquila na líquida passarela
e revela
coreografia de estrela
e solfeja
cantiga de amor arquiantiga
e corteja
sem saber-se a prima-dona
de um mega espetáculo
sem pressentir
a intimidade exposta
à ribalta de mil olhos
pelo globo em volta...
Como o mar tão vasto
cabe entre sofás?
como nos toca o mar
se a pele não nos molha?
À noite os gatos são pardos
À noite somos jonas e pinóquios
acomodados na barriga da sala
essa estranha baleia
cujas paredes entranhas
o oceano invade
e lambe até tarde...
Somos então outra casta de peixes
pescados nas malhas
de eletrônica rede.
O amor é uma barata
Bartira Dias
O amor é uma sobra
que perto dos escombros
se move
com o afastar das coisas
ao vento que o leva
se amontoa em tantos outros intentos
e se subtrai em meio à gula das aranhas
no seu trabalho árduo
de construir suas casas
![]() |
Barata, ícone de novela de Franz Kafka |
e mantê-lo
o amor se arrasta e voa
e quando denso
vira chuva
carrega mares
destrói templos
amor não é de gente
é poeira solta
atrás da porta
que o humano varre
pra limpar seu ambiente
por que o amor é sujo
e não cabe
na zona limitada
deste mundo.
Dois cães
Bruna Silva
No mais sujo beco
da mais vil das ruas,
um cão sem dono late.
Late e me persegue.
Encurralado e entregue,
não resisto.
E ele, como se soubesse,
cala e segue. É isto!
Ave em quantidade
Caio Graco
a cisma toca no caroço
inigualável do olho
como estreito bico
crescendo a saídas
cisma de assomar carne
ao deserto do dente
no globo que o galo
coça com esporão
no globo em que o galo
(poeta-pavão) choca
a inascença do ovo
contra o cio da barata
do ovário sem
de ave com casca
Borboletas baianas
Carlos Barbosa
tomo conhecimento das borboletas baianas,
não das que vejo nos jardins,
mas daquelas que voejam em casamentos
nossas borboletas fazem sucesso
em casórios Brasil afora
viajam de avião,
em caixinhas com furos para ventilação
as borboletas são exigência de noivos românticos:
querem com elas embelezar
suas histórias de amor
mas são caras nossas borboletas,
muito caras
precisam ser contadas
para o devido pagamento
e para tanto,
colocam as caixas por um tempinho em geladeiras:
é que assim as borboletas desmaiam
e é possível então fazer a contagem
por fim, as caixas são levadas ao pé do altar
e lá aguardam pelo grande momento,
as sobreviventes
após o beijo do novo casal,
as borboletas são soltas
mas estão fragilizadas, tontas, combalidas
então o pessoal dá o último toque ao show:
batem nas caixas para espantar as borboletas
que se projetam no ar
em arquejo final de vida,
para morrer em seguida em pleno voo
ou onde quer que pousem,
depois de obterem o aplauso da plateia
e ares de extremo contentamento
dos nubentes,
aquele batalhão de borboletas baianas
borboletas que viajaram de avião
e desmaiaram no gelo
em suas curtas vidas de tortura e horror
para beleza e glória do amor
Lagartixa
Carlos Felipe Moisés
para Margarida
O peito é de vidro.
Os olhos, porcelana
delicada e astuta.
Da língua
escorre
o néctar sutil.
As patas são de estanho,
mas sabem se mover
imóveis: mal flutuam.
O ventre é quase nada,
pura transparência
onde se escondem
o dorso e seus andaimes.
Não tem entranhas.
A pele
de tão fina
já não é:
limita
semovente
o nada de fora
e o quase nada
de dentro.
O peito é de vidro
mas às vezes se desmancha
em pétalas.
Dentro
pulsa um coração
que imobiliza
tudo em torno.
O rabo, sim,
é feito de algo
insuspeitado:
nuvem
algas
milhares de roldanas
e desejos
enrodilhados na engrenagem
que espaneja o chão
e foge
para o céu aberto.
A morte do besouro
Carlos Henrique Costa
Ao pé do abajur,
a morte do besouro é fato esquecido.
Ninguém na sala é capaz de lembrar
há quanto tempo ele jaz próximo ao cinzeiro.
Também não lembro
há quantos dias o vejo figurativo,
incorporado, agora, à natureza mineral do destino.
Apenas lembro, cada vez que passo por ali,
que um dia serei besouro
e, de mim mesmo, nem eu darei conta.
Galo
Carlos Machado
O galo
em seu instante de besta.
Quando o instinto
fera infalível
é maior que o fogacho
da crista
ou a aresta do canto.
Quando o galo
ou a força
a cavalgá-lo tem
o bote da serpente
a senha do lobo
o estro desembestado.
Quando o galo
é monumento
irisado de nervos
regalo puro dos genes
soldado cego
da natureza.
O galo
em seu instante de falo.
Visita Andorinha
Carolina Brito
Andorinha, tu vieste me ver
e disseste tão belas canções
em gorjeios que me calam
e me fazem condoer
Andorinha, estou sem braços
muito menos, asas de ave
no espaço em que me movo
não se contempla a calma
Caminho habitando
um respiro profundo
quisera, Andorinha,
encher de ar limpo
o peito e sossegar
Andorinha, leva-me a conhecer
aquelas árvores ali?
ficar um dia inteiro perto de ti
e viria a esquecer
de qualquer dor que me consome
Porque, Andorinha,
tu e Deus têm o mesmo nome
Formigas
Cecília Furquim
não sei como começou
não sei ao certo
as formiguinhas pequenas
que rondavam a cozinha
o açúcar, o mel
escondiam-se nos vãos da construção
e fugiam diante da aproximação humana
não mais as vejo
as que tomam o meu lar agora
são maiores, vermelhonas
e não buscam só comida
tomam todos os cômodos da casa
inclusive minha cama
andam em cima de minhas mãos
pés, pernas e braços
sem a menor cerimônia
e como não picam
desisti de afastá-las do caminho
deixo-as subindo e descendo do corpo
fazendo suas rotas
numa convivência insólita
me vejo inclusive tomando todo o cuidado
o cuidado que elas não tomam
para não esmagar, bater, assustar
como se fossem elas a me ceder
a tolerância do seu
contato
me pergunto se um dia
elas podem invadir
meus espaços internos
boca, nariz, boceta
ou se quando me distraio
é de lá que saem
Gaivota
Cecília Lara
aprendi com Prado a reservar uma parte do meu dia
[para chorar.
há pouco o pranto foi tão intenso
que inundou minha pequena varanda.
estava chovendo muito, mas insisto
que a água na varanda era salgada, portanto,
de pranto, e não de chuva.
fui tirar a água com um balde
e estava gostando de ficar descalça
com água pelas canelas
quando inesperadamente senti o cheiro
da casa da minha vó.
imaginei que ela estivesse comigo.
por algum motivo saíra de seu sono de raízes
e achara importante me visitar.
perguntei: veio pra ajudar ou pra julgar?
ela disse: ajudar. vim te contar um segredo.
pois diga.
você não é uma mulher. você é uma gaivota.
e acariciou minhas penas, e alisou meu bico fino.
Os cachorros da Rua da Barca
Celso de Alencar
Eram dois.
Pretos como os felinos pretos.
Surgiram como surgem
os ventos e as tempestades.
Pela manhã reluziam seus pelos
quando apontava o sol
abundante e fecundado.
Eram dois cachorros pretos, puros,
com porte de elefante e pescoço de girafa.
Eram os dois únicos da minha rua
e os olhava como aos grandes animais europeus
e os lambia como aos cachorros indianos
que saíam de campânulas encantadas.
Dóceis como as borboletas de três cores,
traziam dentro de seus olhos pequenos lírios
que desciam, ornamentando suas cabeças cintiladas.
Hoje os vejo como fantasmas.
À tarde, ao caminhar pela minha rua,
vejo com exatidão,
duas sombras pretas, floridas,
crestando, dentro de mim, a minha garganta.
Insecta
Cida Meira
Voam mesmo segmentadas
espiral voo rasante
vespas abelhas formigas
doam seu mel abundante.
Beleza e variedade
nas magníficas libélulas
mariposas borboletas
cores e complexidade.
Para um perfeito equilíbrio
são vitais moscas baratas
mas nas joaninhas múltiplas
a graça é compensada.
Estas cigarras longevas
na profundeza da terra
no esfregar das asas música
toda a vida é uma espera.
De perfeita camuflagem
as noturnas esperanças
no inverno deixam seus filhos
um verão sua passagem.
São todas belas insectas
num ciclo de servidão
atravessam solitárias
momentos de escuridão.
Recolhe-se feia lagarta
flexível se fortalece
singular benigna rara
para ressurgir em breve.
Parda, preta, pintada
Claudia Roquette-Pinto
mecê pensa que ela é muitas, ela tá
virando outras
Guimarães Rosa
fala do nada com isso:
o coisa nenhuma
ronco no oco do
bicho choque que
se transmite se
a mão (em sonho ou viso
de intenção) caminha
do fio-veloso-das-costas
ao mastro do rabo
em riste
fala que fala consigo
à roda
iauaretê, meu tio? não-nunca
que delírio se instrui no
lume do corisco
pintada ei palavra vis
lumbre na greda
e o rastro: areia
que desaba
ao peso, sempre,
das patas
Caranguejo
Claudio Daniel
Aquática paisagem, faixas de areia e uma sequência de morros,
horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e
mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma
cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune
com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalíp-
ticas. Há um furacão nas ilhas Fidji. Esferas planas surgem
no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento
aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada
que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar,
nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano
dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma
linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos as-
tros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos. Tudo
isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como
algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu
só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha cara-
paça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da
dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste
enigma, a contradição de um crustáceo.
Agouros
Cleberton Santos
guardo no abismo da palavra
silêncios vomitados por pássaros cativos
os mesmos pássaros outrora livres do rancor
agora tomados de revolta
grávidos de agouros
Três segundos
Cristiane Torres
Mais um dia insosso
Fiquei a olhar pela janela e aguardar por um pouco
[de aventura
Uma gota que fosse
Ela não veio, nem gota, nem aventura, nem floreio
Só uns pensamentos negativos sobre mim e meia
[dúzia de pessoas
Uma mente infértil, não pode florescer.
Mas num momento, de súbito
Parou na altura dos meus olhos
Com despudor e desenvoltura
Um azulão dos beija-flores.
Olhou-me nos olhos por três segundos e se foi
Nunca mais voltou.
Sonho Alado
Daniel Borges
na infância
criei um cavalo
que trotava
sem nome
pelos campos
da imaginação
na hora de dormir
com medo de apagar a luz
ele vinha manso
e levava
um por um
meus medos de criança
puxados na carroça
hoje
quando chego em casa
assustado
sóbrio demais
fecho os olhos
e tateio a memória
em busca de vestígios:
não sei onde o deixei
(essa é a verdade)
ou
não sei onde fui deixado
(essa também
é a verdade)
morreu
muito jovem
pobre cavalinho
relinchando
pela abóbada celeste
e fez de mim
um adulto
que tranca as portas
escuta cascos
e dorme sempre
de luzes acesas.
