quarta-feira, 1 de março de 2023

FM: SERÁ MESMO ABRIL O MAIS CRUEL DOS MESES?



        FM: ENTREVISTA A EUGÊNIO AFONSO, 20.02.2023   



         Discurso em homenagem 

a Florisvaldo Mattos, 

 durante sessão da ALB

Por Suzana Varjão

Olá! A todas que prestigiam e que compartilham essa mesa em homenagem ao múltiplo Florisvaldo Mattos, desejo uma ótima noite de prosa e, claro, de poesia — esclarecendo que quando digo todas, não estou me dirigindo exclusivamente às mulheres, mas às pessoas. Pessoas do sexo masculino, pessoas do sexo feminino, pessoas de outras identidades de gênero, identidades sociais não hegemônicas, invisibilizadas.

Antes de começar minha breve exposição, quero agradecer, sinceramente, à Academia de Letras da Bahia pela gentileza do convite, por me confiar a tarefa de emitir uma fala de tamanha responsabilidade. Responsabilidade pela grandeza do sujeito em foco, também pelo lugar de emissão dessa fala: o lugar de uma instituição que, por si só, autoriza, chancela, potencializa a palavra.

Potencializa, portanto, formas de construir o mundo, porque, como acho importante, sempre, firmar, palavras não são apenas borboletas multicoloridas jogadas ao vento. São também tijolos. Moldam mentalidades, portanto, realidades. Não são apenas expressão de leveza e beleza.

Palavras, não podemos negligenciar, pavimentam caminhos em direção à barbárie ou à civilização — e, nesse caso, o horizonte é o da civilização, pelo que parabenizo a ALB, por meio, especialmente, das extraordinárias figuras de seu presidente, Ordep Serra, sua vice-presidente, Edilene Matos, e seu diretor Carlos Ribeiro.

Aproveito ainda para saudar Florisvaldo Mattos, o querido Flori, como carinhosamente nos acostumamos a tratá-lo.

Confesso que depois da grata surpresa do convite, eu fiquei um pouco... um pouco, não. Eu fiquei bastante preocupada com o tamanho do compromisso que eu entusiasticamente tinha assumindo. E mais ainda quando soube que a missão de esboçar os vários Florisvaldos seria dividida com dois tão grandes quanto ele: Ruy Espinheira e Fernando da Rocha Peres.

Espinheira, designado para destacar o poeta (ou, de modo mais amplo, o escritor. É importante lembrar que ele foi/é também grande ensaísta, articulista e crítico de arte).

Peres, incumbido de depor sobre a convivência com o amigo, o que significa dizer com o ativista cultural, alguém que, como ele, atuou na vanguarda de movimentos que sacudiram a vida cultural na Bahia. Movimentos como o protagonizado por insurretos que ficaram conhecidos como Geração Mapa.

Eu, encarregada de alinhavar a face do jornalista, o que não é fácil. Não é nada fácil uma discípula falar de um mestre de tamanha envergadura, e num dia tão especial, tão duplamente especial como esse — ainda que eu integre, como muito orgulho, como muita honra, esse campo de conhecimento e ação, e que tenha tido a oportunidade de com conviver com Florisvaldo, no cotidiano de uma redação.

Portanto, de antemão, peço desculpas pelas possíveis lacunas, pelos possíveis escorregões, decorrentes da inevitável subjetividade de meu olhar.

Em síntese, nós vamos conversar sobre o homenageado a partir de três de seus lugares, demarcados para facilitar o trabalho de resgate, de redesenho da trajetória florisvaldiana, mas que obviamente não são estanques, não são herméticos. Eles carregam, inexoravelmente, traços em comum, que escapam desses recortes, e expõem o sujeito por detrás do escritor, do agitador cultural, do profissional de imprensa.

E é essa perspectiva que eu gostaria de enfatizar — a partir, claro, do campo que me foi designado, tentando não negligenciar o registro objetivo de pontos relevantes de sua trajetória nele, mas sem me prender ao aspecto formal, biográfico, porque isso, a meu ver, não faria jus a um personagem que soube, como poucos, transitar pelo estabelecido, pelo posto, mas sem adesões; com o intuito não de rendições, mas de deslocamentos, de problematização, dessacralização, e, com isso, abrir espaço, dar passagem ao novo, ao não pactuado, ao não formalizado.

