Discurso em homenagem
a Florisvaldo Mattos,
durante sessão da ALB
Por Suzana Varjão
Olá! A todas que
prestigiam e que compartilham essa mesa em homenagem ao múltiplo Florisvaldo
Mattos, desejo uma ótima noite de prosa e, claro, de poesia — esclarecendo que quando
digo todas, não estou me dirigindo exclusivamente às mulheres, mas às pessoas. Pessoas
do sexo masculino, pessoas do sexo feminino, pessoas de outras identidades de
gênero, identidades sociais não hegemônicas, invisibilizadas.
Antes de começar minha breve
exposição, quero agradecer, sinceramente, à Academia de Letras da Bahia pela gentileza
do convite, por me confiar a tarefa de emitir uma fala de tamanha
responsabilidade. Responsabilidade pela grandeza do sujeito em foco, também
pelo lugar de emissão dessa fala: o lugar de uma instituição que, por si só, autoriza,
chancela, potencializa a palavra.
Potencializa, portanto,
formas de construir o mundo, porque, como acho importante, sempre, firmar,
palavras não são apenas borboletas multicoloridas jogadas ao vento. São também
tijolos. Moldam mentalidades, portanto, realidades. Não são apenas expressão de
leveza e beleza.
Palavras, não podemos
negligenciar, pavimentam caminhos em direção à barbárie ou à civilização — e, nesse
caso, o horizonte é o da civilização, pelo que parabenizo a ALB, por meio, especialmente,
das extraordinárias figuras de seu presidente, Ordep Serra, sua
vice-presidente, Edilene Matos, e seu diretor Carlos Ribeiro.
Aproveito ainda para saudar
Florisvaldo Mattos, o querido Flori, como carinhosamente nos acostumamos a tratá-lo.
Confesso que depois da
grata surpresa do convite, eu fiquei um pouco... um pouco, não. Eu fiquei bastante
preocupada com o tamanho do compromisso que eu entusiasticamente tinha
assumindo. E mais ainda quando soube que a missão de esboçar os vários Florisvaldos
seria dividida com dois tão grandes quanto ele: Ruy Espinheira e Fernando da
Rocha Peres.
Espinheira, designado
para destacar o poeta (ou, de modo mais amplo, o escritor. É importante lembrar
que ele foi/é também grande ensaísta, articulista e crítico de arte).
Peres, incumbido de depor
sobre a convivência com o amigo, o que significa dizer com o ativista cultural,
alguém que, como ele, atuou na vanguarda de movimentos que sacudiram a vida
cultural na Bahia. Movimentos como o protagonizado por insurretos que ficaram
conhecidos como Geração Mapa.
Eu, encarregada de alinhavar
a face do jornalista, o que não é fácil. Não é nada fácil uma discípula falar
de um mestre de tamanha envergadura, e num dia tão especial, tão duplamente
especial como esse — ainda que eu integre, como muito orgulho, como muita
honra, esse campo de conhecimento e ação, e que tenha tido a oportunidade de com
conviver com Florisvaldo, no cotidiano de uma redação.
Portanto, de antemão,
peço desculpas pelas possíveis lacunas, pelos possíveis escorregões, decorrentes
da inevitável subjetividade de meu olhar.
Em síntese, nós vamos
conversar sobre o homenageado a partir de três de seus lugares, demarcados para
facilitar o trabalho de resgate, de redesenho da trajetória florisvaldiana, mas que obviamente não são
estanques, não são herméticos. Eles carregam, inexoravelmente, traços em comum,
que escapam desses recortes, e expõem o sujeito por detrás do escritor, do
agitador cultural, do profissional de imprensa.
E é essa perspectiva que
eu gostaria de enfatizar — a partir, claro, do campo que me foi designado, tentando
não negligenciar o registro objetivo de pontos relevantes de sua trajetória
nele, mas sem me prender ao aspecto formal, biográfico, porque isso, a meu ver,
não faria jus a um personagem que soube, como poucos, transitar pelo estabelecido,
pelo posto, mas sem adesões; com o intuito não de rendições, mas de deslocamentos,
de problematização, dessacralização, e, com isso, abrir espaço, dar passagem ao
novo, ao não pactuado, ao não formalizado.