Leão
Deborah Brennand
Rasgando a escuridão, entre nuvens selvagens,
a fera surge faiscando o luminoso pelo
e com patas de fogo fere a sombra
desafiando as flechas de ventos caçadores.
Por mais que asas levem a vida
em noturnos voos inalcançáveis
o lampejar de seus olhos rubros
audaciosos nunca assustarão o rei.
Estendido, preguiçoso no espaço,
nem da armadilha do sonho será cativo
este animal que vence as léguas e o sol
saciado de comer o coração do tempo.
Escoiceados
Donizete Galvão
Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.
Elegia Dos Golfinhos
Dora Ferreira da Silva
Viu (porque só ver podia)
sem interferir, eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.
Lamentem-se os coros sagrados de Netuno,
acorram nereidas Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas
mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranquilos começam a morder.
Ah, cascata iridescente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda,
involutivo.
Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem MUSICA.
Outro Ser
Edgard Senaha
O “o” do olho
O olho do furacão
Comendo espaços
Espaventando o chão.
No espaço vento
Do turbilhão
Sendo fome e fúria
Eco grito eco.
Mil escamas
Se desdobrando
Em pó, poeiras,
Eras e etcéteras.
O centro do fogo
Nomeando sua região
De rastros sem nome:
Dragão.
Onça pintada
Edir Pina de Barros
Sagaz caminha lenta e poderosa,
debaixo das piúvas enfloradas,
na mansidão das ternas madrugadas,
deixando a bicharada em polvorosa.
E assim se vai atenta, firme e airosa,
na densa mata que, beirando aguadas,
encobre o chão com sombras bem rendadas,
pisando-o devagar, demais manhosa.
Fareja a tenra caça, estanca o passo,
olhar atento, músculos de aço,
prepara o abraço, afia unhas, dentes.
Com suas garras fortes, inclementes,
silente vai, caminha, avança e para,
apresa, de repente, a capivara.
Um gato
Edmar Guimarães
As vidas medram
dentro do gato.
Gordo não sobe
na sombra do muro.
Digere todas as presas
definitivas.
No corpo estofado,
dorme fundo.
Afunda-se nos ossos.
Inútil afagá-lo
sobre o peito.
A morte refuta
os afetos da vida.
Breve catálogo das abelhas brasileiras
Edson Amaro de Souza
I
Pequena zebra dourada,
Nossa mandaçaia voa.
Quem a vê na flor pousada
Aguarda colheita boa.
II
Quem conhece a jataí
Não confunde co’ outra abelha:
A mais mansa por aqui
Qual pequena e nua ovelha.
III
Uma uruçu amarela
Um girassol poliniza:
Na moldura da janela
O quadro se volatiza.
A ave e a calma
Eduardo Brito
A calma é uma ave que passa e vem, pousa e repousa.
Mas aqui não há mais área para que pousos se deem.
A ave não é calma: precisa comer e beber água,
e evitar qualquer ser que lhe faça presa.
A ave é uma calma invertida:
sonho de paz no coração das demandas.
A ave não quer nenhuma lógica (ou é a rainha delas?):
nidifica, voa, pousa – figuração da vida em si mesma.
Em menos de moléculas do cronograma do dia
ela reina absoluta numa paz conquistada.
Paz repousada: quando depois do voo se finaliza.
Quando encontra uma brecha nas cerdas da coroa
[em que se deita.
É aquela paz mesma, microfínea, que se traduz
[em calma
e que se traduziria em nós se soubéssemos pousá-la.
Mas não há mais área nossa para que pousos se deem,
ainda que a calma exista e seja uma ave que vem,
[pousa e repousa.
Cantam pássaros nos olhos
Elson Froes
I
Cantam pássaros nos olhos
flaps nos giros ritmados
enquanto tecem estrelas
trêmulas iridescendo no ar
Cantam pássaros nos olhos
e a todo canto um sol reluz
ramagens no bico do futuro
dourado riscando os olhos
Num rasante rotatório
ninho do futuro a caminho
de seu voo circular
plumas fulguram o rastro
O canto de pássaro em sol
plumas cantam reluzentes
dourando voo no espaço
plumas relâmpagos ecoam
II
Ex-pássaro pluma e olhos
só os voos do passado
o espaço se curva sem asas
o sol não brilha mais
suas penas não douram
sobre o círculo azul
leves os galhos das garras
sem ninhos nem bicos
nas frutas
Camanáu8
Elizabeth Abreu Caldeira Brito
Uma bala,
um casaco de peles.
Um doce,
uma vestimenta.
Uma bala
um casaco de peles,
soo9
ao chão.
Derme aconchega.
Exterminação...
8 Do tupi: caça
9 Do tupi: animal, bicho
Paisagem
Eunice Arruda
Helicópteros
sobrevoam
os assassinos do dia
Pombas
pesadas de símbolo
tentam voar
O avesso do espelho
Fábio Júlio
de um lado o lobo refletido no espelho.
do outro o rebanho de espectros
[foi dele que lhe tirei]
presas nas paredes empoeiradas,
as sombras.
há mil espelhos na casa, mas em nenhum vejo seu rosto.
esse objeto que encobriu as teias do destino
partiu as memórias de sua juventude e suas virtudes
[em mil pedaços.
não mais o vejo.
dezembro passado: um floco de neve cai em seu
[umbigo e nocrucifixo impostado
[sobre a penteadeira.
o lobo, calmo, agora observa por detrás dos
[galhos ressequidos
o mancebo borrifando um perfume doce lançando-o
contra o espelho.
o rebanho mergulha em cada gota adocicada que
[se espalhou pelo chão.
nessa fragrância que se forma um rio em que nadam
[contra a correnteza agora só há rachaduras:
como o gelo trincado, como uma casa a ruir.
nus, alma fria, água gélida.
aquela face juvenil me olha, mas nela não há olhos,
somente o lobo que sereno ri.
na vitrola um mancebo canta um rito folclórico,
em sua face havia uma boca vermelha de luxúria,
como uma maçã cortada por um punhal que sangra.
o mancebo rola sobre a neve coberta por
[cacos luminosos
o rebanho rola opaco e pálido sobre sal, cravo,
[pimenta e pétalas de flores ressequidas.
e é nesse instante em que ocorre o sacrifício
[e o lobo alcança o seu trunfo.
A solidão dos cães
Fernando Campos
A solidão dos cães é sem preceitos.
Não vem de águas ou por
melismas.
A solidão dos cães decresce com a lua.
A solidão dos cães se acrescenta à lua.
A solidão dos cães vai direto ao ponto,
a solidão.
A solidão dos cães dispensa
qualquer volta,
qualquer curva,
preitos.
Quando pensamos que não,
lá estão eles,
seus olhos turvos.
Mantêm certa distância,
por receio.
A solidão dos cães se confunde com nossos próprios dias
— nem severa
nem cúmplice.
A solidão dos cães.
Leão
Filipe Artur Queiroz
O bicho que como o filhote
Não é fera
É homem.
Aquário
Flávia Savary
Janela tonta, inválida,
Afogada entre algas
De plástico.
Janela de água,
Janela de nada...
Janela de tédio
Do peixe no aquário,
Presa de meninos
Presos em prédios.
A cabra
Florisvaldo Mattos
Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –
teu pelo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.
Barroco
Francisco Perna Filho
O touro
invade a noite.
Firme, fixo,
arrastando os cascos,
na maciez das folhas.
Seus passos,
prolongando as sombras,
seguem o instinto,
traçam o destino.
Calada,
a flor intata espera,
do outro lado da noite,
os seus fantasmas,
a sua fera,
não vê saída.
De olhos rotundos
o animal avança,
não se comisera,
é fera:
cisca,
funga,
urra,
erra.
Eros
no labirinto.
Dois cavalos
Gilberto Tadeu Nable
Existem dois cavalos, o estético e o político, e
que o romancista hispano-americano deve montar
em ambos ao mesmo tempo, ou ainda que talvez
esses cavalos sejam um só e o mesmo, porque toda
obra literária fiel a suas premissas e lograda em sua
realização, em sua expressão, tem um significado
social.
Carlos Fuentes - Anais do 1o e 2o Simpó-
sios de Literatura Comparada. Belo Horizonte:
UFMG, 1987.
1
Para ser um poeta latino-americano
é preciso saber montar em dois cavalos,
conforme o que nos circos se apregoa:
dois cavalos, mas de uma só vez,
um pé no estribo de um, e outro pé,
em pelo, firme, no lombo do outro.
2
Se montado apenas no cavalo estético,
é bem menor o risco de cair da sela.
Um cavalo arriado e que tem rédea,
animal de marcha que gosta de bridão,
penachos, antolhos, loro e barrigueira.
E nem dá coice, tombo ou tropeção.
3
O cavalo político é animal coiceiro,
não aceita arreio, cisma de empinar,
destemperado, refuga e corcoveia.
É um corcel da cabeça empinada,
pelagem, orelha e a crina eriçada,
amigo encantado do galope ligeiro.
4
O poeta latino-americano deve
saber montar nesses dois cavalos,
um bem armado e o outro no pelo,
meio cavalo de Troia, meio unicórnio.
E não pode ficar tão longe do seu povo:
jóquei de clube, mas peão de auditório.
Fio de luz
Hellington Vieira
amor
de andorinha
está sempre por um fio
de luz
Uma noite, uma gata
Henrique Chaudon
Ela está agora em meu colo, enrodilhada, e serenamen-
te ressona confiante. Para ela, o mundo lá fora não existe.
Apenas ela e eu, tarde da noite.
Passo a mão em sua cabeça, desço ao pescoço, ao dorso,
até ao fim, que se encontra com o início, de onde recomeço.
Agora lhe afago o queixo, onde sinto todo o seu con-
tentamento. Olhos cerrados, ela se entrega totalmente.
É assim quase todas as noites, enquanto diante do mo-
nitor de led vou assistindo ao mundo lá fora, distante, como
a um filme distópico, bizarro e cruel. Facilmente passo a outro
filme onde vejo as belezas e maravilhas desse mesmo mundo,
tão contraditório.
Agora saltou de meu colo e me pede água. Levanto-me
da cadeira, vou ao banheiro, abro a torneira e ela bebe na con-
cha de minha mão. Sinto-me, a um tempo, senhor e vassalo.
Não poucas vezes reflito sobre a nossa relação. Cons-
truo analogias, humanizo essa proximidade, busco saber
quem, dos que já se foram, está aqui hoje comigo, neste corpi-
nho que me aquece as pernas. Mas não sou budista, não sei se
creio em metempsicose.
Ela cobriu o focinho com a pata esquerda. Faz um frio
leve e saudável, a lua já vai minguando, amanhã será um novo
dia. De minha janela verei o dia renascer, ouvindo galos, bem-
-te-vis e os papagaios estridentes.
As novas folhas do ipê já brotam, o sol aparece a cada
dia um pouco mais à direita, e mais cedo. Começam os cantos
das sabiás.
Antes que esqueça: consegui ver a conjunção da Lua
com Júpiter e Saturno por três noites.
E ela dorme, apenas dorme.
A eternidade é uma gata adormecida.
O voo do carcará
Hernane Borges de Barros Pereira
A luz que me ardia
permitiu-me vê-lo planar
sombrio
sereno
pairando
olhando
mergulhando
no nada.
