terça-feira, 24 de janeiro de 2023

POESIA, SEMPRE, AQUI, ALÍ, ACOLÁ!



ORIDES FONTELA (1940-1998)




A POESIA NÃO SALVA O QUE A REALIDADE CONDUZ

Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista (SP). no ano de 1940. Mudou-se em 1967 para a capital paulista, onde cursou filosofia na Universidade de São Paulo. É autora dos livros de poesia Transposição (Instituto de Espanhol da USP, 1969), Helianto (Duas Cidades, 1973), Alba (Roswitha Kempf, 1983), Rosácea (Roswitha Kempf, 1986),  Trevo (1969-1988) e Teia (Marco Zero, 1996), Aqui aconteço, teatro, . Sua obra foi reunida, em 2015, pela editora Hedra, acrescida de poemas inéditos. Em 1996, o livro Teia, reunião de toda a sua obra, recebe o Prêmio concedido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Seu livroPoesia Reunida, é lançado em 2006 Poesia completa, em 2015.

O mundo proporcionou à poeta momentos agudos de depressão e solidão, além de costumeiras dificuldades financeiras. Tanto que ela recebeu apoio dos amigos Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e Marilena Chauí. Seu drama pessoal era traduzido além da página. O peso da realidade a conduziu várias vezes a tentativas de suicídio.

No final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda, na Casa do Estudante Universitário, velho prédio na Avenida São João, região central de São Paulo, onde passou seus últimos anos. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 2 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, provocada por uma tuberculose, na Fundação Sanatório São Paulo. Não fosse a ajuda de um médico da Fundação, que viu um livro juntamente com os objetos pessoais de Orides, a poeta poderia ter morrido como indigente.


POEMAS DE ORIDES FONTELA

 

FALA

 

Tudo

será difícil de dizer:

a palavra real

nunca é suave.

Tudo será duro:

luz impiedosa

excessiva vivência

consciência demais do ser

Tudo será

Capaz de ferir. Será

Agressivamente real.

Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos

E nem no amor: o ser

É excessivamente lúcido

E a palavra é densa e nos fere

(toda a palavra é crueldade)

 

HELIANTO

 

Cânon

da flor completa

metro / valência / rito

da flor

verbo

Círculo

exemplar de helianto

flor e

mito

ciclo

do complexo espelho

flor e

ritmo

cânon

da luz perfeita

 

MÃOS

 

Com as mãos nuas

lavrar o campo:

as mãos se ferindo

nos seres, arestas

da subjacente unidade

as mãos desenterrando

luzes fragmentos

do anterior espelho

com as mãos nuas

lavrar o campo:

desnudar a estrela essencial

sem ter piedade do sangue.

 

MINÉRIO

 

o metal e seu pálido horizonte

o metal tempo opondo-se ao olhar vivo:

o metal adensando

e horizonte e

fronteira inviolada

O metal presença

Íntegra

opondo às águas seu frio

e incorruptível núcleo

 

POEMA

 

Saber de cor o silêncio

diamante e-ou espelho

o silêncio além

do branco.

Saber seu peso

Seu signo

– habitar sua estrela

Impiedosa.

Saber seu centro: vazio

esplendor além

da vida

e vida além

da memória.

Saber de cor o silêncio

– e profaná-lo, dissolvê-lo

em palavras.



     OUTROS POEMAS DE ORIDES FONTELA


O NOME

A escolha do nome: eis tudo.

O nome circunscreve
o novo homem: o mesmo,
repetição do humano
no ser não nomeado.

O homem em branco, virgem
da palavra
é ser acontecido:
sua existência nua
pede o nome.

Nome
branco sagrado que não
define, porém aponta
que o aproxima de nós
marcado do verbo humano.

A escolha do nome: eis
o segredo.

SENSAÇÃO

Vejo cantar o pássaro
toco este canto com meus nervos
seu gosto de mel. Sua forma
gerando-se da ave
como aroma.

Vejo cantar o pássaro e através
da percepção mais densa
ouço abrir-se a distância
como rosa
em silêncio.

ODES

I

O verbo?

Embebê-lo de denso                                                                                                                                                                            vinho.

A vida?

Dissolvê-la no intenso                                                                                                                                                                         júbilo.

II

Sonho vivido desde sempre

̶  real buscado até o sangue.

III

O Sol cai até o solo

a árvore dói até o cerne

a vida pulsa até o centro

… o arco se verga

até o extremo limite.

IV

Lavro a figura

não em pedra:                                                                                                                                                                                       em silêncio.

Lavro a figura

não na pedra (inda plástica) mas no

inumano vazio

do silêncio.

V

A flor abriu-se.

A flor mostrou-se em sua                                                                                                                                                                     inteireza:

̶  Tragamos, ouro, incenso, mirra!


As Parcas


As Parcas

fiam

nada

tecendo

tecendo o                                                                                                                                                                                               nada

em lento fio

branco? Nem

branco:

 

apenas pura

perda, sussurro

de lento canto

que autoesvazia-se

 

e  ̶  inútil  ̶                                                                                                                                                                                             tomba

evanescendo-se

na transparência.