Em outras palavras, esse criador-mobilizador-mediador
soube, como poucos, perscrutar o passado, sacudir o presente e revolucionar o futuro
— sem subserviências, de um lado, do lado do posto, e sem arrogâncias, de outro
lado, o lado do não posto... ou do proposto.
E se no princípio foi o verso
que despertou o criador, porque ele descobriu a poesia ainda adolescente, segundo
me confidenciaram, foi o jornalismo que motivou, que moldou o mestre — outra
identidade desse expressivo personagem da vida cultural brasileira. Duas faces
(de jornalista e mestre) tão entrelaçadas, que seria muito difícil isolar uma
da outra.
Esse “cavaleiro de muitas andanças e inquirições”, como a
ele se referiu, certa feita, o escritor Hélio Pólvora, está na gênese
mesmo do jornalismo profissional da Bahia — o que aliás aumenta a propriedade dessa
celebração, nesse dia, 7 de abril, dia instituído pela Associação Brasileira de
Imprensa para festejar os agentes do campo.
Para quem não sabe, ou
não lembra, Florisvaldo foi membro da equipe fundadora do curso de jornalismo no
estado. Curso com o qual contribuiu significativamente, como docente, durante
quase toda a sua trajetória, instruindo, apoiando, inspirando, enfim, formando
gerações e gerações de profissionais — incluindo a minha.
Além de capacitar,
técnica e eticamente, profissionais pro campo, ele atuou diretamente nele, produzindo,
também acolhendo e orientando os mais novos, num processo contínuo de
qualificação e valorização do fazer jornalístico.
E para contextualizar esse
panorama, creio ser apropriado iterar sua atuação em algumas das redações mais
influentes do País, como a sucursal do Jornal do Brasil, que chefiou; o Diário
de Notícias, da cadeia dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, do qual
foi editor-chefe; o Jornal da Bahia, que o teve como chefe de reportagem, e o
jornal A Tarde, onde, entre outras funções, exerceu o papel de editor-chefe, e onde
tive o privilégio de gozar de sua convivência — e ensinamentos.
Mas além desses lugares —
do jornalista, do mestre —, e dos aqui já demarcados (do poeta e do ativista
cultural), eu queria realçar um outro, na verdade, um “entrelugar” extremamente
relevante, que é o do jornalismo cultural, forjado, notadamente, por meio da
edição, criação ou recriação de suplementos literários que impactaram fortemente
o processo cultural da Bahia, como o SDN, do Diário de Notícias.
Além do SDN, que aliás contou
com outras assinaturas ilustres, como a do então jornalista Glauber Rocha, vale
salientar o Caderno Cultural do jornal A Tarde.
O jornal A Tarde, que é de
propriedade da família Simões, era, na época, o veículo de maior circulação e
prestígio do Norte-Nordeste do País, e durante décadas sua redação foi dirigida
por aquele que considero meu pai não biológico, Jorge Calmon, que foi quem
convidou Florisvaldo Mattos para catalisar as forças culturais então em ebulição
no estado, e que passaram a gravitar em torno do suplemento.
Acredito que possa
avalizar parte considerável desse impacto porque estive, durante bom tempo, num
ponto privilegiado de observação: do início da década de 90 até os anos 2000, enquanto
Flori comandava o Caderno de Cultura, eu editava outro caderno, o Caderno 2, desse
mesmo jornal, dedicado a artes e variedades.
Tive, portanto, a chance
de observar de perto a tecedura, o fiar desse poderoso instrumento do campo
simbólico, que desempenhou papel central na efervescência registrada na Bahia,
nesse período, quando os princípios libertários da rebelião modernista pareciam
ter sido finalmente encampados e desdobrados em expressões, comportamentos e
movimentos artístico-culturais vários.
Aliás, como poucas vezes
ocorre, a centralidade desse papel foi devidamente reconhecida, em tempo real,
em tempo hábil: como alguns sabem, o Caderno Cultural de A Tarde, sob sua
batuta, foi considerado por uma das mais respeitadas agremiações do país, a
Associação Paulista de Críticos de Arte, como o melhor órgão de divulgação
cultural do Brasil — e isso não é pouca coisa.