Morreu Filipa de Lencastre
Horácio Costa
Não, não a rainha, ou pelo menos
não aquela rainha que todo mundo conhece,
mas a do-lar, a deste lar,
a Filipa, minha querida chow-chow,
e se foi assim, não mais que de repente.
O cordão da sua guia extensível arrebentou
quando ela corria como um bólido
para ladrar contra o seu inimigo no 1,
o golden retriever Zé Carlos, que mora
rotundamente na torre ao lado.
Grande celeuma canina mas ninguém atacou
ninguém, tudo só latidos escandalosos e
comme d’habitude, seguimos em frente.
Na pracinha onde todas as noites eles
dão voltas antes de dormir,
aqui dentro deste condomínio,
ouço um ruído e alguns gemidos
às minhas costas e corro à Filipa caída.
A cena não tardou mais do que quinze
segundos de pura impotência e
logo tinha ela já expirado.
Trato de reanimá-la mas
a grande língua roxa que saía da boca
e o olhar baço, falto de qualquer
contato visual, me confirmam
que a nossa companheira da alma,
a Filipa de Lencastre, já mais
lá não estava. Na manhã seguinte
levo ao veterinário o corpo
para que seja preservado em ambiente
refrigerado e peço uma autópsia:
demorará cerca de 60 dias.
Este não é um poema sobre esses dois meses
que virão. Três dias depois, a morte já impôs
o seu calendário de morte. Já chorei e
contei para o Francisco e a alguns amigos
o que aconteceu, e deles recebi apoio.
O meu tempo humano, com bancos,
efemérides, jornal, está rodando
para sua certeira consumição.
O esquecimento já está competindo
com a ceifeira e tem a certeza de que
a médio prazo dela ganhará. Esta,
paciente, permite-lhe o exercício
de sua certeira ilusão.
Nos próximos dois meses, talvez antes
de que a causa mortis venha a ser
estabelecida, o esquecimento, teimoso,
debalde flexionará seus músculos.
Este não é um poema sobre a luta
entre tais contendores clássicos
na indócil arena da minha psique.
Nem eu, nem eles, podemos esperar
variação nenhuma memorável
e sequer digna de um poema,
no episódio, triste por certo,
da surpreendente morte da Filipa.
Este é um poema sobre o Achado
de Assis, o companheiro mestiço
da fulva chow-chow racée.
Eu vivo no tempo e pratico a memória,
assim como o esquecimento sua sina.
O Achado, não.
O tempo dos cães é sem tempo,
o que chamamos tempo.
O Achado não se convenceu
da morte de sua mestra, cadela-
alfa, amiga de correrias matinais
e dona da rotina de ambos,
a quem ele sempre deixava
comer primeiro, beber primeiro,
agir antes dele, que se submetia
de bom grado ao pacto que fizeram
quando chegou, como garantia
de que a ordem entre ambos era
aquela, e natural, e harmônica.
Não tocou bebida ou comida
o aprendiz viúvo, por dois dias. Cada vez
que saio com ele do apartamento
esquadrinha todas as plantas e pedras
do caminho: pelo olfato procura Filipa.
Ontem e hoje correu até o ponto
em que ela caiu e morreu e voltas
e voltas deu no espaço
cheirando cada milímetro.
Quando o solto da guia para correr,
pára a cada 30, 50 metros e olha
para trás, com o corpo e particularmente
as orelhas alertas. Ela virá? Se esconde
a minha Filipa? Logo me interroga
com os olhos e lhe repito a terrível nova
que não decifra.
No apartamento, não me faz companhia.
Hoje bebeu água, há pouco. Quase três dias
a secas. Não uiva, não dorme.
Afinados estivemos nestas últimas
três noites insones.
Mas a prova de que o seu tempo
e o meu diferem é que escrevo
sobre o jogo de cartas marcadas
entre o esquecimento e a morte
e sei muito bem que desta a vitória final
é inevitável e, pois, benfazeja.
Enquanto escrevo aqui está Achado
a três metros de mim, deitado
precisamente no lugar da Filipa,
onde ela se colocava durante os meses
de calor nos seus sete e meio anos de vida:
na frente do ventilador que por ela girava
o dia inteiro, e mesmo a inteira noite
para que se sentisse mais confortável
debaixo da camada de pelos
que caracterizam sua raça.
Achado nunca ocupou esse lugar.
Era o da Filipa.
Não mais.
Agora ali ele deita, ao pé do ventilador
desligado.
Osasco, 29 VII 2020
As asas do colibri arrastam o poente
Hudson Santos
As asas do colibri arrastam o poente
até as águas noturnas
do tempo
há uma galáxia de coisas perdidas
no sul do seu rosto
na arquitetura fluvial do seu corpo
há um nome escrito na água
o colibri é uma ave que fugiu do céu
e pousou apenas em flores sem nome
antes do princípio
o colibri morre no voo
depois de velejar em torno de uma rosa
Uma Abelha ao Sol
Idelma Ribeiro Faria
Uma Abelha ao Sol
Do alvorecer ao anoitecer
Com o Sol a pino
de flor em flor, sem outro norte
se entrega a abelha a seu trabalho
que não tem fim.
E assim prossegue até a morte.
Não pelo mel, pela colmeia
Ou pelo amor a sua rainha
Ou a seu labor.
Mas porque este é o seu destino.
Romaria
Iderval Miranda
O leão de Canindé acorda
como um passarinho calmo e triste
e fixa com seus grandes olhos
a alegria das pedras que se encontram.
Lá fora,
a vida peida e se abotoa.
A náusea e o vômito
Idmar Boaventura
A náusea:
porcos deglutindo deuses
numa terça-feira gorda.
O vômito:
porcos e deuses ganindo
na quarta-feira de cinzas.
Abismo
Inês Ferreira da Silva Bianchi
Se não amanhecer pássaros
abrir janelas para nuvens
dançar noturnas constelações
serei pedra para o poema.
Ele surge quando desapareço
e me devora oceano
num vórtice de inquietudes.
Selvagem
Isa Corgosinho
Que labuta
do cão
para ser gato
do rato para ser cão
e não estar nas garras do gato
Que labuta ser gato
ter sete vidas
invejar o hábito
do tigre que devora
homens e espaços
Que labuta ser cão
que ao homem dedica afagos
sem as garras do tigre
e a desconfiança felina dos gatos
Que labuta ser homem
e cultivar hábitos de rato
rói o pão dos aliados
entrega o cão
à fúria dos tigres
e toma pra si
a ilusão das sete vidas
do gato
rouba a infância
dos homens --
afagos leais do cães --
e a entrega ao holocausto!
Bolo de milho
Isadora Salazar + Thienne Johnson
(Futuro = 1% x 7bilhões – 0.0083 x 7 bilhões – 592024
x 300milhões população afetada)TJ
Sobra o Humano quando todo o mais naufraga: quan-
do a cadela abandonada no meio da pista da BR volta para
casa; quando a cadela abandonada grávida no meio da BR
repleta de carros em alta velocidade volta para casa e é barba-
ramente espancada; quando a cadela abandonada grávida no
meio da BR repleta de carros em alta velocidade volta para
casa, é barbaramente espancada e recolhida por uma vizinha;
quando a cadela fiel e abandonada prenha no meio da pista
da BR repleta de carros em alta velocidade volta para casa e é
barbaramente espancada, recolhida por uma vizinha que de-
nuncia os maus tratos desse animal a um órgão do Estado;
quando a cadela abandonada no meio da BR repleta de carros
em alta velocidade volta para casa, é barbaramente espancada,
recolhida por uma vizinha que denuncia os maus tratos em
um órgão do Estado e o servidor que recebe a denúncia en-
cobre esse delito; quando o servidor encobre o delito de maus
tratos enquanto brada em suas redes sociais “salve as vítimas
do outro lado do mundo”, mas não é capaz de denunciar a
briga do vizinho que espanca barbaramente a namorada no
apartamento do outro lado da rua. A interrupção [fora das
câmeras] das brigas do outro lado da rua não gera likes; o
resgate [off the tape] da cadela espancada e submetida a maus
tratos e abandono não gera cliks; o aborto espontâneo da mu-
lher espancada não gera fluxo; o pão que o imigrante anônimo
não come não gera holofotes; o lábio leporino não operado de
mais uma criança vítima de intoxicação pelo mercúrio derra-
mado nos rios afluentes dos garimpos da Amazônia não gera
engajamento; a vacina que não chegou ao braço de mais uma
vítima indígena ou de trabalho escravo no meio do que um
dia foi uma floresta não gera daguerreótipo ou repercussão na-
cional; os milhares de civis trucidados pelas 59 guerras ativas
estimadas em 2024 cuja cobertura midiática não interessa aos
verdadeiros donos dos carros não gera passeatas de parar as
pistas da BR ou investigação por uso de armas químicas ou
genocídio. Em silêncio, a vizinha do outro lado da rua ganha
na Justiça o direito de ser a tutora da cadela abandonada e lhe
dá o nome de Muria. Em silêncio, sobra o Humano quando
todo o mais naufraga.
Serpentário
Ito Pedragrande
Arrasto-me segurando a mão de Cleópatra.
Vagarosamente vou entre pedras e torrões,
Em nome de Eva, Helena, Maria Bonita e Yoko,
Do Nilo ao Meia Ponte, chicoteando em vaivéns,
Passando por labirintos de ruas com nomes ilegíveis,
Acima das sobras, dos lixos nos quintais do mundo.
Arrasto-me pelos tempos das brumas aniladas.
Arrasto-me fria, deixando peles pelas esquinas,
Sobre moitas espinhosas, asfaltos quentes
E empoeiradas estradas, entre rastros ancestrais.
Arrasto-me ferida sob olhares desconfiados e repulsivos,
Entre faiscados arbustos, chumaços de cabelo, cajados.
Arrasto-me em sono profundo de noites quase eternas.
Por entre múltiplas interjeições, infindáveis palavrões,
Arrasto-me serena, como serenamente nunca me olham.
Arrasto-me nos esgotos da humanidade,
Nas enxurradas da humana idade,
Entre Odisseus e Macunaímas, Sátiros e Curupiras.
Arrasto-me entre gotejares e jorrares, entre a fonte e a seca,
Covas e berçários, entre a fome e o desperdício prossigo.
Meu arrastar dá ordem a desordenados lamentos.
Não me entendem, mas me arrasto e me arrasto...
Fosse eu um pássaro, a gaiola estaria me aguardando.
Fosse eu um peixe, o anzol estaria já iscado.
Fosse eu um homem, só ilusão e desgosto.
Não sou nenhum desses. Sou o que não se percebe.
Fora do meio, longe do miolo, corrompo a seleção natural.
Não preciso de casa, não preciso de emprego,
Não preciso esquecer nem lembrar de nada.
Rir? Também não. Muito menos chorar.
Chorar? Nem mesmo pelo seu coração esnobe,
Um ingrato e perigoso coração
Que por pouco não me envenenou.
Arrasto-me.
Cavalo azul
Ivan Junqueira
E assim de azul vestiram tua imagem,
outrora esboço lento e fatigado,
andrajo dissolvido na paisagem
do tempo, como um gesto abandonado.