Em outras palavras, esse criador-mobilizador-mediador soube, como poucos, perscrutar o passado, sacudir o presente e revolucionar o futuro — sem subserviências, de um lado, do lado do posto, e sem arrogâncias, de outro lado, o lado do não posto... ou do proposto.

E se no princípio foi o verso que despertou o criador, porque ele descobriu a poesia ainda adolescente, segundo me confidenciaram, foi o jornalismo que motivou, que moldou o mestre — outra identidade desse expressivo personagem da vida cultural brasileira. Duas faces (de jornalista e mestre) tão entrelaçadas, que seria muito difícil isolar uma da outra.

Esse “cavaleiro de muitas andanças e inquirições”, como a ele se referiu, certa feita, o escritor Hélio Pólvora, está na gênese mesmo do jornalismo profissional da Bahia — o que aliás aumenta a propriedade dessa celebração, nesse dia, 7 de abril, dia instituído pela Associação Brasileira de Imprensa para festejar os agentes do campo.

Para quem não sabe, ou não lembra, Florisvaldo foi membro da equipe fundadora do curso de jornalismo no estado. Curso com o qual contribuiu significativamente, como docente, durante quase toda a sua trajetória, instruindo, apoiando, inspirando, enfim, formando gerações e gerações de profissionais — incluindo a minha.

Além de capacitar, técnica e eticamente, profissionais pro campo, ele atuou diretamente nele, produzindo, também acolhendo e orientando os mais novos, num processo contínuo de qualificação e valorização do fazer jornalístico.

E para contextualizar esse panorama, creio ser apropriado iterar sua atuação em algumas das redações mais influentes do País, como a sucursal do Jornal do Brasil, que chefiou; o Diário de Notícias, da cadeia dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, do qual foi editor-chefe; o Jornal da Bahia, que o teve como chefe de reportagem, e o jornal A Tarde, onde, entre outras funções, exerceu o papel de editor-chefe, e onde tive o privilégio de gozar de sua convivência — e ensinamentos.

Mas além desses lugares — do jornalista, do mestre —, e dos aqui já demarcados (do poeta e do ativista cultural), eu queria realçar um outro, na verdade, um “entrelugar” extremamente relevante, que é o do jornalismo cultural, forjado, notadamente, por meio da edição, criação ou recriação de suplementos literários que impactaram fortemente o processo cultural da Bahia, como o SDN, do Diário de Notícias.

Além do SDN, que aliás contou com outras assinaturas ilustres, como a do então jornalista Glauber Rocha, vale salientar o Caderno Cultural do jornal A Tarde.

O jornal A Tarde, que é de propriedade da família Simões, era, na época, o veículo de maior circulação e prestígio do Norte-Nordeste do País, e durante décadas sua redação foi dirigida por aquele que considero meu pai não biológico, Jorge Calmon, que foi quem convidou Florisvaldo Mattos para catalisar as forças culturais então em ebulição no estado, e que passaram a gravitar em torno do suplemento.

Acredito que possa avalizar parte considerável desse impacto porque estive, durante bom tempo, num ponto privilegiado de observação: do início da década de 90 até os anos 2000, enquanto Flori comandava o Caderno de Cultura, eu editava outro caderno, o Caderno 2, desse mesmo jornal, dedicado a artes e variedades.

Tive, portanto, a chance de observar de perto a tecedura, o fiar desse poderoso instrumento do campo simbólico, que desempenhou papel central na efervescência registrada na Bahia, nesse período, quando os princípios libertários da rebelião modernista pareciam ter sido finalmente encampados e desdobrados em expressões, comportamentos e movimentos artístico-culturais vários.

Aliás, como poucas vezes ocorre, a centralidade desse papel foi devidamente reconhecida, em tempo real, em tempo hábil: como alguns sabem, o Caderno Cultural de A Tarde, sob sua batuta, foi considerado por uma das mais respeitadas agremiações do país, a Associação Paulista de Críticos de Arte, como o melhor órgão de divulgação cultural do Brasil — e isso não é pouca coisa.