Mas a revisita a esse
lugar de Florisvaldo Mattos permite também repisar sua farta produção em
jornais, antologias e revistas locais, nacionais e internacionais. Entre as
revistas, cabe apontar a Ângulos, vinculada à Faculdade de Direito da Ufba — campus no qual ele se formou, mas que,
felizmente, não o firmou, porque ele seguiu, para sorte da instituição imprensa,
o ofício de jornalista, especializando-se, para tanto, posteriormente, em Madri.
Ainda para realçar, nessa
minha narrativa, a multiplicidade desse grapiúna universal, é interessante sublinhar
sua contribuição à Revista da Bahia, vinculada à esfera estatal, e à revista Mapa
— essa última, então, o meio de expressão mais, digamos assim, contundente de
uma geração que ficou marcada pelo talento, entre outros, do genial cineasta Glauber
Rocha, o arquiteto baiano do Cinema Novo, um dos que ousaram romper com o
conservadorismo, a subserviência identitária, a alienação cultural. Sob
influência, entre outros, do neorrealismo
italiano, também no rastro dos ideais modernistas, tardiamente difundidos,
absorvidos na Bahia.
É importante pontuar que
não há como falar sobre qualquer das faces de Florisvaldo Mattos sem nos
remetermos a alguns movimentos, como o Modernismo, e outros dele decorrentes,
ou nele inspirados, como o Tropicalismo. Movimentos que pretenderam, no Brasil,
revisar um contexto sociopolítico-cultural feito de dominação, marginalização,
amarras colonialistas, enfim.
Contexto que produzia (continua
produzindo, em diferentes frentes e escalas) efeitos nefastos na esfera social
brasileira, e que era (ainda o é) legitimado, reconstruído, portanto,
construído na esfera simbólica, na esfera das artes, da literatura, do
jornalismo, da cultura em geral.
Mas não vou me deter
sobre essa temática, aliás, permeada por muitas vertentes e tensões. É uma perspectiva
histórico-cultural que está longe de ser pacificada. E isso, com certeza, será
abordado, ou ilustrado com mais propriedade do que eu pelos demais oradores —
atores e artífices que foram de alguns desses movimentos e expressões.
Enfim, desse lugar (o
lugar das letras; letras ora mais próximas do pragmatismo do campo jornalístico;
letras ora mais próximas da infinitude da ficção)... desse lugar, Mattos ajudou
a construir a história de uma Bahia diversa, plural, pulsante, fustigando a
acomodação intelectual e destituindo as ditaduras estéticas, literárias,
comportamentais, pensamentais (me
apropriando, aqui, de um neologismo usado pelo saudoso jornalista Béu Machado).
E ele fez isso com elas, as
letras, também com ferramentas que as potencializam. Digo isso porque nosso
imortal ocupou lugares de gestão, lugares estruturantes das letras, da cultura,
como a Fundação Pedro Calmon, a diretoria da Associação Baiana de Imprensa e a
presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia (constituiu inclusive uma
editora, a lendária Macunaíma).
E construiu essa história
sem gritar. Com talento, com ética, com generosidade, com gentileza, com
elegância, com respeito e, mais do que com conhecimento, mais do que com eruditismo,
com sabedoria. Foi a sabedoria que lhe permitiu transitar, ocupar, transformar,
construir espaços com perfis e modos de operação tão diversificados.
A sabedoria do respeito
ao outro; do respeito às diversas maneiras de ser e de se colocar no mundo; do
respeito aos pontos de vista diferentes dos seus; do respeito, enfim, aos variados
pensares — o que é revolucionário, principalmente, num país que, como
evidenciado, notadamente, nos últimos quatro anos, é tão afeito a
fundamentalismos.
Em tempo de, como disse Chico
Buarque sobre os anos de chumbo, “tanta mentira, tanta força bruta”, promover a
reconstituição, em forma de homenagem, da trajetória de um sujeito que fez do
campo simbólico um campo de exercício de liberdade e de respeito ao outro, é um
ato político...