Recordo tuas crinas, teu selvagem
perfil rasgando o espaço calcinado,
teus flancos de aleluia, tua linguagem
onírica - monólogo cifrado...
Depois não vi mais nada: em meio à bruma
dos píncaros desfez-se teu clarão.
Às vezes, todavia, quando o grito
de minha infância acorda a escuridão,
ainda ouço teu tropel pelo infinito
- catarse azul, visão, corcel de espuma!
Primeiros raios de liberdade
Izaias Gabriel
Na imensidão da planície verde,
Onde o céu encontra a terra,
Um potro, recém-nascido,
Explora os segredos que a vida encerra.
Seus passos são leves, incertos,
Em pernas que aprendem a dançar,
Os olhos refletem a vastidão,
E a liberdade começa a pulsar.
Cada vento traz uma história,
Cada sombra, um convite a correr,
O mundo é vasto e cheio de promessas,
E ele descobre a alegria de viver.
Corre, potro, nas planícies do sonho,
Sob o sol que abençoa o seu trajeto,
Há um universo nas pastagens,
E o horizonte, seu único teto.
O futuro é uma canção que ecoa,
Em cada galope, em cada salto,
E ele sabe, na essência do momento,
Que a vida é um presente, um asfalto.
Nos olhos do potro, brilho puro,
O reflexo das estrelas em sua jornada,
E a terra, generosa e vasta,
É o palco de sua dança iluminada.
A escalada
João Batista Melo
Por que existimos tão frágeis e efêmeras? Por que sem-
pre em busca de um prazer que mal começa, já se extingue?
Ela se perguntou enquanto escorria dentro da gota de mel,
rumo ao fundo do pote, onde outras formigas já flutuavam
inertes no meio de um lago dourado.
Haicais
Johny Guimarães
têm sido
duros os dias
à espera do cavalo azul
na areia da praia
os olhos do peixe morto
e um silêncio azul
o silêncio da aranha
e o drama da mosca
na trama da teia
Não se deve matar algo tão belo
Jorge Amancio
para Isadora Salazar
borboletas no rio guamá
flertam na mata
do mangal das garças
néctar das flores leoas
doces na boca da amada
lua de mel no telado
brutas lagartas
amanhecem borboletas
dançam à luz da natureza
lua de beleza sob o sol
mulher -búfalo-borboleta
refloresce alvissareira
tão vento, tão raio, tão fogo
dia ditoso, final de tarde
floresta engole a escuridão
A nervura das coisas
José Luís Monteiro
Quando a nervura das coisas
me fala
do teu coração delicado,
olho para os mosquitos
atarefando-se no meu quarto
enquanto a noite
lhes sobra
para tantas viagens.
De vez em quando
a imobilidade destes seres
liberta o muro
da sua brancura
e penso em Fernando Pessoa
visitando descaradamente
a sua alma e o seu corpo, para ir chegar
à língua do cérebro,
até entrar
na vigilância do silêncio
ao sitiar o mundo.
Mirmecologia
Josias Padilha
na calada da noite
formigas laboram distâncias.
riscam linhas de perpétuo movimento.
traços creptantes para ouvido absoluto.
aquele absoluto capaz de alcançar
o estalo de sua própria impossibilidade:
o estalo do improvável silêncio.
.
na noite calada
.
as formigas laboram creptâncias.
concertam na acústica do escuro.
estalidos INsonDÁVEIS:
sonância pulsante que reverbera tudo
o que move
Polifônica alegria
Juliete Oliveira
é da fala das outras que nadam na superfície
[da minha língua
que elaboro o cão raivoso sílaba a sílaba
buscando saída do labirinto enganoso e frio
afundo, na maioria das vezes
submersa enxergo mais
guiando o cadáver em busca de quem sou,
fui, ou serei
sempre uma encruzilhada para depositar as oferendas
na cabeça do santo moinhos e vendavais
na saia da mulher-guia a anágua de cristalina alvura
um rótulo, marcas mapeadas nas linhas quiromantes
dos seres oníricos que me buscam
saltando sobre mim.
O cão e o câncer
Júlio Machado
E contra as verdades de Deus,
o cão comido pelo câncer,
sem mineiros para a crua,
difusa solidariedade.
Vede como prima, vagamundo
no quintal sem ervas,
em ouvir estrelas de murcho brilho,
ou adivinhar, entre pus e urtigas,
antigas violetas (mesmo esterco,
sem dar por isso).
Lázaro ou lunático de evangelho,
não reconhece mais a água,
não teme ao fogo.
Árcade de ovelhas em tosquia,
não sabe quando é noite ou quando é dia.
Esquecido do que fora o céu
e belezas,
esparge inconsciente, entre incertezas,
seu bafio álacre de carne podre
em tons de ocre.
Mas, veja-se: impassível.
Não daria de si
sinal algum de sofrimento,
não fosse a lágrima amarela
que verte se percebe,
contra o esfarelar de sua pele,
a integridade das pedras.
Mas como, em meio à dor,
esquivar-se da matéria?
Ou, sem morfina,
acalentar o espírito?
Sabe: devia morrer,
mas não o morrem.
Há mesmo uma fina crueza
no ato de sobrevivê-lo,
embora não se lhe notem,
mesmo nas unhas em degredo,
sinais de desespero.
Busca apenas, desancado e torto,
em quartos, flancos, frangalhos,
um qualquer restolho
dos olhos, que secaram,
dos dentes, que caíram,
dos pelos, que voaram.
E depois,
um só cancro de orelha e rabo,
esperar que alguém,
por nojo, piedade ou trinta dinheiros,
o enterre ao pé do muro.
Como a cidade mesma,
ao pé do morro.
Gatos veem demais
Júnior Ratts
Sinto que os gatos veem
Demônios em mim
Eles me encaram na rua
Furiosos
E miam alto
E às vezes avançam
E conseguem me arranhar
Eu queria também
Poder enxergar
As entidades que me
Consomem
Mas me acostumei
A ser um bom anfitrião
E quando posso
Sem incomodás-la
Grito e me rasgo
Tal gato comendo gato
Fábula
Juraci Dórea
Homens e porcos
não dormem no mesmo chão.
Os porcos não são humanos.
Os porcos se iludem com bananas,
circo e pão.
Os homens, não.
Seriema
Laércio Majadas
Majestosa rainha
Das penas.
Com suas meias rosáceas,
No seu galope
De ossos...
Rompe o cerrado
Com sua tiara
De fios.
O Tempo E Seus Cascos
Lara de Lemos
Para Laury Maciel
Um cavalo corta o pasto
no verde do descampado
um cavalo corta o vento
na dança dos arvoredos.
Um cavalo corta o corpo
de meus ancestrais perdidos
um cavalo corta o peito
fere o coração ferido.
Um cavalo corta o tempo
no nevoeiro esquecido
um cavalo corta o pasto
e perco gleba e destino.
O peixe
Lenilde Freitas
Nada
o peixe na lua
espelhada na água.
Impele,
leve como num sonho,
o bojo vazio.
Alheio
à coruscante dádiva
— que ele sabe breve —
enxágua seu longo silêncio
no fundo do rio.
Sotão
Liana Timm
um gato no teclado do vizinho espreita
o sol do abandono
ameaça chover!
um mormaço ronrona
no oco da cumieira
Abutre
Lílian Almeida
insana
procuro o judas
o torpe nas minhas carnes.
há de haver um lugar onde ele esteja
e eu o veja nos olhos
– cara a cara.
hei de revirar a pele.
trocar as roupas que visto como máscaras
em busca do abjeto em mim.
não há outra salvação
a minha mesma
frente a frente ao que me mata e apodrece.
e ao encontrá-lo, chorarei a dor última
de ter perdido quem fui para o que nunca serei
de deitar sangue – o meu e o dos meus
no rastro dos meus pés pra nascer lavandas.
chorarei a falta, a imensa falta
de um coração que sinta mais do que saiba
e reconheça o serviço prestado pelo urubu
em dias de olor de lírios.
Cavalo (ou onde nascem as ondas)
Lisley Nogueira
desenfrear-se galope
urgente ímpeto
a ignorar o tempo
esbaldar-se
à melodia da crina
de espécie ora trêmula ora impacto
: o cavalo em extremos
a se apropriar do caminho
como se fosse
-apenas como se fosse-
aliado do horizonte que o molda.
Escudo
Luciana Barreto
Vi em cada um dos teus olhos de gude
o espelho infernal da minha busca
em vão miro a tua órbita esquerda
– translúcida? –
abrigando mil vidros cegos
e azuis
e o escudo escovado de Perseu
Inutilmente perscruto o outro olho
(ainda mais transparente)
e no fundo do fundo do fundo
o vazio do mundo ali estatelado
a me puxar mais e mais e mais
para aqueles ladrilhos intocados
Emerjo
e abro – com força –
todas as minhas pálpebras
tarde demais
: a ave em looping perfura a piscina.
A visita do lobo cinzento
Luciano de Castro
vi que não era bicho daqui
guará, jaguatirica, quati
era um bicho estrangeiro
não era desse mundo de cá
quando vi, estava ele lá
me olhando sereno
um grande lobo cinzento
de grandes olhos amarelos
enorme, imponente, hierático
não sei como entrou no meu quarto
tarde da noite, horas mortas
morte da sorte, horas tortas
o bicho me deixou confuso
não era sonho, era real
ali, parado, do lado da cama
será que ele vai me atacar?
se ele quiser
faz meu corpo em estilhas
os lobos são seres sanguinários
ainda mais os cinzentos
mas esse era tranquilo
não me atacou
não me estilhaçou
olhou-me fixamente
depois deitou-se
aconchegou-se no tapete
e mansamente
adormeceu.
Enigma
Luís Pimentel
Para onde fogem os pássaros
em sua agonia?
Como enfrentam a morte
quando se anuncia?
Será que se escondem,
como os elefantes,
muito além dos montes?
Onde eles se exilam?
Onde se desnudam?
Como se aniquilam?
Que bater de asas
diz que o pássaro em chamas
tem o bico trêmulo?
Como se despena?
Despenca do galho?
Vira luz efêmera?
O pássaro em pânico
não lamenta a sorte,
não celebra a morte,
pois só sabe a vida.
Qual será o canto
de sua despedida?
O perseguido
Luiz Sentinela
Sou perseguido por linhas
e pontes invisíveis
de informações etéreas
carregadas e penetradas de poesia;
como o som está para o ouvido,
como a água está para o corpo,
para a terra e o arco-íris;
sendo portal natural de riquezas,
como o sorriso permanente do golfinho,
como a alegria da minhoca
no escuro molhado da terra,
e o deslizar devagar do caracol,
que leva a casa nas costas.
Último instante
Luiza Mendes Furia
Vi uma abelha agonizar
na mesa sob a palmeira
– território branco
e áspero.
A perna quebrada
o voo impossível
apesar das asas.
O corpo
antes ereto
em delicado
equilíbrio
cada vez mais
curvo,
fechado
em seu casulo.
A morte é redonda.
Pavão
Lupe Contrim
Ritmado andar azul
e calculado
de um solene pavão
— longa cauda em flor,
adorno de linguagem
e proteção.
Num grito gutural,
agudo como soluço do mundo,
o súbito apelo da solidão,
no corpo prolongado
de plumas e surpresas.