Mas a revisita a esse lugar de Florisvaldo Mattos permite também repisar sua farta produção em jornais, antologias e revistas locais, nacionais e internacionais. Entre as revistas, cabe apontar a Ângulos, vinculada à Faculdade de Direito da Ufba — campus no qual ele se formou, mas que, felizmente, não o firmou, porque ele seguiu, para sorte da instituição imprensa, o ofício de jornalista, especializando-se, para tanto, posteriormente, em Madri.

Ainda para realçar, nessa minha narrativa, a multiplicidade desse grapiúna universal, é interessante sublinhar sua contribuição à Revista da Bahia, vinculada à esfera estatal, e à revista Mapa — essa última, então, o meio de expressão mais, digamos assim, contundente de uma geração que ficou marcada pelo talento, entre outros, do genial cineasta Glauber Rocha, o arquiteto baiano do Cinema Novo, um dos que ousaram romper com o conservadorismo, a subserviência identitária, a alienação cultural. Sob influência, entre outros, do neorrealismo italiano, também no rastro dos ideais modernistas, tardiamente difundidos, absorvidos na Bahia.

É importante pontuar que não há como falar sobre qualquer das faces de Florisvaldo Mattos sem nos remetermos a alguns movimentos, como o Modernismo, e outros dele decorrentes, ou nele inspirados, como o Tropicalismo. Movimentos que pretenderam, no Brasil, revisar um contexto sociopolítico-cultural feito de dominação, marginalização, amarras colonialistas, enfim.

Contexto que produzia (continua produzindo, em diferentes frentes e escalas) efeitos nefastos na esfera social brasileira, e que era (ainda o é) legitimado, reconstruído, portanto, construído na esfera simbólica, na esfera das artes, da literatura, do jornalismo, da cultura em geral.

Mas não vou me deter sobre essa temática, aliás, permeada por muitas vertentes e tensões. É uma perspectiva histórico-cultural que está longe de ser pacificada. E isso, com certeza, será abordado, ou ilustrado com mais propriedade do que eu pelos demais oradores — atores e artífices que foram de alguns desses movimentos e expressões.

Enfim, desse lugar (o lugar das letras; letras ora mais próximas do pragmatismo do campo jornalístico; letras ora mais próximas da infinitude da ficção)... desse lugar, Mattos ajudou a construir a história de uma Bahia diversa, plural, pulsante, fustigando a acomodação intelectual e destituindo as ditaduras estéticas, literárias, comportamentais, pensamentais (me apropriando, aqui, de um neologismo usado pelo saudoso jornalista Béu Machado).

E ele fez isso com elas, as letras, também com ferramentas que as potencializam. Digo isso porque nosso imortal ocupou lugares de gestão, lugares estruturantes das letras, da cultura, como a Fundação Pedro Calmon, a diretoria da Associação Baiana de Imprensa e a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia (constituiu inclusive uma editora, a lendária Macunaíma).

E construiu essa história sem gritar. Com talento, com ética, com generosidade, com gentileza, com elegância, com respeito e, mais do que com conhecimento, mais do que com eruditismo, com sabedoria. Foi a sabedoria que lhe permitiu transitar, ocupar, transformar, construir espaços com perfis e modos de operação tão diversificados.

A sabedoria do respeito ao outro; do respeito às diversas maneiras de ser e de se colocar no mundo; do respeito aos pontos de vista diferentes dos seus; do respeito, enfim, aos variados pensares — o que é revolucionário, principalmente, num país que, como evidenciado, notadamente, nos últimos quatro anos, é tão afeito a fundamentalismos.

Em tempo de, como disse Chico Buarque sobre os anos de chumbo, “tanta mentira, tanta força bruta”, promover a reconstituição, em forma de homenagem, da trajetória de um sujeito que fez do campo simbólico um campo de exercício de liberdade e de respeito ao outro, é um ato político...

...e friso que estou falando de força bruta não apenas física. Essa também campeia na vida social brasileira da contemporaneidade, da atualidade. Mas saliento aqui a força bruta de intelectos movidos pela violência da hierarquização de pessoas e culturas, do desrespeito ao não igual, de absolutismos, de tiranias...

