Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista (SP). no ano de 1940. Mudou-se em 1967 para a capital paulista, onde cursou filosofia na Universidade de São Paulo. É autora dos livros de poesia Transposição (Instituto de Espanhol da USP, 1969), Helianto (Duas Cidades, 1973), Alba (Roswitha Kempf, 1983), Rosácea (Roswitha Kempf, 1986), Trevo (1969-1988) e Teia (Marco Zero, 1996), Aqui aconteço, teatro, . Sua obra foi reunida, em 2015, pela editora Hedra, acrescida de poemas inéditos. Em 1996, o livro Teia, reunião de toda a sua obra, recebe o Prêmio concedido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Seu livro, Poesia Reunida, é lançado em 2006 e Poesia completa, em 2015.
O mundo proporcionou à poeta momentos agudos de depressão e solidão, além de costumeiras dificuldades financeiras. Tanto que ela recebeu apoio dos amigos Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e Marilena Chauí. Seu drama pessoal era traduzido além da página. O peso da realidade a conduziu várias vezes a tentativas de suicídio.
No final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda, na Casa do Estudante Universitário, velho prédio na Avenida São João, região central de São Paulo, onde passou seus últimos anos. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 2 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, provocada por uma tuberculose, na Fundação Sanatório São Paulo. Não fosse a ajuda de um médico da Fundação, que viu um livro juntamente com os objetos pessoais de Orides, a poeta poderia ter morrido como indigente.
POEMAS DE ORIDES FONTELA
FALA
Tudo
será
difícil de dizer:
a palavra
real
nunca é
suave.
Tudo será
duro:
luz
impiedosa
excessiva
vivência
consciência
demais do ser
Tudo será
Capaz de
ferir. Será
Agressivamente
real.
Tão real
que nos despedaça.
Não há
piedade nos signos
E nem no
amor: o ser
É
excessivamente lúcido
E a
palavra é densa e nos fere
(toda a
palavra é crueldade)
HELIANTO
Cânon
da flor
completa
metro /
valência / rito
da flor
verbo
Círculo
exemplar
de helianto
flor e
mito
ciclo
do
complexo espelho
flor e
ritmo
cânon
da luz
perfeita
MÃOS
Com as
mãos nuas
lavrar o
campo:
as mãos
se ferindo
nos
seres, arestas
da
subjacente unidade
as mãos
desenterrando
luzes fragmentos
do
anterior espelho
com as
mãos nuas
lavrar o
campo:
desnudar
a estrela essencial
sem ter
piedade do sangue.
MINÉRIO
o metal e
seu pálido horizonte
o metal
tempo opondo-se ao olhar vivo:
o metal
adensando
e
horizonte e
fronteira
inviolada
O metal
presença
Íntegra
opondo às
águas seu frio
e
incorruptível núcleo
POEMA
Saber de
cor o silêncio
diamante
e-ou espelho
o
silêncio além
do
branco.
Saber seu
peso
Seu signo
– habitar
sua estrela
Impiedosa.
Saber seu
centro: vazio
esplendor
além
da vida
e vida
além
da
memória.
Saber de
cor o silêncio
– e
profaná-lo, dissolvê-lo
em
palavras.
OUTROS POEMAS DE ORIDES FONTELA
O NOME
A escolha do nome: eis tudo.
O nome circunscreve
o novo homem: o mesmo,
repetição do humano
no ser não nomeado.
O homem em branco, virgem
da palavra
é ser acontecido:
sua existência nua
pede o nome.
Nome
branco sagrado que não
define, porém aponta
que o aproxima de nós
marcado do verbo humano.
A escolha do nome: eis
o segredo.
SENSAÇÃO
Vejo cantar o pássaro
toco este canto com meus nervos
seu gosto de mel. Sua forma
gerando-se da ave
como aroma.
Vejo cantar o pássaro e através
da percepção mais densa
ouço abrir-se a distância
como rosa
em silêncio.
ODES
I
O verbo?
Embebê-lo de denso vinho.
A vida?
Dissolvê-la no intenso júbilo.
II
Sonho vivido desde sempre
̶ real buscado até o sangue.