...e friso que estou
falando de força bruta não apenas física. Essa também campeia na vida social
brasileira da contemporaneidade, da atualidade. Mas saliento aqui a força bruta
de intelectos movidos pela violência da hierarquização de pessoas e culturas,
do desrespeito ao não igual, de absolutismos, de tiranias...
...enfim, em tempo de
tanto “minta-se”, “negue-se”, “mate-se”, “cale-se”, mais que um ato literário,
trata-se, essa iniciativa, de um ato libertário — pelo que parabenizo, uma vez
mais, a ALB, porque assim como é importante lembrar, para que não se esqueça,
para que nunca mais aconteça a barbárie dos anos de chumbo, as atrocidades da
ditadura militar, é essencial manter viva a memória de letras que, como as de
Florisvaldo Mattos, contrapõem-se a discursos selvagens e anti-humanistas; contrapõem-se
à(s) ditadura(s), quaisquer que sejam, e que incluem as ditaduras da estética
padrão, da identidade hegemônica, da estampa feminina ideal, do riso que
humilha, desqualifica, diminui, oprime, fere, machuca.
No Brasil, como
vimos, os ovos de serpente continuaram a ser chocados após a derrota dos
golpistas de 64, explodindo numa onda de ódio de dimensões incalculáveis. Por
isso, os humanistas, os arquitetos do ideal civilizatório, também precisam
continuar operando. De dentro do nosso campo de luta, que é o campo simbólico,
precisam/precisamos permanecer vigilantes e agir, ante as ameaças e efetivos desvios
para os caminhos da selvageria, da incivilidade, da ignorância, do atraso, da
brutalidade, da estupidez, inevitavelmente pavimentados, no mínimo legitimados,
pelo campo das letras.
E Florisvaldo Mattos de tantos poemas, de tantos talentos, de tantos saberes e
fazeres é, sobretudo, farol. Farol que precisamos manter aceso. É preciosa referência
— como intelectual, como pessoa, como mestre.
Por tudo, por tanto, peço
licença para, em nome das gerações que você formou, influenciou, conduziu, lhe agradecer,
Flori — pelo que fez, pelo que faz, e pelo que fará, porque como reza a
espiritualidade dos povos zulu, ainda que seu umzimba (ou seja, seu corpo físico) não mais circule nesses
espaços, nos espaços aqui enfocados, seu isithunzi
(ou seja, seu prestígio, sua influência, seus ensinamentos, seu legado)
continua e continuará impactando esses espaços, forjando-os, enriquecendo-os,
humanizando-os.
Quem
sabe, um dia, Flori, o sonho que você me fez — nos fez — sonhar, se realize, e num
domingo qualquer...
...“os
primeiros raios de sol rompam as nuvens, instalando na planície um jogo de
luzes e sombras. / Na savana em penumbra, as formas de um baobá projetem-se contra
o céu azul, rajado de lilás, vermelho e branco. / E no interior da gruta aberta
na base do tronco, dois pequenos pontos cintilem, como estrelas no negrume da
noite. / Furando o silêncio dos campos, um rugir prolongado, se repita uma,
duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes... / E cada rugido evoque outro, e
outro, até que se convertam em toada, e a toada, em movimento — do alto das
montanhas; nas depressões que rasgam os planaltos; por entre rochas, areias e
gramíneas surjam vultos de caminhar lento, ondulante, mas vigoroso. /Então, os
olhos incandescentes deixem a cava escura do baobá e juntem-se aos demais,
norteando a marcha de panteras negras, que circundarão a “árvore do
esquecimento”, retomada em sua função ancestral. / E do interior da “árvore da
resistência” brotem (como desejou) justiça, equidade, liberdade. / Pra todos. Pra
sempre!”*
Um brinde, pois, a esse caligrafista da resistência pelos 90 anos de vida, e
por toda uma vida dedicada à construção de baianidades, nordestinidades, brasilidades
e universalidades — portanto, humanidades.
Um beijo
nesse seu belo coração querido mestre.
_____________________
PARA
A SEÇÃO DE POESIA, DA REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DE BAHIA, Nº 60, ABRIL DE
2022.