...enfim, em tempo de tanto “minta-se”, “negue-se”, “mate-se”, “cale-se”, mais que um ato literário, trata-se, essa iniciativa, de um ato libertário — pelo que parabenizo, uma vez mais, a ALB, porque assim como é importante lembrar, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça a barbárie dos anos de chumbo, as atrocidades da ditadura militar, é essencial manter viva a memória de letras que, como as de Florisvaldo Mattos, contrapõem-se a discursos selvagens e anti-humanistas; contrapõem-se à(s) ditadura(s), quaisquer que sejam, e que incluem as ditaduras da estética padrão, da identidade hegemônica, da estampa feminina ideal, do riso que humilha, desqualifica, diminui, oprime, fere, machuca.

No Brasil, como vimos, os ovos de serpente continuaram a ser chocados após a derrota dos golpistas de 64, explodindo numa onda de ódio de dimensões incalculáveis. Por isso, os humanistas, os arquitetos do ideal civilizatório, também precisam continuar operando. De dentro do nosso campo de luta, que é o campo simbólico, precisam/precisamos permanecer vigilantes e agir, ante as ameaças e efetivos desvios para os caminhos da selvageria, da incivilidade, da ignorância, do atraso, da brutalidade, da estupidez, inevitavelmente pavimentados, no mínimo legitimados, pelo campo das letras.


E Florisvaldo Mattos de tantos poemas, de tantos talentos, de tantos saberes e fazeres é, sobretudo, farol. Farol que precisamos manter aceso. É preciosa referência — como intelectual, como pessoa, como mestre.

Por tudo, por tanto, peço licença para, em nome das gerações que você formou, influenciou, conduziu, lhe agradecer, Flori — pelo que fez, pelo que faz, e pelo que fará, porque como reza a espiritualidade dos povos zulu, ainda que seu umzimba (ou seja, seu corpo físico) não mais circule nesses espaços, nos espaços aqui enfocados, seu isithunzi (ou seja, seu prestígio, sua influência, seus ensinamentos, seu legado) continua e continuará impactando esses espaços, forjando-os, enriquecendo-os, humanizando-os.

Quem sabe, um dia, Flori, o sonho que você me fez — nos fez — sonhar, se realize, e num domingo qualquer...

...os primeiros raios de sol rompam as nuvens, instalando na planície um jogo de luzes e sombras. / Na savana em penumbra, as formas de um baobá projetem-se contra o céu azul, rajado de lilás, vermelho e branco. / E no interior da gruta aberta na base do tronco, dois pequenos pontos cintilem, como estrelas no negrume da noite. / Furando o silêncio dos campos, um rugir prolongado, se repita uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes... / E cada rugido evoque outro, e outro, até que se convertam em toada, e a toada, em movimento — do alto das montanhas; nas depressões que rasgam os planaltos; por entre rochas, areias e gramíneas surjam vultos de caminhar lento, ondulante, mas vigoroso. /Então, os olhos incandescentes deixem a cava escura do baobá e juntem-se aos demais, norteando a marcha de panteras negras, que circundarão a “árvore do esquecimento”, retomada em sua função ancestral. / E do interior da “árvore da resistência” brotem (como desejou) justiça, equidade, liberdade. / Pra todos. Pra sempre!”*


Um brinde, pois, a esse caligrafista da resistência pelos 90 anos de vida, e por toda uma vida dedicada à construção de baianidades, nordestinidades, brasilidades e universalidades — portanto, humanidades.

Um beijo nesse seu belo coração querido mestre.

_____________________

* Adaptação de trecho do livro “O diário de uma louca”, da coleção “Histórias”, da jornalista Suzana Varjão, para homenagear o acadêmico Florisvaldo Mattos

PARA A SEÇÃO DE POESIA, DA REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DE BAHIA, Nº 60, ABRIL DE 2022.

 

FLORISVALDO MATTOS

 

Cinco poemas

 

NA CASA DE ASTÉRION

 

Tecer no azul do céu a cor da morte

Ou no verde do mar, na branca espuma,

E até não perceber quando se arruma

A casa onde a brisa, última consorte,

Descerra a porta para o Minotauro.

Apenas ouço-lhe o ruidoso trote,

Com o trágico de Borges holofote,

Igual à solidão em que me instauro.