……………………….

Apenas

isto:

Parcas vigilam.

Cintila o

mar.


A loja (de relógios)

I

O relógio

horologium

a hora

o logos.

 

II

Os peixes estão

no aquário

o touro está

na balança

 

e a virgem

parindo

os gêmeos.

 III

Os relógios estão

na eternidade.


Círculo


O círculo

é astuto:

enrola-se

envolve-se

 

autofagicamente.

 

Depois

explode

̶  galáxias!  ̶

 

abre-se

vivo

pulsa

 

multiplica-se

 

divindade círculo

perplexa

(perversa?)

unicírculo

devorando

tudo


TEIA


A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
                      prenhe:

no
centro
a aranha espera.



O ANTIPÁSSARO


Um pássaro
seu ninho é pedra

seu grito
metal cinza

dói no espaço
seu olho.

Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.

Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura.
Apesar.



MEMÓRIA

A cicatriz, talvez
não indelével

o sangue
agora
estigma.

.

Nunca amar
o que não
vibra

nunca crer
no que não
canta.

.

O espelho dissolve
o tempo

o espelho aprofunda
o enigma

o espelho devora
a face.


INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

— és infinitamente mais estranho

DESTRUIÇÇÃO

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.

A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.

A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.

ADIVINHA

O que é impalpável
mas
pesa

o que é sem rosto
mas
fere

o que é invisível
mas
dói


DESAFIO

Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/orides_fontela.html

https://revistaacrobata.com.br/acrobata/artigo/o-movimento-circular-na-poesia-de-orides-fontela/



ORIDES FONTELA

Orides Fontela (1940-1998) morreu na mais completa miséria, mesmo sendo considerada um dos nomes mais importantes da poesia brasileira contemporânea.
Entre os admiradores de Orides se incluem Antonio Candido, Marilena Chauí e Davi Arrigucci Jr.
Orides nasceu em 21 de abril de 1940, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Desde criança escrevia versos, e muito cedo começou a publicar seus poemas nos jornais da cidade. Nos anos 60, mudou-se para São Paulo e estudou filosofia na USP.
Em 1969, era publicado seu primeiro livro, Transposição. Depois vieram Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986) e Teia (1996). Com Alba, Orides ganhou o prêmio Jabuti. Os quatro primeiros livros foram reunidos no volume Trevo, que fez parte da coleção Claro Enigma, da Editora Duas Cidades. Na França, os poemas foram publicados em dois volumes com o título Trèfle. A Cosac Naify lançou, em 2006, o volume Poesia Reunida.
Professora primária e bibliotecária, Orides viveu sempre em meio a grandes dificuldades. Sempre com os nervos à flor da pele, meteu-se em encrencas e provocou escândalos com seus melhores amigos. Boêmia e depressiva, várias vezes tentou o suicídio. Exageros que culminaram na morte precoce, aos 58 anos, num sanatório em Campos do Jordão.

BibliografiaTransposição, 1969, Instituto de Espanhol da USP, coordenada por Davi Arrigucci Jr.; Helianto, 1973, Duas Cidades; Alba, 1983, Roswitha Kempf, Prêmio Jabuti; Rosácea, 1986, Roswitha Kempf; Trevo, 1988, Coleção Claro Enigma, organização de Augusto Massi; Teia, 1996, Marco Zero, Prêmio concedido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte; Poesia Reunida, 2006, Cosac Naif/7 Letras; Trèfle (Trevo), tradução Emmanuel Jaffelin e Márcio de Lima Dantas - Paris: L'Harmattan, 1998; Rosace (Rosácea), tradução Emmanuel Jaffelin e Márcio de Lima Dantas - Paris: L'Harmattan, 2000.

Já foram publicados alguns poemas de Orides aqui em Poemargens, num texto denominado Três Poetas do Barulho, em que ela é colocada ao lado de Hilda Hilst e Sylvia Plath. Abaixo transcrevo uma bela homenagem do poeta Donizeti Galvão à autora e um pequeno conjunto de poemas de Orides.



Orides Fontela:  o maior bem possível é a sua poesia
 
DONIZETE GALVÃO
 
Impossível falar de Orides Fontela sem comentar a sua vida tão atormentada, numa sequência de depressões e doenças. Por isso, jornais e revistas sempre focalizaram mais os detalhes sórdidos de sua vida e pouco a sua poesia. Agora, que ela se foi, espera-se que a poesia de qualidade que ela produziu passe a ocupar o primeiro plano. Sua obra pequena, concentrada e econômica, tem qualidade e intensidade para continuar sendo lida e admirada. Mesmo em vida, Fontela teve um reconhecimento crítico considerável. Seu talento nunca foi negado. Já que falar da biografia de Orides Fontela é inevitável, convém desde o início esclarecer alguns equívocos que cercam sua história. Há uma tendência para fazer de Fontela uma vítima da sociedade. Muitos querem compará-la a Cruz e Souza ou a Lima Barreto. Ela mesma em uma entrevista disse que era a poeta mais pobre do Brasil. Igual a ela, dizia, somente Cruz e Souza. É verdade que veio de uma família muito pobre, de pais analfabetos, que inclusive transmitiram-lhe a sífilis. Esse complexo de inferioridade social acompanhou Orides desde São João da Boa Vista, terra que produziu muitos talentos, além dela, a pianista Guiomar Novais e o crítico Davi Arrigucci Jr. 