FLORISVALDO
MATTOS
Cinco
poemas
NA
CASA DE ASTÉRION
Tecer no azul do céu a cor
da morte
Ou no verde do mar, na
branca espuma,
E até não perceber quando se
arruma
A casa onde a brisa, última
consorte,
Descerra a porta para o
Minotauro.
Apenas ouço-lhe o ruidoso
trote,
Com o trágico de Borges
holofote,
Igual à solidão em que me
instauro.
Ele vem devagar, de agudo
chifre,
Na tarde melancólica, de
sombra
Vasta, que me rodeia e que me
assombra,
Temeroso, a exigir que me
decifre.
Não sou Teseu, dispenso-me do luto.
Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.
(Salvador, manhã de
05/03/2022)
SONETO
DE MISTÉRIOS JUVENIS
À itabunense, poeta e ensaísta Heloísa Prazeres
Deixei Barro Vermelho, já
era outono,
Levando no ombro o peso da
saudade.
Ao despertar, pensando na
cidade,
Para onde eu ia, me tirava o
sono.
São mistérios que invadem o
ser humano.
Miro o verde de sempre em
despedida,
Cogitando já estar em outra
vida,
Distante de grilhões do
tempo insano.
Selas compostas, malas
arriçadas,
Logo atravesso o rio de
braçadas.
Sonhos há, que me servem de
fortuna!
Subo no trem e, sepultando
rastros,
Ao descer, ainda a confiar
nos astros,
Mergulho nos mistérios de
Itabuna.
(Salvador, tarde de
26/11/2021)
ESTA CASA JÁ FOI MINHA
Que casa antiga é esta que me olha da janela,
Em que tantas tardes passei e passaria?
Ela olha para todo lado, dia a dia,
E não se passam anos sem que pense nela.
Noite. Não sei por que me bate esta agonia
De tanto me passarem anos e ainda vê-la,
Como se vivesse uma vida paralela
À que bem distante vivi eu e viveria.
Nunca tive uma casa igual à que foi minha,
Em manhãs de mata e quintal sem flor daninha,
Viajando pelo mundo, tendo o que tiver.
No tempo longe de menino ou de rapaz,
Sei que essa casa ainda existe e ainda me quer,
Pousado em seu longo varal de amor e paz.
(Salvador, BA, manhã de 09/01/2018)
ÂNSIAS DE AMOR
(Canção em versos de cinco)
Escreverei versos,
Versos, até o fim.
Se em dias adversos,
seja na varanda,
seja no jardim,
tardes de lavanda,
lembre-se dos versos,
lembre-se de mim.
E se a noite é vasta,
de lua a sorrir,
não apague a casta,
sempre escondida
faina de ir e vir.
Viaje pela vida,
que não é madrasta
deste meu sentir.
Vou por mares vãos,
carregando fardos,
e trago nas mãos
ânsias e temores
que sofreram bardos.
Arsenal de dores,
ânsias de amor são
espinhos de cardos.
Escreverei versos,
sim, com o coração,
de sons sempre imersos
nos rios da vida,
para uma canção,
que ficou perdida,
nada perversos,
mesmo em solidão.
(Salvador, BA, tarde de 2021)
SONHADOR
SONHADO, DE ELO EM ELO
No fundo da casa
de Sancho Alves de Melo,
havia um cavalo
que se montava em pelo.
E havia um buraco
de gerar pesadelo,
no fundo da roça
de Sancho Alves de Melo,
que só de mirá-lo
arrepiava o cabelo,
a profundidade
turvava o Setestrelo.
Buraco que um homem
sozinho abria com zelo.
Não se sabe se era
branco, negro ou amarelo.
Solteiro na vida,
disse que era donzelo
e que ali chegara,
fugindo de um flagelo.
Toda noite invade=lhe
um sonho de castelo:
que perto havia ouro,
no chão, sem paralelo.
Essa alma sem nome
largou o parabellum
e, com ferro e suor,
deu ao sonho seu elo.
Cavou e cavou,
com os dias em duelo,
pensando em ao sonho
chegar sem atropelo.
Prosseguiu cavando
com amor e desvelo,
e o vento a saudá-lo,
tocando violoncelo.
Alma retirante,
ao sol lançava apelo
de que não sumisse;
na vida vale o anelo.