Ele vem devagar, de agudo chifre,

Na tarde melancólica, de sombra

Vasta, que me rodeia e que me assombra,

Temeroso, a exigir que me decifre.

 

       Não sou Teseu, dispenso-me do luto.

       Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.

 

(Salvador, manhã de 05/03/2022)

 

 

SONETO DE MISTÉRIOS JUVENIS

 

                        À itabunense, poeta e ensaísta Heloísa Prazeres

 

Deixei Barro Vermelho, já era outono,

Levando no ombro o peso da saudade.

Ao despertar, pensando na cidade,

Para onde eu ia, me tirava o sono.

 

São mistérios que invadem o ser humano.

Miro o verde de sempre em despedida,

Cogitando já estar em outra vida,

Distante de grilhões do tempo insano.

 

Selas compostas, malas arriçadas,

Logo atravesso o rio de braçadas.

Sonhos há, que me servem de fortuna!

 

Subo no trem e, sepultando rastros,

Ao descer, ainda a confiar nos astros,

Mergulho nos mistérios de Itabuna.

 

(Salvador, tarde de 26/11/2021)

  

ESTA CASA JÁ FOI MINHA

 

Que casa antiga é esta que me olha da janela,

Em que tantas tardes passei e passaria?

Ela olha para todo lado, dia a dia,

E não se passam anos sem que pense nela.

 

Noite. Não sei por que me bate esta agonia

De tanto me passarem anos e ainda vê-la,

Como se vivesse uma vida paralela

À que bem distante vivi eu e viveria.

 

Nunca tive uma casa igual à que foi minha,

Em manhãs de mata e quintal sem flor daninha,

Viajando pelo mundo, tendo o que tiver.

 

No tempo longe de menino ou de rapaz,

Sei que essa casa ainda existe e ainda me quer,

Pousado em seu longo varal de amor e paz.

 

(Salvador, BA, manhã de 09/01/2018)

 

ÂNSIAS DE AMOR

(Canção em versos de cinco)

 

Escreverei versos,

Versos, até o fim.

Se em dias adversos,

seja na varanda,

seja no jardim,

tardes de lavanda,

lembre-se dos versos,

lembre-se de mim.

 

E se a noite é vasta,

de lua a sorrir,

não apague a casta,

sempre escondida

faina de ir e vir.

Viaje pela vida,

que não é madrasta

deste meu sentir.

 

Vou por mares vãos,

carregando fardos,

e trago nas mãos

ânsias e temores

que sofreram bardos.

Arsenal de dores,

ânsias de amor são

espinhos de cardos.

 

Escreverei versos,

sim, com o coração,

de sons sempre imersos

nos rios da vida,

para uma canção,

que ficou perdida,

nada perversos,

mesmo em solidão.

 

(Salvador, BA, tarde de 2021)

 

SONHADOR SONHADO, DE ELO EM ELO

 

No fundo da casa

de Sancho Alves de Melo,

havia um cavalo

que se montava em pelo.

 

E havia um buraco

de gerar pesadelo,

no fundo da roça

de Sancho Alves de Melo,

 

que só de mirá-lo

arrepiava o cabelo,

a profundidade

turvava o Setestrelo.

 

Buraco que um homem

sozinho abria com zelo.

Não se sabe se era

branco, negro ou amarelo.

 

Solteiro na vida,

disse que era donzelo

e que ali chegara,

fugindo de um flagelo.

 

Toda noite invade=lhe

um sonho de castelo:

que perto havia ouro,

no chão, sem paralelo.

 

Essa alma sem nome

largou o parabellum

e, com ferro e suor,

deu ao sonho seu elo.

 

Cavou e cavou,

com os dias em duelo,

pensando em ao sonho

chegar sem atropelo.

 

Prosseguiu cavando

com amor e desvelo,

e o vento a saudá-lo,

tocando violoncelo.

 

Alma retirante,

ao sol lançava apelo

de que não sumisse;

na vida vale o anelo.

 

Pássaros cantavam

e, num momento belo,

folhas solfejavam

um som nada singelo.

 

No céu, via o Cristo,

montado num camelo,

lhe abençoar a vida

de fé, único modelo.