Ao ver-se observado
desabrocha em súbito arco-íris,
provando que a beleza
pode ser escudo iluminado
e que a vaidade
lhe confere uma auréola de certeza
na inutilidade.
Dentro da paisagem
cortada de pássaros
um vôo se cala,
enquanto o pavão cintilante,
aberto em primavera,
caminha pela terra um orgulho
sincopado,
sabendo que a natureza
derramara nele
um gesto distraído e delicado,
no instante em que criava o verme
e sonhava a estrela.
Joaninha
Marcela Albanesi Parrado
pintada
vai pra rua
de vermelho
a gordinha
com suas asinhas
de fora
cora a cidade
não esconde a pinta
de mariquita
e pinta pinta pinta
como uma lady
O tigre e a estepe
Marcia Tigani
Vem da estação fria
a grama queimada
em terra estéril
Arrepio na espinha :
grandes olhos
negros como nanquim
vigiam o mundo
sondam seus perigos
sublimam diástoles
Pressentem asteróides
sobre cabeça e torso
e com assombro
olham da planície à diátese
descobrindo a solidão
(só a palavra o acompanha)
As dores estão guardadas
numa caixa de metal
à espera da partida
Morrer tantas e tantas vezes
e retornar à estiagem
como pedra, argila ou totem
Hipocampo
Marco Lucchesi
Vaga
nas solidões
marinhas
mágoa
das estrelas
pudor
das actínias
o sublimado
sonho
onde se salva
na pátria
de crepúsculos
perdidos
O Cão
Maria Carpi
Tive vários cães, mas esse
espera-me, à hora certa,
na saída da escola e carrega
a pasta de cadernos entre
os dentes e espera-me depois,
em incerta hora, para morrer,
inchado entre a alta vegetação
e o terreno de meu assombro,
onde arrasta a ferida deflagrada.
Esse, a segurar a folha que escrevo.
No escuro deste mundo canibal
Mariana Ianelli
Nada sei sobre cachorros
Seus latidos me enervam
Seus excessos eufóricos ou furiosos
Seu faro invasivo
Suas cavalgadas caóticas
Tudo isso me exaspera
E me desgosta como desgostaria
A um gato.
Mas quando meu cachorro desaba com estrondo
Estirando no chão seu porte de corça
Quando vou até ele
E ele me estende as patas
Ofertando seu peito alto
Quando toda a energia excedente do dia
Já foi drenada
E seu corpo é tenro e felpudo
Eu o abraço
Me aninho junto ao seu peito
Aspiro seu odor quente de carne
E ele bufa
Com a força que ainda lhe resta
Ele bufa (de olhos fechados)
Como se escapasse todo no ar
Como se já sonhasse
Ficamos os dois unidos
Rendidos no escuro deste mundo canibal
Aglutinados numa só figura
Que me regozija e o regozija
E esse regozijo (essa figura) é o que de melhor sei
Sobre o amor
Esse amor tanto mais sagrado
Quanto mais animal.
Se eles falassem
Mário Alex Rosa
Se os burros falassem,
o que diriam aos homens?
Se os macacos falassem,
o que diriam aos homens?
Se os cachorros falassem,
o que diriam aos homens?
Se os pássaros falassem,
o que diriam aos homens?
Cuidado com as suas burrices,
responderiam os burros após recusarem tal comparação.
Cuidado com seus pulos,
responderiam os macacos depois de alguns saltos.
Cuidado com os comandos repetitivos,
responderiam os cães ao fingirem de mortos.
Cuidado com as suas gaiolas,
responderiam os pássaros ao voarem.
Entretanto, como Ovídio alertou há séculos:
[“se os bichos falassem, nada diriam.”
Sobre a pedra
Marli Fróes
esverdeado, tons bronze
entre matizes
rupestres
no lajedo
corpo ectotérmico,
entre fuligens
e musgos
mistério invisível
luz que esconde
escuridão que revela
réptil escamado
elegância rastejante
na caatinga
patas sobre a terra
anda sobre águas
conexão com a natureza
convite à voz
do silêncio,
aos sonhos
e sentidos
portal entre mundos
geometria triangular
axé das criaturas
canto das florestas
***
calango tango
eu também quero calanguejar
quem não tem couro duro
não atravessa o rio
pra não se molhar
Natureza morta
Marly de Oliveira
A mesa, a toalha branca,
e sobre a mesa, plácido,
como em puro repouso,
um faisão dourado.
De que aljava, de que arco,
sobre o mar, que tardes,
que navegando céus
azuis de aves e barcos,
de que mãos, de que cega
vontade de ferir
terá partido a seta,
direto ao voo, ao peito,
às plumas frias e altas?
Que cega pontaria
te tombou no horizonte,
como um feixe de luzes
tuas penas brilhantes,
tua mínima vida
colorida e deserta?
Vejo teu corpo, o claro
movimento retido
na pousada asa aberta,
e penso em mim, em ti,
urdo os fios da trama,
e temo a minha seta.
No meio de uma travessia
Mylla Taynah
No meio de uma travessia
O Chapim-real abre o seu canto
Enquanto folhas avermelhadas vão ao chão
E assim, surge um lindo fundo de outono
No meio de uma travessia
O encontro glacial do branco no branco
Onde poucas coisas se encontram
E outras se camuflam como a raposa polar
No meio de uma travessia
Uma renovação na natureza acontece
Entra o azul de sanhaço e de anil na era
E o desabrochar da primavera prevalece
No meio de uma travessia
Aproxima-se o tempo da frutificação
Cores por todos os lados
A festa dos vaga-lumes vai começar
O gavião
Myriam Fraga
O que o sustenta
É o centro,
Onde se apoia o compasso.
Ele mesmo faz a rota
Da órbita
Que não ultrapassa.
Assim o vôo é espiral
Amplíssima e regulada,
Expectante planar tranquilo
Em que vibra uma emboscada.
E para que não se sinta
Ausente,
desvinculado,
Existe um fio estendido
Em seu olhar imantado,
Um fio que o liga à presa
E que, rápido, se enovela
No mergulho vertical
Onde a morte se desdobra
Em grito
Das suas garras.
Haicais
Nara Fontes
mormaço na tarde
quero-quero alerta:
temporal em marcha
na beira do lago
pernilongos esperam
pernas distraídas
vento minuano
faz lobo-guará
voltar para a toca
Haicais
Neurinan Sousa
na pedra do dia
o tijubina fareja
minhas incertezas
o canto do galo
risca a quentura da tarde
um cão se espreguiça
nos olhos do búfalo
o reflexo das acácias
na paz do poente
Viúva-negra
Nívia Maria Vasconcellos
Nociva e voluptuosa seda,
fia a intriga, urde a trama,
emaranha o enredo.
Moira, Parca.
Tece do homem a tragédia,
prende em teias seu destino,
é o texto que não quer ser lido.
Disfarça-se de beleza.
À flor da pele, ameaça a vida:
desgasta o corpo que visita.
Haicais
Noélia Ribeiro
sinal de primavera
canto solo da cigarra
abertura do coral
ventania de inverno
instabilidade no voo
de pelicanos e grous
sob o brilho solar
a libélula parada
com asas invisíveis
O cavalo da romaria
Odylia Almacave
Foi exaurido o cavalo da romaria
& como um graveto:
da ponte o atiraram.
Seu mergulho durou poucos segundos
& quando aterrou com um baque na mata
A fé de nenhum dos fiéis foi abalada.
O cavalo relinchou.
Um relincho tão relâmpago, único
que se hoje eu tivesse apenas três desejos para fazer a
qualquer gênio
Eu gostaria de saber o significado por trás daquele
som.
Talvez o cavalo tenha negado o ocorrido?
Foi um acidente, suas mãos suadas de tanto orar me fizeram
deslizar...
Talvez tenha sido um relincho de raiva?
Que se dane a divindade em seus corpos fracos e preguiçosos,
incapazes da estirada.
Talvez tenha sido o som de barganha?
Por favor, me ajude. Prometo cavalgar com mais agilidade,
puxar com mais força,
esperar pacientemente
pelo oitavo dia. Com
vocês; como vocês.
Talvez tenha sido a tristeza dizendo que assim é
melhor?
Estou exausto. O bem interior destrói a alma,
e a minha, que creem não existir, foi destruída há tempos.
Talvez, porém, tenha sido um relincho de aceitação?
Ficarei bem. Pressinto o descanso que me aguarda nos
Campos Elísios —
Flórida
Tamanduá
Olga Savary
Cada dia a língua
do desejo reinventa
cupins e formigas.
189
Aurora
Paulo André
A guerra de galos.
E a mancha de sangue no céu
190
Como aquele peixe
Paulo Franchetti
como aquele peixe
que se une à fêmea
e perde depois os olhos
nadadeiras e todo o mais apetrecho
da vida solitária
ligado a ela a ponto
de o coração ser um
e um o movimento e a vontade
assim também eu queria
no calor do teu corpo
como areia na praia
e chuva no mar
191
Maria-farinha
Paulo Marcelino
Maria-farinha
Paulo Marcelino
Tom sobre tom
na praia sílica areia
o bicho pernas desconfia...
Vai de lado, corre ágil, para.
OlhOs
sobre
quadrada cabeça carapaça
periscópios tudo fitam
Tac-Tac
Chispa, passa, para.
Silêncio.
Pinças peixeiras ao alto
talvez guerra...
192
Foge feito raio,
entra em toca,
se enterra.
193
Janela
Rafael SG Santos
Um pássaro peita na janela
Pendura-se se desnorteado.
Depois, recupera-se e volta a voar.
Mas é isto que a vida é:
Peitar em janelas e voltar a voar
Nem que vendavais arrebentem asas.
194
Elefante
Raquel Naveira
Quando brilha a lua nova,
Monto num elefante ajaezado de prata,
Sua cabeça ostenta
Uma pedra vermelha
Que refulge como raio,
Entre as orelhas que abanam
De forma lenta.
Saio pela savana,
No poder,
No controle;
Eu,
Tão pequena,
Sobre seu dorso,
Torno-me gigante.
Ele me leva
A lugares que não se esquece:
Campos de folhas,
Fímbrias de mares,
195
Erguendo a tromba
Em direção às estrelas.
Elefante,
Seu mistério
Faz de mim
Rainha e amante.
196
Gato em Volutas
Renata Pallottini
Chegou-se a mim, com pés forrados de silêncio.
Seu rastro sinuoso marcara-se com plumas.
Ei-lo que roça no ser humano
sua egoísta subserviência.
Recolhe as unhas, como quem guardasse
um íntimo segredo invulnerável.
Ó gato, quanto mais eu te amaria
se me houvessem rasgado tuas unhas
a frágil carne, a de afeição canina!
Afasta-se, seus olhos impossíveis
fitos em alguma outra parte.
Quedo, à distância ignora o tempo morto.
E em mim a essência morta.
197
Preditiva III
Ricardo Thadeu
O elefante, como flato,
fratura nossos sentidos.
Enquanto mito (inventado)
desmente as trilhas
dos matos.
No céu, pesado, levita
flácido
em seu voo invertido.
O elefante, lá do alto,
prediz seu voo impávido
como se caísse
de fato.