Pássaros cantavam
e, num momento belo,
folhas solfejavam
um som nada singelo.
No céu, via o Cristo,
montado num camelo,
lhe abençoar a vida
de fé, único modelo.
Os dias e as tardes,
sem nenhum engabelo;
somente o amor ao ferro
salva um pé-de-chinelo.
“Ouro, somente ouro,
é o prêmio por que velo”,
brada. Embaixo, a terra
vai virando farelo.
Respira quietude,
dela puxa o novelo.
De alimento apenas
frutas e cogumelo.
A ele importa menos
que da alta serra o gelo.
Sofrer já lhe foi.
Hoje não, hoje é o selo
da sorte no tempo.
Que venha tudo pelo
ar. Que soprem músicas,
ventos de Apolo Délio!
“Há de sair meu sonho
deste fundo magrelo!
Sonho que se vá
Bem melhor que não tê-lo”.
Saco de pó no ombro,
o corpo em desmantelo,
mais firme que um touro,
a puxar um rastelo.
O tempo vencido,
à força de martelo;
o saco na escada
rebenta o tornozelo.
Ao redor avista
de flores o labelo,
aves saltitantes,
a fugir de pinguelo.
Cacaueiros novos
tratados a cutelo,
bem melhor o peso,
torturando o canelo.
O vento zunindo,
com raiva de escalpelo,
finca-lhe na fronte
mudo sinal de estrelo.
Afundado em ânsias,
no escuro, o peito nuelo,
só o ouro, o sonhado ouro,
é capaz de entretê-lo.
Um dia descobre:
está branco o cabelo;
se o sonho persiste,
não cogita perdê-lo.
Se a lua e as estrelas
guardam silêncio, ao vê-lo,
é que não quiseram
os deuses protegê-lo.
Dor funda e martírio
golpearam seu anelo.
Nada há para salvá-lo,
Nem mesmo o Setestrelo.
O ouro tão sonhado
dorme no cerebelo.
Será que o recebem,
De volta a Cabedelo?
Com vinte mil réis,
de Sancho Alves de Melo,
chorou e partiu.
Nem Deus conseguiu vê-lo.
Este ingênuo cabra
sonhou um sonho belo.
Se pertence aos fados,
não dá para perdê-lo.
ABRIL
Razão dou a Eliot e a Mendes Campos.
“Abril é o mais cruel dos meses”, ambos
Cantaram: um em claro inglês, lustroso;
Segue-o o outro, em português melodioso.
(Poema de POESIA REUNIDA E INÉDITOS, de Florisvaldo Mattos, 2011)
QUE VENHAM ABRIL E SUCESSIVOS OUTONOS!
Muito obrigado a todos os amigos e
amigas, que me saudaram hoje com parabéns, por minha em nada tortuosa subida
por 91 lances de meu Everest existencial. Em correspondência, segue abaixo o
poema que escolhi para marcar este meu especial momento.
Como ilustração, vão foto elaborada
por Mauro Coelho e reprodução de famosa tela de Paul Cézanne, Jogadores de
Cartas.
VIGÊNCIA DA NOITE – OU AURORA
Como um pássaro que passeia devagar
na estiva
de um porto qualquer, olhos baços,
mente esquiva,
divago na sala, mirando as estrelas
da noite que passa.
Para ser um filósofo, em grave
silêncio, me falta massa,
temas eternos, mente febril,
serenidade no olhar,
imunidade a relógios e o grave prazer
de pensar;
me exprimo com o nada, atento aos
estertores da vida,
neste espaço que me serve de
confortável guarida,
para pensar em mim mesmo, amealhar
meus ciclones,
ruídos da alma, como quem reaviva um
cemitério de clones.
Como quem mira estrelas cadentes, na
noite sossegada,
me estiro no sofá, respiro e realinho
as curvas da estrada,
mais próximo de mim, inumeral,
distante do mundo,
sem ser nenhum gênio, mago, de
pensamento profundo.
Com um livro na mão, revista ou
jornal, um copo de vinho,
converso comigo, meus dias e noites,
com saudades de mim.
Ou com o que me resta de sustos,
recompondo os cristais,
que a vida quebrou, o vento levou e,
no entanto, quer mais.