 

Os dias e as tardes,

sem nenhum engabelo;

somente o amor ao ferro

salva um pé-de-chinelo.

 

“Ouro, somente ouro,

é o prêmio por que velo”,

brada. Embaixo, a terra

vai virando farelo.

 

Respira quietude,

dela puxa o novelo.

De alimento apenas

frutas e cogumelo.

 

A ele importa menos

que da alta serra o gelo.

Sofrer já lhe foi.

Hoje não, hoje é o selo

 

da sorte no tempo.

Que venha tudo pelo

ar. Que soprem músicas,

ventos de Apolo Délio!

 

“Há de sair meu sonho

deste fundo magrelo!

Sonho que se vá

Bem melhor que não tê-lo”.

 

Saco de pó no ombro,

o corpo em desmantelo,

mais firme que um touro,

a puxar um rastelo.

 

O tempo vencido,

à força de martelo;

o saco na escada

rebenta o tornozelo.

 

Ao redor avista

de flores o labelo,

aves saltitantes,

a fugir de pinguelo.

 

Cacaueiros novos

tratados a cutelo,

bem melhor o peso,

torturando o canelo.

 

O vento zunindo,

com raiva de escalpelo,

finca-lhe na fronte

mudo sinal de estrelo.

 

Afundado em ânsias,

no escuro, o peito nuelo,

só o ouro, o sonhado ouro,

é capaz de entretê-lo.

 

Um dia descobre:

está branco o cabelo;

se o sonho persiste,

não cogita perdê-lo.

 

Se a lua e as estrelas

guardam silêncio, ao vê-lo,

é que não quiseram

os deuses protegê-lo.

 

Dor funda e martírio

golpearam seu anelo.

Nada há para salvá-lo,

Nem mesmo o Setestrelo.

 

O ouro tão sonhado

dorme no cerebelo.

Será que o recebem,

De volta a Cabedelo?

 

Com vinte mil réis,

de Sancho Alves de Melo,

chorou e partiu.

Nem Deus conseguiu vê-lo.

 

Este ingênuo cabra

sonhou um sonho belo.

Se pertence aos fados,

não dá para perdê-lo.


ABRIL

 

 Razão dou a Eliot e a Mendes Campos.

“Abril é o mais cruel dos meses”, ambos

Cantaram: um em claro inglês, lustroso;

Segue-o o outro, em português melodioso.

 

(Poema de POESIA REUNIDA E INÉDITOS, de Florisvaldo Mattos, 2011)

 





      QUE VENHAM ABRIL E SUCESSIVOS OUTONOS!

 

Muito obrigado a todos os amigos e amigas, que me saudaram hoje com parabéns, por minha em nada tortuosa subida por 91 lances de meu Everest existencial. Em correspondência, segue abaixo o poema que escolhi para marcar este meu especial momento.

Como ilustração, vão foto elaborada por Mauro Coelho e reprodução de famosa tela de Paul Cézanne, Jogadores de Cartas.

 

VIGÊNCIA DA NOITE – OU AURORA

 

Como um pássaro que passeia devagar na estiva


de um porto qualquer, olhos baços, mente esquiva,

 

divago na sala, mirando as estrelas da noite que passa.

Para ser um filósofo, em grave silêncio, me falta massa,

 

temas eternos, mente febril, serenidade no olhar,

imunidade a relógios e o grave prazer de pensar;

 

me exprimo com o nada, atento aos estertores da vida,

neste espaço que me serve de confortável guarida,

 

para pensar em mim mesmo, amealhar meus ciclones,

ruídos da alma, como quem reaviva um cemitério de clones.

 

Como quem mira estrelas cadentes, na noite sossegada,

me estiro no sofá, respiro e realinho as curvas da estrada,

 

mais próximo de mim, inumeral, distante do mundo,

sem ser nenhum gênio, mago, de pensamento profundo.

 

Com um livro na mão, revista ou jornal, um copo de vinho,

converso comigo, meus dias e noites, com saudades de mim.

 

Ou com o que me resta de sustos, recompondo os cristais,

que a vida quebrou, o vento levou e, no entanto, quer mais.