198
Aboio
Ricardo Vieira Lima
Mário de Andrade é boi de cambão.
Augusto Frederico Schmidt é um legítimo
[boi de coice. Manuel Bandeira, boi de cambão.
Carlos Drummond de Andrade começou
boi de cambão e acabou boi de coice.
Murilo Mendes tem pedaços de boi de
coice e pedaços de boi de cambão.
Walt Whitman é boi de cambão.
T.S. Eliot é boi de coice.
W.H. Auden, boi de cambão.
Dylan Thomas faz o possível para ser boi de cambão,
mas só consegue ser boi de coice.
Rimbaud é um misto, talvez o mais completo,
de boi de coice e boi de cambão.
Animais de carga e corte à parte,
a poesia é o aboio,
esse canto plangente e canônico.
Mas é também o estouro da boiada.
199
Amor Felino
Rilnete Melo
À meia-noite
a sombra no telhado
vagueia misticamente,
sem deixar rastro,
olhos com o brilho
da lua,
espreitam
pela fresta
da minha janela
e na cama,
levando-me ao céu
o gato com seu feitiço
deixa-me em êxtase
felinamente nua.
200
Dibujo
Roberto Carvalho
touros, touros, touros
todos explodem na ponta de meus dedos
e vão se transformando em nítidas formas
de touros a lápis de ponta fina
de ponta seca num caderno de linhas bem apertadas
como certas vielas da velha Pamplona
uma matrona risonha e vermelha
de braços abertos para acolher suas crias.
os animais em disparada quase todos negros de grandes cor- nos
quase todos negros brilhantes
cujas pontas ora apontam para a terra, ora para o céu
às vezes se entortam para ajustar-se às ruelas tortas
em que explodiram enfurecidos de fome e sede
depois de longo tempo abandonados
em currais.
farda branca quase neve, faixa rubra quase sangue à cintura
201
e no pescoço, a turba ensandecida de homens brancos,
alguns quase louros, muitos quase prata
uns mais ensandecidos à frente, outros tantos, às centenas,
ensandecidos pelas laterais, atiça os animais
espetando-lhes com longa vara de ponta metálica o quadril
as virilhas, suas coxas. quase mil metros de fúria ardem
ao sol de verão ao meio-dia
esticados até à Monumental Plaza de Toros,
incendiando ao fim da jornada vinte mil gargantas
sequiosas de sangue na maior praça de touros do reino de Navarra
erguida à custa da fortuna de homens da casa de misericórdia
em honra de San Fermín
para saudar um mártir
para celebrar um dia santo.
apoplética onda branca sarapintada toma repentinamente de assalto
a arena em delírio. homens esvoaçam pelos ares
para fugir à sanha de animais desembestados
agora então laçados
e novamente encurralados
até que, finda a tarde, são levados ao sacrifício.
com pesada capa rosa vivo e amarelo ouro
o toureiro avalia seu oponente
para desvario das multidões.
quer a ovação, a glória por sua arte de sangrar.
202
envolto agora em leve capa encarnada
à mão uma pequena espada curva
o grande animal à sua frente.
ao dominá-lo completamente, extorquindo-lhe
os restos de altivez
chega então à altura de o matar
de acertar-lhe diretamente o coração com o curto estoque metálico.
sua carcaça jaz, suja e humilhada, entre duas apertadas linhas
do meu pequeno caderno de desenho.
203
Tempo
Roberval Pereyr
Ladra insistentemente
no fundo da noite, um cão.
Ouvi-lo assim dissolve-me
num imenso não.
Mas um não que devora
sob todo sim
toda a vã memória
que floresce em mim.
204
Entendo o urutau
Rodrigo Ortiz Vinholo
O choro noturno da mãe-da-lua
assombra e inspira lá no quintal.
Os olhos grandes, a voz profunda,
faz com que distraído conclua
que é um fantasma, esse urutau.
Mas não há mal na voz, não confunda.
A melancolia está nos ouvidos
de quem ouve o chamado,
e o mal está nos olhos de quem vê.
Talvez por isso que fiquem escondidos,
tal como tronco desfolhado,
disfarçando-se de quem em erro crê.
205
Os peixes
Rodrigo Petronio
A forma-bexiga
Desliza hebdômada
E anônima
Pelos corpos de piche e sal
O rei verde-amarelo
Reina em sua barriga amarelo-verme
Apodrecida e cheia de inseticida
Enquanto o sol come as plantas
As estações e os edifícios
E as carnes dos pobres
Sob os viadutos e os abutres
Anunciam o amanhã em folhas de celofane azul
Os nanopeixes
Em suas maquinações
Em suas magnitudes de anêmona
Disseminam imagens
Pelos intestinos da mente e da cidade
Manchas de amianto e rastros de escorbuto
O grande peixe-navio
Submerso no ventre de Jonas imenso peixe-boi
206
Iridesce nos céus do Brasil
Sigo o fluxo do limo
Desvio dos cadáveres
Resisto à clorofila e às algas do passado
Sim elas querem me esquartejar
Abençoo as ilhas sim as ilhas elas se elevam
Milhares milhares delas polvilham o horizonte
Iluminam meus testículos os micro-peixes
As aranhas e a urina luminosa festeja meu corpo
[dissolvido por enguias
O peixe-rei
Se aproxima retém meus pulmões os alvéolos
[nadadores fluem
Se abrem em uma constelação de plástico
Os detritos verde-amarelos se misturam
[às minhas células
Meu corpo expandido corpo denso viscoso
[corpo vivo e morto
Permeado de peixes e de plantas
Atravessado por líquenes e fungos e plânctons
Entretecido por lumens e fíbulas acende
[e apaga na escuridão da noite
Imensa e oceânica noite da cidade engolida
Pelo atlas oceânico e urgente
Os peixes se desfazem em células
Os peixes se transformam em florestas
Os peixes cospem os detritos finais do Apocalipse
E ressuscitam fluem pelas ruas vazias
Capturam meu corpo em suas estrias de luz
Me erguem em direção ao espaço sem vida e sem nome
207
E eu finalmente salvo em meio aos cacos do cosmos
[em meio aos peixes
Os órgãos esfacelados
Em estrelas em uma cópula divina
Os peixes os peixes ainda posso ouvir seus salmos
208
Cavalo
Rogerio Luz
O cavalo introduz
nas formas naturais uma elegância
semelhante à da luz:
cor da pelagem, ânsia
que o calmo olhar traduz – brilho de infância.
209
Gorila
Ronald Polito
Nunca terei teu pulso, a
exatidão do instante do
soco, da força dos
dedos quando premem,
estrangulam, teus
braços, tua
cintura.
Quando esmurro os músculos dos próprios
peitos, o que faço só
se vencer, é
a ti que vivifico
palidamente,
é tua glória ainda
a causa única pelo
peso de tudo.
Mesmo treinando muito
não posso alcançar
a solenidade
que você transpira
sentado.
210
Qual rato é o rato?
Ronaldo Cagiano
Cantemos o desencontro
a vida errada num país errado
novos ratos mostram a avidez antiga.
Sophya de Mello Breyner Andresen
É um animal
sem outra angústia, senão
a inquisitorial sentença de ser rato.
Atravessando a rua,
chafurdou na lixeira do McDonald’s;
sorrateiro, como água entre pedras,
aninhou-se entre as prateleiras
das Lojas Americanas,
mas outros mamíferos, de sangue azul
e pedigree,
em sua comensalidade financeira,
deixaram a rataria à míngua;
211
sem constrangimento
ou solenidade,
fez o rescaldo do que sobrou
das enchentes
que submergiram a Havan;
numa madrugada qualquer
batizou as latas de cerveja do Carrefour
drenando sua urina
com sub-reptícia leptospirose.
Esse arisco roedor,
que deita fezes aos pés
da estátua do general
e esbulha o celeiro
de gregos & troianos,
mais que toda filosofia ou metafísica,
além das tabacarias e chocolates,
sabe que
o poder
a justiça
a política
e o capital
roubaram-lhe ciência e ideias
sem pagar direitos autorais.
E acima do insalubre subsolo
onde chafurdam, im(p)unes
os seus algozes,
212
com sua infecciosa espoliação,
o mundo – com seus vernizes e flatos –
é o verdadeiro
esgoto,
onde enérgicos parasitas
pululam em
renovado cio.
213
República dos gatos
Rosana Piccolo
À porta da noite, quando a tarde acaba em lombadas,
quando tudo são xícaras e prateleiras – os gatos então,
de todas as telhas ou terreno baldio, gatos pretos,
de todos os braseiros e navio clandestino,
gatos bárbaros (que urinam nas ágoras), gatos brancos,
donde fêmeas ovulam nevascas, gatos mandrakes,
vazando pela eternidade como lanças d’água, a mando
de ninguém mais outros gatos, dão por miar e miam,
gatos gatos, à porta da noite por aí se desfiam.
Quando o poeta, sendo igualmente viajante,
indaga à lua o destino, ela se dilata, verdejante e seca,
responde na lata – é a pata dos gatos!
214
Garça
Roseana Murray
um poema nasce
como garça se equilibra
na superfície fina
do nada
de que é feito
o espaço que ocupa
de que impalpável matéria
mistério labareda ou voo?
um poema nasce
se espraia vertiginosamente
como areia
em direção nenhuma
em sua frágil arquitetura
o caos se arruma
215
Um cachorrinho na tarde
Ruy Espinheira Filho
Neguinho se sentia especial naquele fim de tarde.
Na verdade, quase sempre se sentia
especial. Mas, naquele fim de tarde,
sentia que se sentia especialmente
especial.
E foi o que disse num primeiro e meigo
latido. Ou melhor: quase um ronronar
(o que há tempos vinha tentando aprender
com os inúmeros gatos
da casa).
Depois, como não houvesse nenhum efeito,
latiu mais alto, algumas vezes.
Dois ou três humanos saíram à porta.
Ele ficou mais contente, abanou energicamente o rabo,
provocou umas risadas. E logo estava novamente só
no gramado.
216
Não, ninguém tinha percebido como se sentia especial
naquele fim de tarde. Tão especial
que o fim da tarde ficou também especialmente
especial.
O que o comovia tanto que ele quase chorou,
mas se conteve para que não o achassem
um cachorrinho imaturo e mimado.
(Mimado, sim, admitia. Imaturo, jamais!)
E ele ficou por ali,
vendo, ouvindo e cheirando tudo
enquanto a tarde morria.
Olhos, ouvidos e faro que apreendiam o mundo
e os mundos depois dos mundos.
E Neguinho correu velozmente três vezes,
ou quatro,
talvez cinco,
de uma ponta a outra do gramado.
Ofegante, farejou algo mais precioso.
E latiu, latiu com força, latiu
até que as pessoas vieram novamente à porta.
E então também viram e saudaram
a Lua Cheia
que se erguia no horizonte.
E ele percebeu que os humanos também, olhando a Lua,
se sentiram especiais.
E assim ficaram por alguns instantes.
E logo depois ele estava novamente sozinho,
banhando-se de luar.
217
Sozinho,
mas ainda especialmente
especial.
Quantos perceberiam que assim estava ele?
A Lua, talvez, porém de longe, longe demais.
Já os gatos só prestavam atenção, egoisticamente,
às suas próprias especialidades...