III
O Sol cai até o solo
a árvore dói até o cerne
a vida pulsa até o centro
… o arco se verga
até o extremo limite.
IV
Lavro a figura
não em pedra: em silêncio.
Lavro a figura
não na pedra (inda plástica) mas no
inumano vazio
do silêncio.
V
A flor abriu-se.
A flor mostrou-se em sua inteireza:
̶ Tragamos, ouro, incenso, mirra!
As Parcas
As Parcas
fiam
nada
tecendo
tecendo o nada
em lento fio
branco? Nem
branco:
apenas pura
perda, sussurro
de lento canto
que autoesvazia-se
e ̶ inútil ̶ tomba
evanescendo-se
na transparência.
……………………….
Apenas
isto:
Parcas vigilam.
Cintila o
mar.
A loja (de relógios)
I
O relógio
horologium
a hora
o logos.
II
Os peixes estão
no aquário
o touro está
na balança
e a virgem
parindo
os gêmeos.
III
Os relógios estão
na eternidade.
Círculo
O círculo
é astuto:
enrola-se
envolve-se
autofagicamente.
Depois
explode
̶ galáxias! ̶
abre-se
vivo
pulsa
multiplica-se
divindade círculo
perplexa
(perversa?)
unicírculo
o
devorando
tudo
TEIA
A teia, não
mágica
mas arma, armadilha
a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente
a teia, não
arte
mas trabalho, tensa
a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:
no
centro
a aranha espera.
O ANTIPÁSSARO
Um pássaro
seu ninho é pedra
seu grito
metal cinza
dói no espaço
seu olho.
Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.
Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura.
Apesar.
MEMÓRIA
A cicatriz, talvez
não indelével
o sangue
agora
estigma.
.
Nunca amar
o que não
vibra
nunca crer
no que não
canta.
.
O espelho dissolve
o tempo
o espelho aprofunda
o enigma
o espelho devora
a face.
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-te
— és infinitamente mais estranho
DESTRUIÇÇÃO
A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.
A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.
A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.
O que é impalpável
mas
pesa
o que é sem rosto
mas
fere
o que é invisível
mas
dói
Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/orides_fontela.html
https://revistaacrobata.com.br/acrobata/artigo/o-movimento-circular-na-poesia-de-orides-fontela/
ORIDES FONTELA
Impossível falar de Orides Fontela sem comentar a sua vida tão atormentada, numa sequência de depressões e doenças. Por isso, jornais e revistas sempre focalizaram mais os detalhes sórdidos de sua vida e pouco a sua poesia. Agora, que ela se foi, espera-se que a poesia de qualidade que ela produziu passe a ocupar o primeiro plano. Sua obra pequena, concentrada e econômica, tem qualidade e intensidade para continuar sendo lida e admirada. Mesmo em vida, Fontela teve um reconhecimento crítico considerável. Seu talento nunca foi negado. Já que falar da biografia de Orides Fontela é inevitável, convém desde o início esclarecer alguns equívocos que cercam sua história. Há uma tendência para fazer de Fontela uma vítima da sociedade. Muitos querem compará-la a Cruz e Souza ou a Lima Barreto. Ela mesma em uma entrevista disse que era a poeta mais pobre do Brasil. Igual a ela, dizia, somente Cruz e Souza. É verdade que veio de uma família muito pobre, de pais analfabetos, que inclusive transmitiram-lhe a sífilis. Esse complexo de inferioridade social acompanhou Orides desde São João da Boa Vista, terra que produziu muitos talentos, além dela, a pianista Guiomar Novais e o crítico Davi Arrigucci Jr. Uma matéria de Mario Sabino publicada na revista Veja de outubro de 1995 traça um perfil bem realista do que era o convívio com Orides. A verdade é que Orides encontrou em São Paulo apoio em diversas ocasiões. Antônio Cândido, Augusto Massi, Davi Arrigucci Jr., José Mindlin, Maria Antônia (da Livraria e Editora Duas Cidades), Marilena Chauí, Eunice Arruda, Ieda de Abreu sempre a auxiliaram. Aposentada, tinha uma pequena renda que não era muito diferente do que recebe a grande maioria. Todos do