 

E com tantos sentimentos vivos que me correm na veia,

na noite diversa, como um grão que se desprende da areia,

 

medito estendido no sofá desta sala como sempre agradável,

sempre calma, sem calor de emoções, sem tempo instável.

 

Enquanto a amada que vigia meus sonos dorme no quarto,

ouço na caixa de som alguém a dizer-se de sonhos farto;

 

eu próprio, em meu canto, me alimento de perdas também,

por minhas estivas mentais aguardo a madrugada que vem.

 

O vento lá fora rebenta vidraças, em plena alvorada;

cá dentro divago, espio a noite. Não espero mais nada.

 

(Florisvaldo Mattos, Salvador-BA, junho de 2006)

 

 FLORISVALDO MATTOS, 91 ANOS

Carlos Barbosa

Um dos mais expressivos nomes da poesia baiana, meu professor na faculdade de Comunicação, imortal da Academia de Letras da Bahia, parceiro de comes e bebes no Ceasinha, faz aniversário hoje e estendo aqui os meus parabéns, encaminhados mais cedo pelo zapp:

Flori, verbete vinculado a certo estado d'alma, cujas fronteiras se dissolvem em poemas épicos e ébrios banquetes populares.

Flori, espírito de entes múltiplos e boêmios, a exemplo de bordôs, uísques, caipirinha coada e causos do tempo de foca e de agitador cultural. Ver, por atração irresistível,  tópicos de flores e floretes, sem buscar floreios desnecessários.

Flori, o moço, espanta nuvens e crises existenciais a bengaladas e a goles tintos e tantos, que, sem tropeços, acontece de amanhecer sem anoitecer e vice-versa.

Flori, o mestre, puxa fieira de discípulos fiéis de cada batente em que militou, todos pasmos por, de repente, notarem em si velhice que a ele se nega.

Flori, que hoje crava 91 como quem se deleita nos 19, calha de ser grapiúna, que é um tipo de hidromel nativo conhecido apenas pelo povo Mattos, amante da beleza de toda e qualquer arte.

Esse menino Flori, meu amigo, habita varandas e brisas, sempre a merecer os melhores derramamentos olímpicos e divinos; e que esses venham sem restrições e sejam do tipo "muitos e muitos anos mais".

Viva Flori, Flori viva!!!

Parabéns, mestre!

 https://www.instagram.com/p/CqyglzQrhlsEPeePjVjIuK2cal8uk6xKNBuKlY0/?igshid=MDJmNzVkMjY=

Esta bela homenagem foi escrita e a mim enviada pelo romancista e contista Carlos  Barbosa.


 

          Paul Cézanne (1839-1906): Jogadores de Cartas (1889)

PARTICIPAÇÃO NA REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, Nº 61, 2023 – SEÇÃO DE POESIA

 

CINCO INÉDITOS, DOIS DE SIMBOLISMO ADOLESCENTE

 

FLORISVALDO MATTOS

 

 

FÚRIA ACERBA

 

O amor, monstro voraz que a todos aniquila,

Deixou um dia a furna, a solitária e escura

Furna, onde habita e, agora, a minha alma tranquila

Com os látegos de dor, estúpido, tortura.

 

Antropófago, horrendo e informe, que se asila

Dentro de mim, e vive, e anseia e em mim perdura,

Impõe, no seu furor, que em pasmos de loucura,

Traga eu fascinação de abismos na pupila.

 

E após eu ter galgado a rústica montanha

Do instinto sensual, que me penetra o seio,

Ele, de novo, dentro de mim, rosna e se assanha.

 

E fico a perguntar a mim, inconsciente, e a esmo,

Quem é esse canibal, terrivelmente feio,

Que vive a me espancar no fundo de mim mesmo!...

 

(MATTOS, 1952).

 

VOZES OCULTAS

                                              

As lágrimas de orvalho, azuis, de folha em folha,

Rolam. Cada uma em pós, minuto por minuto,

Trêmula, molha o musgo, o lírio e a pedra e molha

O vetusto mural e o abandono absoluto.

 

Nítida, a folha chora esta manhã nevoenta...

E a profunda avidez, modorral, onde medra

A íntima flor de sangue, obscura, que orienta

O silêncio feral desses muros de pedra.

 

E treme e sofre: e afinal sem dizer o que sente

Revela sua dor nessa queixa inocente.