Uma matéria de Mario Sabino publicada na revista Veja de outubro de 1995 traça um perfil bem realista do que era o convívio com Orides. A verdade é que Orides encontrou em São Paulo apoio em diversas ocasiões. Antônio Cândido, Augusto Massi, Davi Arrigucci Jr., José Mindlin, Maria Antônia (da Livraria e Editora Duas Cidades), Marilena Chauí, Eunice Arruda, Ieda de Abreu sempre a auxiliaram. Aposentada, tinha uma pequena renda que não era muito diferente do que recebe a grande maioria. Todos do meio reconhecem a infinita paciência de Massi para com ela. A edição de Trevo, pela Duas Cidades, foi um dos melhores momentos da vida de Orides. Até o fim, teve a fidelidade e amizade de Gerda que soube compreender suas idiossincrasias. Portanto, a personalidade de Orides era muito complexa e difícil. Não cabe culpar aqueles de boa vontade que tentaram ajudá-la. Nem a ela, por ser de trato tão difícil. Em conversas que tive com ela, reconhecia que era áspera, sem travas na língua e que se indispunha com as pessoas. Muito isolada nos últimos anos, dizia que estava mais amena. A própria fragilidade física tirara-lhe a disposição para a briga. À sua maneira, era uma aristocrata. Pedíamos-lhe bom senso, bons modos, contenção e ela nos respondia com desdém, irreverência, frases cortantes e excessos aos nossos apelos de classe média bem comportada.
Como julgá-la quando muito de nós estávamos sendo assombrados pelos mesmos fantasmas? O poeta, dramaturgo e diretor de teatro Celso Alves Cruz traçou-lhe o retrato em um poema muito apropriadamente chamado “A selvagem Orides”. 

Filha única, solitária, sem filhos ou parentes próximos, sem móveis ou objetos acumulados,  a única e principal referência de Orides era a sua poesia. Embora tenha sido desleixada até mesmo com sua saúde, era zelosa com sua poesia. Tinha consciência do seu valor como poeta. Interessava-se pela divulgação e a edição de suas obras. Ultimamente, estava preocupada com a edição de Trevo na França que não chegou a ver. Na última vez que falamos ao telefone, já internada em Campos do Jordão, ela pediu notícias do livro. Portanto, a melhor homenagem que os poetas podem prestar-lhe é continuar editando sua poesia para que ela se multiplique. 

A obra de Orides permanece límpida e sem arestas. Nunca foi contaminada pela mesquinharia do quotidiano. Há um tom de amargura lírica e seca em seus poemas. Em momento algum, ela é sentimental, derramada ou frouxa. Sua voz poética original nasceu praticamente formada no primeiro livro. 

Seu alheamento a correntes ou modismos, possibilitou uma poesia que prima pela concisão, pela economia de recursos e densidade. Tornou-se lugar comum falar da poesia que busca o silêncio. Para alguns, isso significa não ter nada a dizer ou produzir fiapos sem sintaxe. Para outros, com Orides, significa deter-se no que é essencial. É uma poesia descarnada, sem enfeites, de uma dureza óssea e de cunho filosófico. Difere muito da poesia minimalista, coloquial e de descrição de paisagens miniaturizadas. Penso na poesia do mineiro Ronald Polito, autor de Intervalos, com uma das poucas que têm afinidade coma obra de Orides Fontela. Como leitor, costumava ler versos como quem lesse um koan. Para minha surpresa, não havia nenhuma suavidade na leitura feita pela própria Orides. Ela lia seus poemas de maneira forte, vigorosa, sincopada. Foi uma experiência reveladora vê-la numa grande cadeira da Livraria Duas Cidades tratando sua poesia com voz incisiva e decidida. Causava um estranhamento saber que aquela energia poética vinha de uma mulher tão frágil e com a saúde debilitada. 

Penso que ela gostaria de ser lembrada por sua produção poética. Numa entrevista, disse que "o maior bem possível é a poesia".  Seu fim em um hospital público foi o desenlace de um drama sempre anunciado. Não difere muito do fim de uma poeta como Marina Tsvetaeiva que foi jogada numa vala comum, depois de se suicidar, na Sibéria para onde fora deportada. Como quase todo poeta, Fontela não tinha o menor senso para a vida prática. Nunca conseguiu se desvencilhar dos traumas familiares e das armadilhas que a vida foi lhe reservando. Aos 58 anos, parecia ter vinte anos mais. O sofrimento acabou. Está calada sua voz áspera. O melhor e o mais precioso bem que ela nos legou é sua poesia.
Donizete Galvão é autor de Do silêncio da pedra e A carne e o tempo.

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