segunda-feira, 1 de agosto de 2022

SONETOS DO TÉDIO E DO HORROR NA PANDEMIA

AGONIA, óleo sobre tela do expressionista alemão Egon Schiele

Poesia, sempre, ainda mais em se tratando de exercício para distração, em tempos de sobressaltos e amargores pandêmicos. Vai abaixo, na forma de soneto clássico esta mensagem, dedicada a amigas e amigos integrantes dessa plataforma comunicativa, que agem sobranceira e decididamente contra esta maldita pandemia do coronavírus e em defesa da democracia. Haja poesia com rastros de epigrama!
Todavia, não é somente esta voz poética que se impõe, ante o cenário de horrores que se instalou no planeta, atingindo em escala de tragédia praticamente todos os continentes. E é por isso que esta postagem se assenta sobre a caudal de sonetos que se seguiu ao advindo da imaginação e do estro do poeta Ruy Espinheira Filho, autor de vasta obra literária que o consagra. Abaixo vão sonetos de outros vates que lastreiam a criatividade desse grande lírico.


SONETO DO TÉDIO NA PANDEMIA

Florisvaldo Mattos

Acordei sem saber o que faria.
Silentes dedos nem mesmo se movem.
Existe ainda quem antes me ouvia?
Nem mesmo pássaros agora me ouvem.
Da esquina de ontem, hoje fogo-morto,
Os lentos passos de quem se perdia
Sobre o asfalto ossudo da pandemia,
Miro o cenário que me deixa absorto.
Lá no balcão o copo de cerveja
Roga que, se me for, jamais o esqueça.
Guardo em mim o clamor, porém não ligo.
Vou para casa ler meu Baudelaire,
Sujeito a ouvir, de súbito inimigo,
Que poesia “não é pra bode ler”. (*)

(FM, SSA/BA, 25/07/2022)

(*) Paráfrase de verso epigramático atribuído, pelo estilo mordaz, a membro da boemia carioca dos idos de 1890 e 1900, mas também, objetivamente, ao romântico Fagundes Varela, por Alberto Faria (1869-1925), em conferência na Academia Brasileira de Letras, em 1925, como resposta a alguém que lhe pedira emprestado As Flores do Mal, de Charles Baudelaire (1821-1867). Link abaixo.




SONETOS


RUY ESPINHEIRA FILHO

SONETO DE UM TRISTE PAÍS

(BRASIL, ABRIL DE 2020)

                

“... apagada e vil tristeza.”

Camões, Os lusíadas, X, 145.

                                  

As mais belas canções, eis que as cantamos

em tempos de esperanças e alegrias,

eras de generosas fantasias...

E agora apenas nos envergonhamos

de um país que tão alto já sonhamos

e que hoje é como um poço de agonias,

transbordando dejetos de idiotias,

em que nós mesmos – nós! – o transformamos.

Porque foi nosso voto demenciado

que a essa escória entregou todo o poder

de onde nos chega o horror em vendavais.

Ah, voltemos ao sonho abandonado,

para que não venhamos a viver

noutras trevas como estas – nunca mais!


              MELANCOLIA, pintura do norueguês expressionista Edvard Munch

1


ROBERVAL PEREYR


SONETO – APÓS LER “SONETO DE UM TRISTE PAÍS"

BRASIL, ABRIL DE 2020)” DE RUY ESPINHERA FILHO



É isso mesmo, Ruy, eis que o Brasil


já se transforma em trevas e agonias

tornando imensa a dor de cada dia

e mentiroso todo o mês de abril.

 

Como então entoar belas canções

diante do pavor e da vergonha

que tragam a limpidez das emoções

daquele que, travado, já não sonha,

mas, antes, sente náusea, e assim despreza

o monstro que transforma luz em treva

e nubla o nosso jeito de sonhar?

Mas não importa, Ruy: nossa tristeza

está trazendo à tona outra beleza

em que repúdio é forma de cantar.

Feira de Santana, 26 de abril de 2020.

                           2

LOURIVAL PILIGRA

SONETO DA ESPERANÇA NO FUTURO

(ESCRITO A PARTIR DE UM POEMA DE RUY ESPINHEIRA FILHO)


"Noutras trevas como estas - nunca mais!"
É o que canta o poeta entristecido
Vendo a pátria morrendo em tristes ais
Sobre o solo sem vida e ressequido!
Nós só vemos "o horror em vendavais"
No desgoverno atroz de um pervertido
Que gargalha da morte e seus sinais
Como um sádico a rir de alguém vencido!

Que o sentido no verso piche o muro
Num convite a esquecer, tornar passado,
Esse momento trágico e obscuro
(De quem vivo se sente sepultado)
Para que nós possamos, no futuro,
Retomar nosso "sonho abandonado".
 


Itabuna, abril de 2020. 

      ANTROPOFAGIA (1928), pintura da modernista Tarsila do Amaral

3

FLORISVALDO MATTOS

SONETO DE UM AMARGO PAÍS

Andam monstros sombrios pela estrada

            E pela estrada, entre estes monstros, ando!

                                   (Augusto dos Anjos)

Florisvaldo Mattos

Nunca soube, Brasil, que tu morrias.

Saltei montanhas, rios, selvas, tudo.

Corri cidades, anos até de estudo,

Sem que manchassem minhas alegrias.


Já ali, onde eu corria em disparada

De fauno, a celebrar epifanias,

Poeta enxerga “um poço de agonias”,

“Transbordando dejetos” de manada.

Alude a treva e “horror em vendavais”,

Em que nos mergulhou demente voto.

Como de sonhos sempre foi devoto,

Alça a voz agra de Poe: “Nunca mais!”.


Para um povo já morto, não há lei;

Árdua verdade que de muito sei!

(Salvador/BA, manhã de 06/05/2020)



SONETO DO PAÍS PERDIDO

                        Fulguras, ó Brasil, florão da América,

                        Iluminado ao sol do Novo Mundo!

                       Osório Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva,

                        Hino Nacional Brasileiro.

 Ruy Espinheira Filho

 

Luares pungentes. Nas suaves manhãs,

canários, sabiás, arribaçãs.

Nada mais vasto e belo não havia,

eu pensava – e eis que a vida me sorria

como a menina que na tarde ia

e em mim inventava um canto de alegria.

E eu ali, ainda longe dos afãs

da luta bruta pelas coisas vãs.

E eis que aquele país de antigamente,

que prometia ser eternamente

só de grandezas sob um céu de anil,

hoje é a tristeza que me faz doente,

na noite amarga deste tempo vil

morrendo de saudades do Brasil.

                       Bahia, Brasil, maio de 2021.

(Sob a pandemia, mas, sobretudo, os hediondos temporais que rolam sobre nós vindos do Planalto Central...)

Morte de Dido, pintura de Heinrich Friedrich Fuger. Hermitage, São Peterburgo




 

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