 

E a lágrima de orvalho escorre dolorosa

A banhar, cristalina, as pétalas de rosa,

O silêncio da pedra, o musgo e as velhas portas

E a quietude claustral dessas paragens mortas.

 

A consciência do Nada, ascética e sombria,

Lentamente, penetra essa prisca abadia.

 

E, pesada, percebe a indiferença enorme

Que na áspera feição dessas paredes dorme.

Em cada esquina paira um profundo lamento,

Ao súbito rumor sonâmbulo do vento.

 

Solitude imortal, que a vida humana assiste,

Tu te moves, talvez, nessa aquarela triste.

 

Teu mistério revela um símbolo profundo,

Mais fundo que a esperança e que o existir mais fundo.

 

E te deixas ficar surdamente vagando,

E, à vã lamentação dessas folhas, sonhando.

 

Solitude imortal dos labirintos d’alma,

Tu dominas, eterna, essa amplitude calma.

 

Só tu podes sentir o pranto que promana

Da ironia sutil das sentenças veladas:

Muito mais que o Universo e toda a vida humana

É o silente sofrer dessas folhas molhadas.

 

Eu me encontro em ti, folha, em minha velha mágoa;

Pois pressinto que a vida, após essas estradas,

Não comporta o que existe em uma gota d’água.

 

(MATTOS, 1952).

 

SONETO DE UM AMARGO PAÍS*

 

Andam monstros sombrios pela estrada

E pela estrada, entre estes monstros, ando!

                        (Augusto dos Anjos)

 

Nunca soube, Brasil, que tu morrias.

Saltei montanhas, rios, selvas, tudo.

Corri cidades, anos até de estudo,

Sem que manchassem minhas alegrias.

Já ali, onde eu corria em disparada

De fauno, a celebrar epifanias,

Poeta enxerga “um poço de agonias”,

“Transbordando dejetos” de manada.

Alude a treva e “horror em vendavais”,

Em que nos mergulhou demente voto.

Como de sonhos sempre foi devoto,

Alça a voz agra de Poe: “Nunca mais!”.

 

Para um país já morto, não há lei;

Árdua verdade que de muito sei!

 

(MATTOS, 2020).

 

 

SONETO DE AMOR E MAR

 

Não era ainda madrugada,

quando rompem tiros no ar,

estouro igual de manada,

no âmago de ódios sem par.

 

A lua estende, prateada,

sua toalha sobre o mar,

e vens, lua imaginada,

para me fazer sonhar.

 

Esqueci-me da manada;

dos ódios, o marulhar.

Sentei-me na balaustrada

e me pus a meditar.

         Não mais tiros a estalar,

         Só amar une amor e mar.

 

(MATTOS, 2022)*.

 

 

SONETO DO TÉDIO NA PANDEMIA*

                    

Acordei sem saber o que faria.

Silentes dedos nem mesmo se movem.

Existe ainda quem antes me ouvia?

Nem mesmo pássaros agora me ouvem.

 

Da esquina de ontem, hoje fogo-morto,

Os lentos passos de quem se perdia

Sobre o asfalto ossudo da pandemia,

Miro o cenário que me deixa absorto.

 

Lá no balcão o copo de cerveja

Roga: se me for, lembre quanto arqueja!

Guardo em mim o clamor, porém não ligo.

 

Vou para casa ler meu Baudelaire,

Sujeito a ouvir, de súbito inimigo,

Que este poeta “não é pra bode ler”

 

(MATTOS, 2022). 


MATTOS, Florisvaldo. Soneto de amor e mar. Salvador-BA, noite de 20 fev. 2022.

(*) Paráfrase de verso epigramático atribuído, pelo estilo mordaz, a membro da boemia carioca de dos idos de 1890 e 1900, mas também, objetivamente, ao romântico Fagundes Varela, por Alberto Faria (1869-1925), em conferência na Academia Brasileira de Letras, em 1925, como resposta a alguém que lhe pediu emprestado As Flores do Mal, de Charles Baudelaire (1821-1867). Link abaixo.

 https://pt.wikisource.org/wiki/O_Brasil_Aned%C3%B3tico/CCLXV

 

 





 


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