E as pessoas da casa... Entendiam, sim,
algo dos seus gestos e latidos,
mas que poderiam saber do que lhe pulsava
profundamente,
do que nele era tão especial?
Abanou a cabeça, sentindo-se um pouco cansado.
Escolheu um cantinho protegido da varanda.
Deitou-se, espreguiçou-se.
Sim, seria especialmente muito bem-vindo um cochilo.
Fechou os olhos.
E, logo antes de dormir,
pensando um pouco em suas dificuldades,
concluiu,
com um amplo bocejo,
que era melhor mesmo conformar-se,
humildemente,
com ser incompreendido como qualquer outro
poeta.
218
A galinha
Ruy Proença
a galinha tem pavor ao mar
e mal sabe dar braçadas no ar
a galinha tem garras pontiagudas
para plantar-se no chão
e desejar-se raiz
a galinha cisca o terreiro
e a cal do muro
e mal distingue a quirera do sol
que se levantou no passado
e migra para o escuro
ciosa do ovo perfeito
pois nele guarda o futuro
estende sua teia de nervos
e estaca como um para-raios
219
choca como uma árvore
dia e noite
para ver maduro seu fruto
e quando um pé-de-vento
põe a poeira em remoinho
lá está ela
comandante louca
de olhos esbugalhados
ancorados no seco da tempestade
220
Glossário mínimo para
seres desimaginados
(ou poesia de circunstância)
Sandro Adriano da Silva
i.
flamingo:
rosa e vermelho
tremula turvo e solitário
sobre o lago anoitecido
ii.
um cão fere a carne –
retocando febrilmente o dia
iii.
caranguejo:
bailarino de dupla coreografia –
ladeando o que não é mar
cavando um buraco no dia
221
Traçada
Sidnei Olivio
a traça trança a vida
em traços: projetados
delineados
lentamente traçados
num esboço de astúcia
ardilosamente
corrói
destrói
descreve o rastro no texto
no contexto
sinaliza o trecho no rastro
sem hesitação
destrói
corrói
numa tração de hábito
(no hálito)
222
o vício da traição literária:
imponderável
corrói
destrói
as últimas folhas (páginas
inacabadas)
da minha tracejada-ilusão:
hífen dos desejos
vestígios poéticos do futuro
pré-traçado
223
O devorável mapingrafo
Tchello d’Barros
O Mapingrafo é um bicho invisível
Desses que se escondem nos livros
Mas dizem que ultimamente
Foi visto também em telas de plasma
Ele bem lembra uma traça gigante
Mais lindo que um ornitorrinco
Suas escamas são feitas de letras
E seus dentes são mil C cedilhas
Devora tudo que vê pela frente
Sejam poemas, contos ou crônicas
Já engoliu dois romances também
Onde passa deixa um rastro de tinta
Sua voragem por versos e laudas
Levou-o a devorar livros também
De cordéis a pesados dicionários
Comeu trinta e cinco bibliotecas
224
Mas suspeitos relatos recentes
Contam que ampliou seu cardápio
Incluindo em sua voraz dieta
O corpo e a alma dos literatos
225
Monstras
Tida Carvalho
Aracnídea tece seus contos e contas,
fios invisíveis ligam monstras
mortas convivem com as vivas,
árvores produzem leite.
Performances contadas com seis pares
de apêndices articulados, quatro pares de pernas,
Aranha montada num sapo gigante
flutua fantasma fogo fátuo.
Vira o tecido ao avesso
põe tudo na bolsa e sacoleja
esqueletos calados, fantasmais.
Nessa solidão a atmosfera esvanece
Feérica
são monstras de meia-idade
mulheres fantasmas
mulheres raposas
cabeludas carecas cuidadoras,
lindas, irascíveis, deformadas
226
maravilhosamente monstruosas
potentes, singelas
Assombram pela sagacidade em
imagens absurdas
227
Poema
Telma Siqueira
O poeta vai ao quintal
olhar lagartixas no muro.
Ninguém entende quando ele,
cego de ver, enlouquece
pela casa insone
e com seu estilete esferográfico
vinga-se do mundo.
228
Encanto selvagem
Thaís M Resende
Tenho me encantado com o poeta Manoel [de Barros]
Como uma criança que volta a ser,
e, a (re)olhar com singeleza os insignificantes pormenores
Onde, a partir desse novo vislumbre, fita grandiosidades
Como aquela menina, que um dia fui, e que
[por vezes volta, espontânea...
encantada com aquele pequeno grilo verde,
a saltar e a cair sobre minhas pernas
Ou, com o meu colo que se fez pouso para aquele
[pequenino e verdoso ser saltitante
É assim que o encanto se faz
Simples e esmiuçado, entre
o verso e o anverso
Ah menino Manoel!
229
Bate o vento sobre as copas de pinho
Tom Custódio
bate o vento sobre as copas de pinho
pouco a pouco, lento e só
segue em frente o explorador sem caminho
ruma atento pra floresta e, vizinho,
punha-se a grasnar sem dó
outro corvo sobre o pé de azevinho
gelo ralo sobre o chão, raio da manhã
passa pelo filtro musgo acima
dentre uma raiz de lenho, uma breve flor
medra como quem lembrasse do céu
roça o farfalhar sedoso do arminho
soa nítido no ar
um cristal que foi pousar sobre a pluma
quando mais além, se crendo sozinho,
junto dele só bruma
230
ouve perto o passo de um puma
231
desejo
Trazíbulo Henrique Pardo Casas
estou farto de tristezas
e de alegrias.
quero apenas um cavalo doido.
para dar coices
nesta paz amarela.
232
Pequena aranha
Uaçaí de Magalhães Lopes
Pequena aranha, que teces?
Teces a vida ou a morte?
Que teces, pequena aranha,
meu destino, minha sorte?
Nossa vida é tão vazia.
Nossos destinos são teias,
que tecemos cada dia:
barcos singrando nas veias.
Pequenina, ao que parece,
tua teia não nos guia.
Nossa vida é que se tece
numa outra teia, ungida,
que se encontra em outra via,
para além da nossa vida.
233
Os pássaros
Vera Lúcia de Oliveira
os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto
234
Onça pintada
Vladimir Queiroz
Algumas pegadas vão pela mata adentro
somem ao pé de uma árvore
onde dorme a pintada.
Quem te pintou?
Foi a mão divina.
Algumas pegadas vão pela mata adentro
somem no ribeirão
onde ruge a felina.
Quem te tornou fera?
Foi a espera no tempo.
Algumas pegadas vão pela mata adentro
somem no dorso da caça
onde se farta a grandalhona.
Quem te deixou faminta?
Foram os rebentos carnívoros.
Algumas pegadas vão pela mata adentro
some a onça,
235
sombra deusa da floresta.
Quem te seguiu?
Foi o homem...
236
Unicórnio
Walmir Ayala
Tenho um raro e terrível unicórnio.
Coração de rosa dos ventos
domo-o pelos quatro pontos
cardeais de suas patas.
Alimento-o por montes e vales inventados,
sinto-o palpitar junto aos córregos.
É meu.
É meu porque tangi suas crinas acesas,
porque aspirei seu hálito quente e silencioso
de besta solitária; é meu
porque volta ao estábulo irreal
que ergui junto às roseiras silvestres.
Tenho meu companheiro para o sonho. Às cegas
tanjo sua cavalgada que me pertence;
jogamos a cabra cega e ele permite
que eu me perca sobre sua sombra,
enquanto ri, de longe, e há ondas
237
de mar sobre seu dorso que rutila.
Meu unicórnio é de metal, é de espuma
e silêncio. Amo-o pelo amor,
e no meu prado
ele cavalga muito antes de Sirius e Aldebarã.
Prisioneiro dos desertos ele é o oasis de si mesmo,
sua claridade são as rédeas
com que ilude minha graça
de tê-lo. Ele me tem
e consente o paraiso
para salvar na sombra a minha alma.
238
239
Trilhando a cauda do tigre
W. B. Lemos
“Morrer – isso não se faz a um gato.”
Wisława Szymborska
Superior é o Seu Gato Pior.
Tem uma parte com humanos e
outra com a Coisa Incógnita,
prediz o relato do Livro dos Gatos.
É sobre ele o poema, Namorada.
Resmungando em negrume,
agora escrevo o interdito.
Eu gosto muito de Gato.
De Pior, sou a sombra mordida,
protetor da comida que come.
Velo seus sonhos e limpo seu chão,
na esperança, arranhada e incerta,
240
de escapar à vingança e aos perigos,
encobertos no dorso rajado-laranja.
Às vezes, amando (me(n)digo comigo),
Pior fica muito, muito Pior,
mas é o melhor lugar ainda.
Ninguém pode me afastar o seu branco,
porque esse branco é mercê merecida
em caminho homicida de tantos.
Ao mais, é sabido, Seu Gato é você.
241
Estruturas Sobrepostas
Wilson Pereira de Jesus
Nos labirintos do tempo
habita um touro terrível
e nos espanta ao dormirmos.
Nos labirintos do medo
descansa um touro dormindo
– quem ousará despertá-lo?
Nos labirintos da vida
perdemo-nos do nosso berço
– quem haverá de encontrar-nos?
242
Nirvana
Wilton Cardoso
Alheio à multidão
de células que o são,
de desejos que o povoam,
de pessoas que pensam
saber mais que os seus
olhos ferinos, de galáxias
que o fazem menos
que o ínfimo do pó,
de anos-luz que virão
e se foram na duração,
de deidades e teorias
que se passam por verdades,
alheio
à foto que o flagrou
e a este poema quebrado
e sem precisão, ele dorme
(numa tigela)
o sono preciso e singelo
da fúria contínua de um corpo
(por acaso) felino.
243
Caracol
Wladimir Cazé
Eremita dos interiores
de si mesmo,
íncola na caverna
(casulo que carrega
aonde quer que vá,
onde hiberna),
um caracol itinera
degraus de mármore,
moroso, mole.
No mineral horizonte
que o sol caustica,
ele delicadamente
rasteja o salitre verde
quase transparente
que desce de orifícios em seu ventre
244
e umedece a superfície de pedra,
vestígio da energia
dispendida na travessia
que acaba quando
a lesma lâmina
deposita a couraça na terra
e se libera
de seu próprio labirinto
para refletir a luz do céu.
245
Bilubi Che, o bom cão-gente — ou guia
Zeh Gustavo
Bilubi Che veio ao nosso mundo chamado casa
nem mês completo tinha. Menor dos rebentos,
o mais-com-fome, retremia-se todo,
por nada ou pouco, naquele então,
olhos fechadiços se abrindo meio vesguinhos
para tanta coisa luminosa de ver a vir.
Comia — e comia — a ração, o picutcho deitava, a fim
de dormir-sonhar. Encontrara: um lar.
E o tempo, ele foi agindo: logo-loguíssimo
Bilubi Che virou sapeco de correr-morder móveis,
viciou-desviciou de madeira e até um cigarrinho
que o achasse. Viciou-não-desviciou comer papel.
O latir, primeiro fino e repetitivo, hoje só é usado
profissionalmente, modo avisar perigos
em boa monta imaginários;
ou pedir, pra pitar, folha que cai da árvore
mas fica presinha no parapeito da janela.