E com tantos sentimentos vivos que me
correm na veia,
na noite diversa, como um grão que se
desprende da areia,
medito estendido no sofá desta sala
como sempre agradável,
sempre calma, sem calor de emoções,
sem tempo instável.
Enquanto a amada que vigia meus sonos
dorme no quarto,
ouço na caixa de som alguém a
dizer-se de sonhos farto;
eu próprio, em meu canto, me alimento
de perdas também,
por minhas estivas mentais aguardo a
madrugada que vem.
O vento lá fora rebenta vidraças, em
plena alvorada;
cá dentro divago, espio a noite. Não
espero mais nada.
(Florisvaldo Mattos, Salvador-BA, junho de 2006)
FLORISVALDO MATTOS, 91 ANOS
Carlos Barbosa
Um dos mais expressivos nomes da poesia baiana, meu professor na faculdade de Comunicação, imortal da Academia de Letras da Bahia, parceiro de comes e bebes no Ceasinha, faz aniversário hoje e estendo aqui os meus parabéns, encaminhados mais cedo pelo zapp:
Flori, verbete vinculado a certo estado d'alma, cujas fronteiras se dissolvem em poemas épicos e ébrios banquetes populares.
Flori, espírito de entes múltiplos e boêmios, a exemplo de bordôs, uísques, caipirinha coada e causos do tempo de foca e de agitador cultural. Ver, por atração irresistível, tópicos de flores e floretes, sem buscar floreios desnecessários.
Flori, o moço, espanta nuvens e crises existenciais a bengaladas e a goles tintos e tantos, que, sem tropeços, acontece de amanhecer sem anoitecer e vice-versa.
Flori, o mestre, puxa fieira de discípulos fiéis de cada batente em que militou, todos pasmos por, de repente, notarem em si velhice que a ele se nega.
Flori, que hoje crava 91 como quem se deleita nos 19, calha de ser grapiúna, que é um tipo de hidromel nativo conhecido apenas pelo povo Mattos, amante da beleza de toda e qualquer arte.
Esse menino Flori, meu amigo, habita varandas e brisas, sempre a merecer os melhores derramamentos olímpicos e divinos; e que esses venham sem restrições e sejam do tipo "muitos e muitos anos mais".
Viva Flori, Flori viva!!!
Parabéns, mestre!
https://www.instagram.com/p/CqyglzQrhlsEPeePjVjIuK2cal8uk6xKNBuKlY0/?igshid=MDJmNzVkMjY=
Esta bela homenagem foi escrita e a mim enviada pelo romancista e contista Carlos Barbosa.
Paul Cézanne (1839-1906): Jogadores de Cartas (1889)
PARTICIPAÇÃO NA REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA
BAHIA, Nº 61, 2023 – SEÇÃO DE POESIA
CINCO INÉDITOS, DOIS DE SIMBOLISMO ADOLESCENTE
FLORISVALDO MATTOS
FÚRIA
ACERBA
O amor, monstro voraz que a todos
aniquila,
Deixou um dia a furna, a solitária e escura
Furna, onde habita e, agora, a minha alma
tranquila
Com os látegos de dor, estúpido, tortura.
Antropófago, horrendo e informe, que se
asila
Dentro de mim, e vive, e anseia e em mim
perdura,
Impõe, no seu furor, que em pasmos de
loucura,
Traga eu fascinação de abismos na pupila.
E após eu ter galgado a rústica montanha
Do instinto sensual, que me penetra o
seio,
Ele, de novo, dentro de mim, rosna e se
assanha.
E fico a perguntar a mim, inconsciente, e
a esmo,
Quem é esse canibal, terrivelmente feio,
Que vive a me espancar no fundo de mim
mesmo!...
(MATTOS, 1952).
VOZES OCULTAS
As lágrimas de orvalho, azuis, de folha em
folha,
Rolam. Cada uma em pós, minuto por minuto,
Trêmula, molha o musgo, o lírio e a pedra
e molha
O vetusto mural e o abandono absoluto.
Nítida, a folha chora esta manhã
nevoenta...
E a profunda avidez, modorral, onde medra
A íntima flor de sangue, obscura, que
orienta
O silêncio feral desses muros de pedra.