meio reconhecem a infinita paciência de Massi para com ela. A edição de Trevo, pela Duas Cidades, foi um dos melhores momentos da vida de Orides. Até o fim, teve a fidelidade e amizade de Gerda que soube compreender suas idiossincrasias. Portanto, a personalidade de Orides era muito complexa e difícil. Não cabe culpar aqueles de boa vontade que tentaram ajudá-la. Nem a ela, por ser de trato tão difícil. Em conversas que tive com ela, reconhecia que era áspera, sem travas na língua e que se indispunha com as pessoas. Muito isolada nos últimos anos, dizia que estava mais amena. A própria fragilidade física tirara-lhe a disposição para a briga. À sua maneira, era uma aristocrata. Pedíamos-lhe bom senso, bons modos, contenção e ela nos respondia com desdém, irreverência, frases cortantes e excessos aos nossos apelos de classe média bem comportada. Como julgá-la quando muito de nós estávamos sendo assombrados pelos mesmos fantasmas? O poeta, dramaturgo e diretor de teatro Celso Alves Cruz traçou-lhe o retrato em um poema muito apropriadamente chamado “A selvagem Orides”. Filha única, solitária, sem filhos ou parentes próximos, sem móveis ou objetos acumulados, a única e principal referência de Orides era a sua poesia. Embora tenha sido desleixada até mesmo com sua saúde, era zelosa com sua poesia. Tinha consciência do seu valor como poeta. Interessava-se pela divulgação e a edição de suas obras. Ultimamente, estava preocupada com a edição de Trevo na França que não chegou a ver. Na última vez que falamos ao telefone, já internada em Campos do Jordão, ela pediu notícias do livro. Portanto, a melhor homenagem que os poetas podem prestar-lhe é continuar editando sua poesia para que ela se multiplique. A obra de Orides permanece límpida e sem arestas. Nunca foi contaminada pela mesquinharia do quotidiano. Há um tom de amargura lírica e seca em seus poemas. Em momento algum, ela é sentimental, derramada ou frouxa. Sua voz poética original nasceu praticamente formada no primeiro livro. Seu alheamento a correntes ou modismos, possibilitou uma poesia que prima pela concisão, pela economia de recursos e densidade. Tornou-se lugar comum falar da poesia que busca o silêncio. Para alguns, isso significa não ter nada a dizer ou produzir fiapos sem sintaxe. Para outros, com Orides, significa deter-se no que é essencial. É uma poesia descarnada, sem enfeites, de uma dureza óssea e de cunho filosófico. Difere muito da poesia minimalista, coloquial e de descrição de paisagens miniaturizadas. Penso na poesia do mineiro Ronald Polito, autor de Intervalos, com uma das poucas que têm afinidade coma obra de Orides Fontela. Como leitor, costumava ler versos como quem lesse um koan. Para minha surpresa, não havia nenhuma suavidade na leitura feita pela própria Orides. Ela lia seus poemas de maneira forte, vigorosa, sincopada. Foi uma experiência reveladora vê-la numa grande cadeira da Livraria Duas Cidades tratando sua poesia com voz incisiva e decidida. Causava um estranhamento saber que aquela energia poética vinha de uma mulher tão frágil e com a saúde debilitada. Penso que ela gostaria de ser lembrada por sua produção poética. Numa entrevista, disse que "o maior bem possível é a poesia". Seu fim em um hospital público foi o desenlace de um drama sempre anunciado. Não difere muito do fim de uma poeta como Marina Tsvetaeiva que foi jogada numa vala comum, depois de se suicidar, na Sibéria para onde fora deportada. Como quase todo poeta, Fontela não tinha o menor senso para a vida prática. Nunca conseguiu se desvencilhar dos traumas familiares e das armadilhas que a vida foi lhe reservando. Aos 58 anos, parecia ter vinte anos mais. O sofrimento acabou. Está calada sua voz áspera. O melhor e o mais precioso bem que ela nos legou é sua poesia. |





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