Passear ele comunica diferente, o sabidinho.
246
Como bom poeta de esquina animal doméstico,
lambe caras, coleciona meias velhas e nos olha nos olhos.
Sabe disfarçar a dor de existir, na sua independente
solidão de baio de matilha, ele tão de algodão...
Bilubi Che tapacateia
suas querências e saudades
atento ao trânsito das gentes
de cujo êxodo de si
sempre pode brotar
um afago ou fortuito aviso
um reles e vil safanão
um toque de pôr a correr com tudo
ou mesmo um beijo na contramão
247
248
249
Tenho um cão invisível
Fabio Morábito
Tenho um cão invisível,
carrego um quadrúpede por dentro
que levo ao parque
como os outros aos seus cães.
Os outros cães,
quando me curvo
e o deixo em liberdade
para que brinque e corra, o perseguem,
só seus donos não o veem,
talvez também a mim não me vejam.
Foi-se formando à força de passeios,
anima e inquieta a cachorrada,
e entre os donos cresce a inquietação
e eles chamam seus cães
para que não se forme a matilha.
Talvez também a mim não me vejam,
sentado num banco,
um pouco curvado
pelo esforço de deixá-lo livre,
e embora não possam vê-lo,
250
talvez sim vejam o cão
que invisível, como o meu,
levam dentro,
a besta que nunca soltam,
o cão que reprimem
levando a passear seus cães.
251
Pássaro Vermelho
Mary Oliver
O pássaro vermelho veio durante todo o inverno,
incendiando a paisagem
como só ele poderia fazer.
É claro que amo os pardais,
esses amados de cor parda,
tão famintos e tão numerosos.
Sou a que nutre os pássaros, temente a Deus —
sei que Ele tem muitos filhos,
nem todos de espírito audaz.
Ainda assim, por qualquer razão —
talvez porque o inverno seja tão longo
e o céu tão negro-azulado,
252
ou talvez porque o coração se estreite
tanto quanto se abre —
sou grata
pelo pássaro vermelho que veio durante todo o inverno,
incendiando a paisagem
como só ele saberia fazer.
253
Sonho infantil
Niní Bernardello
Deitada em cruz debaixo de um
cavalo branco, minha boca recebe
o jato caudaloso da sua urina
absolutamente límpida e amarela
arco de ouro fugaz em eterna queda.
A felicidade invade-me e, pela primeira vez,
foi única, irrepetível, incomparável.
254
Cantos a Berenice
Olga Orozco
III
Quero pensar que não eras a cria repudiada,
filha de gato errante e de gata cativa
— a companheira precária, vitoriosa na lei
[de um único acasalamento
e submissa ao decreto de algum Malthus tardio
[que impera no sótão.
Posso crer que não eras troféu nem resíduo
lançado ao acaso do alto da rocha,
nem eu a tecelã que detém com redes milagrosas o voo
[ou a queda.
Algo mais do que piedade, do que providência e desatino
erigiu nossa tenda invulnerável entre as carcomidas fundações.
Algo que começamos a saber entre um prato de leite
e ossos, só ossos de ausências, tão duros de roer.
255
V
Tu reinaste em Bubastis
com os pés na terra, como o Nilo,
e uma constelação por cabeleira no teu duplo celeste.
Eras filha do Sol e combatias o malfeitor noturno
— lama, traição ou toupeira, roedores do muro do lar,
[do leito do amor —,
multiplicando-te desde as adornadas dinastias de pedra
até as cinzentas espécies da cozinha,
desde o halo do templo até o vapor das panelas.
Esfinge solitária ou sibila doméstica,
eras a deusa do lar e abrigavas um deus, como uma pulga insone,
em cada dobra, em cada trama de tua inefável anatomia.
Aprendeste pelos ouvidos de Ísis ou de Osíris
que teus nomes eram Bastet e Bast e aquele outro que sabes
(ou será que uma gata não deve ter três nomes?);
mas quando as fúrias mordiam teu coração como um favo de pragas
tu te inflavas até alcançar a estirpe dos leões
e então te chamavas Sekhet, a vingadora.
Mas também, também os deuses morrem para serem imortais
e voltarem a acender, num dia qualquer, o pó e os escombros.
Rolou teu guizo, sua música amordaçada pelo vento.
Dispersou-se tua bolsa nas inúmeras bocas da areia.
E teu escudo foi um ídolo confuso para a lagartixa e o centopeia.
Te acolheram os séculos em tua necrópole deserta
—a cidade envolta em faixas que anda nos pesadelos infantis—,
256
e porque cada corpo é apenas uma parte do imenso sarcófago
[de um deus...
IX
Mas salta, salta outra vez sobre as papoulas,
salta sobre as fogueiras de junho sem te queimar,
como se soubesses.
Inclina-te outra vez à plena luz pela tua sombra entreaberta,
ainda que semeemos apenas como névoa rasteira,
como invasão de aranhas transparentes,
a suspeita de que somos de novo a bruxa e a emissária.
Não lamberão teu rastro dois cães amarelos,
nem voarás em nuvens eriçadas à festa de Brocken.
Não tivemos mais coruja que a vigília alerta no fundo do so- nho,
nem mais sapo lacaio que a rajada fria para afugentar os
duendes.
Nossa maldita aliança com o diabo
foi o poder do terror contra os roedores inatingíveis
que escavavam suas armadilhas debaixo da casa;
nossa marca satânica,
a mesma desmesura na pupila
para precipitar ali as intenções da noite mascarada;
nosso pacto de sangue,
nada mais que aquela troca de enigmas insolúveis:
257
outras de nós mesmas.
X
Sim, tu, meu outro eu mesma na fôrma encantada de outra
pele
cevada à memória do rito e da preguiça.
Não fetiche, onde rangem com asas de gafanhoto os espíritos
postos
a secar;
não talismã, como uma estrela alheia engastada na proa da
própria treva;
não amuleto, para afugentar os negros semeadores do acaso;
não gato em sua função de animal gato;
mas tu, o tótem palpitante na corrente rompida do meu clã.
Esse vínculo como uma troca de segredos em plena combus- tão!
Esse sopro recíproco infundindo os sinais do mal, os sinais
do bem,
em todo tempo e a qualquer distância!
Essas sortes ligadas sob o lacre e os selos de todos os destinos!
Não guardavas acaso minha alma absorta como um tromba
azul entre tuas sete vidas?
Não vigiava eu tuas sete vidas,
semelhantes a um arco-íris noturno no meu espaço interior?
E este rumor e esse borbulhar,
este remoto jato de bolhas subterrâneas
258
e esse zumbido rouco de zangão suspenso entre os labirintos
do teu sangue,
não seriam acaso meu mantra mais oculto e teu indizível
nome
e a palavra perdida que ao refazer-se refaz com penas brancas
a criação?
XI
Em que alfabeto mítico aprendeste a interpretar os símbolos?
Que fábulas heroicas te ensinaram
a sitiar os anúncios sinistros com o fosso da monotonia
e a cravar-lhes depois o punhal do relâmpago?
Teu poder era o poder da distância
que, com um golpe, fecha seu leque e expulsa o invasor.
Horas que foram anos, alertas como lâmpadas,
pacientes como estátuas diante de hóspedes que vêm e vão.
Tu, imóvel, submersa em dourados jardins de inverno,
em visões letárgicas bordadas pela conspiração do sol e de
suas
ondas,
espreitavas um flanco com súbitas listras de leopardo,
a música irisada de um zangão cego perfurando de repente
todo
o cosmo,
para fazer explodir, sob um único golpe de pata, suas ameaça- doras engrenagens.
Assim pudeste um dia retrair o espaço
e descobrir no fundo do meu coração alguma sombra intrusa
259
entre outras sombras,
ou adivinhar que oculta teia tramavam, ao destecer-se, os
meus tecidos,
ou que veios funestos forjavam sob minha pele um mármore
implacável,
e escavaste, escavaste com felpas e garras até arrancar o mal
como uma pérola negra que se dissolve em pó,
em nada.
Eu te pergunto agora, entre nós,
era realmente nada?
Ou guardaste acaso, uma por uma, essas contas sombrias
e enfiastes um colar que virou nó em torno de tua garganta?
XIII
Desabou o silêncio,
suas atrozes membranas se abriram como as de um morcego
anterior ao dilúvio,
seu canto como o corvo da negação.
Tua boca já não acerta o alimento.
Desencaixaram-se tuas mandíbulas
como as metades de uma cápsula incapaz de conter
a amêndoa do destino.
Tua língua é o Saara retraído na penumbra.
Teus olhos já não interrogam as vãs equações das coisas e dos
rostos.
Deixaram de copiar com lantejoulas amarelas os fugazes mo- delos
260
deste mundo.
São apenas dois poços de opalina até o fundo onde se afoga o
tempo.
Teu corpo é uma rígida armadura sem ninguém,
sem outro peso que a luz que o apaga e o amortalha em lágri- mas.
Tuas unhas, soltas da inalcançável salvação,
percorrem de modo lancinante o reverso impensável,
a corda de um êxodo infinito em seu acorde final.
Tua pele é uma mancha de carvão sufocado que atravessa o
esteiro
dos dias.
Tua morte foi apenas um leve rumor de moita que se arranca,
e depois, já não estavas.
A tarde te desertou;
lançou-te como escória à outra margem,
sob uma mesa inominável, muda, estranhamente impenetrá- vel,
ali, junto aos desamparados resíduos,
os toscos inventários de uma casa que rola para o poente, que
oscila, que desaba,
que se transforma em nuvem.
261
O gato no apartamento vazio
Wisława Szymborska
Morrer — isso não se faz a um gato.
Pois o que um gato há de fazer
num apartamento vazio?
Escalar as paredes.
Roçar-se pelos móveis.
Nada parece mudado,
e, no entanto, está tudo diferente.
Nada parece alterado,
e, no entanto, está tudo fora do lugar.
E, à noite, a lâmpada já não acende.
Ouvem-se passos na escada,
e, no entanto, já não são os mesmos.
A mão que punha o peixe no pires
Também já não é a mesma.
Algo aqui não começa
na mesma hora de sempre.
Algo aqui não acontece
como deveria acontecer.
262
Alguém aqui esteve, esteve,
e de repente sumiu
e teima em não estar.
Todos os armários foram vasculhados,
procurou-se por todas as estantes,
olhou-se até debaixo do tapete
até se quebrou a regra
de não espalhar os papeis.
Que mais se pode fazer
senão dormir e esperar?
Que ele ao menos volte,
que ao menos apareça.
Aí sim, ele vai ver
que isso com um gato não se faz.
Irá para junto dele
como quem não quer ir,
bem devagar,
com patas muito ofendidas.
E nada de pular ou miar a princípio.
E muitos não têm a sorte
De vê-lo passar um dia
O cavalo Azul
Gilbert Bécaud
Esta edição foi impressa em formato fechado de
140x210 mm e com mancha de 100x165 mm.
Os papéis utilizados foram o pólen 80 g/m2 para
o miolo e o Cartão 250 g/m2 para a capa. O texto
principal foi composto em Adobe Garamond Pro
12/15,2 e os títulos em Adobe Garamond Pro
18/20. Impresso no Brasil.
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