E treme e sofre: e afinal sem dizer o que
sente
Revela sua dor nessa queixa inocente.
E a lágrima de orvalho escorre dolorosa
A banhar, cristalina, as pétalas de rosa,
O silêncio da pedra, o musgo e as velhas
portas
E a quietude claustral dessas paragens
mortas.
A consciência do Nada, ascética e sombria,
Lentamente, penetra essa prisca abadia.
E, pesada, percebe a indiferença enorme
Que na áspera feição dessas paredes dorme.
Em cada esquina paira um profundo lamento,
Ao súbito rumor sonâmbulo do vento.
Solitude imortal, que a vida humana
assiste,
Tu te moves, talvez, nessa aquarela
triste.
Teu mistério revela um símbolo profundo,
Mais fundo que a esperança e que o existir
mais fundo.
E te deixas ficar surdamente vagando,
E, à vã lamentação dessas folhas,
sonhando.
Solitude imortal dos labirintos d’alma,
Tu dominas, eterna, essa amplitude calma.
Só tu podes sentir o pranto que promana
Da ironia sutil das sentenças veladas:
Muito mais que o Universo e toda a vida
humana
É o silente sofrer dessas folhas molhadas.
Eu me encontro em ti, folha, em minha velha
mágoa;
Pois pressinto que a vida, após essas
estradas,
Não comporta o que existe em uma gota
d’água.
(MATTOS, 1952).
SONETO DE UM AMARGO PAÍS*
Andam monstros sombrios pela
estrada
E pela estrada, entre estes
monstros, ando!
(Augusto dos Anjos)
Nunca
soube, Brasil, que tu morrias.
Saltei
montanhas, rios, selvas, tudo.
Corri
cidades, anos até de estudo,
Sem
que manchassem minhas alegrias.
Já
ali, onde eu corria em disparada
De
fauno, a celebrar epifanias,
Poeta
enxerga “um poço de agonias”,
“Transbordando
dejetos” de manada.
Alude
a treva e “horror em vendavais”,
Em
que nos mergulhou demente voto.
Como
de sonhos sempre foi devoto,
Alça
a voz agra de Poe: “Nunca mais!”.
Para
um país já morto, não há lei;
Árdua
verdade que de muito sei!
(MATTOS,
2020).
SONETO
DE AMOR E MAR
Não
era ainda madrugada,
quando
rompem tiros no ar,
estouro
igual de manada,
no
âmago de ódios sem par.
A
lua estende, prateada,
sua
toalha sobre o mar,
e
vens, lua imaginada,
para
me fazer sonhar.
Esqueci-me
da manada;
dos
ódios, o marulhar.
Sentei-me
na balaustrada
e
me pus a meditar.
Não mais tiros a estalar,
Só amar une amor e mar.
(MATTOS, 2022)*.
Acordei sem saber o que faria.
Silentes dedos nem mesmo se movem.
Existe ainda quem antes me ouvia?
Nem mesmo pássaros agora me ouvem.
Da esquina de ontem, hoje fogo-morto,
Os lentos passos de quem se perdia
Sobre o asfalto ossudo da pandemia,
Miro o cenário que me deixa absorto.
Lá no balcão o copo de cerveja
Roga: se me for, lembre quanto arqueja!
Guardo em mim o clamor, porém não ligo.
Vou para casa ler meu Baudelaire,
Sujeito a ouvir, de súbito inimigo,
Que este poeta “não é pra bode ler”
(MATTOS, 2022).
MATTOS,
Florisvaldo. Soneto de amor e mar. Salvador-BA, noite de 20 fev. 2022.
(*) Paráfrase de verso epigramático atribuído, pelo estilo mordaz, a membro da boemia carioca de dos idos de 1890 e 1900, mas também, objetivamente, ao romântico Fagundes Varela, por Alberto Faria (1869-1925), em conferência na Academia Brasileira de Letras, em 1925, como resposta a alguém que lhe pediu emprestado As Flores do Mal, de Charles Baudelaire (1821-1867). Link abaixo.
https://pt.wikisource.org/wiki/O_Brasil_Aned%C3%B3tico/CCLXV
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