domingo, 10 de julho de 2022

A ARTE DE CÉZANNE NA POESIA DE RILKE

 

Paul Cézanne (1839-1906), Mont Sainte-Victoire, 1897


VIVA PAUL CÉZANNE!


Compartilho esta postagem do crítico e ensaísta Valdomiro Santana, como disse antes, em comentário, pela qualidade do texto e de informação cultural que contém sobre o poeta Rainer Maria Rilke e a pintura de Paul Cézanne (1839-1906), consagrado como o pai da arte moderna, desde o dia em que proclamou para todo o Ocidente que todos "nós somos um caos irisado". Dou-lhe meus parabéns por mais esse tipo de raridade entre as postagens cotidianas do Facebook. Segue abaixo. (Florisvaldo Mattos)

O IMPACTO PROFUNDO DA
PINTURA DE CÉZANNE EM RILKE

Valdomiro Santana

Cézanne é o pai da pintura moderna e Rilke, um dos maiores poetas do século XX. Pois bem. O objeto desta postagem é uma das dezenove cartas, a de 22 de outubro de 1907, que Rilke escreveu em Paris para Clara Westhorff, sua mulher, que era escultora, na Alemanha. Elas compõem um dos mais belos livros que já li, “Cartas sobre Cézanne” (Tradução, prefácio e notas de Andrea Pagni. Buenos Aires: Editorial y Libreria Goncourt, 1978, 68 p. Edição brasileira esgotada: 7 Letras, 1996; 5ª reimpressão, 2006).
Em outubro de 1907, um ano após a morte de Cézanne, realizou-se uma grande exposição retrospectiva de sua obra — 56 quadros — no Salão de Outono do Grand Palais, em Paris. Rilke foi vê-la várias vezes até o encerramento. O quadro que o impressionou profundamente é “Madame Cézanne numa poltrona vermelha” (1877, óleo sobre tela, 73 x 56 cm, Museum of Fine Arts, Boston, EUA). Contemplou-o com “uma atenção inabalável”, embora lhe fosse “muito difícil reproduzir em memória”. Entretanto, por causa de seu “grande complexo de cores”, diz: “[...] eu o gravei em mim, cifra por cifra. No meu sentimento, a consciência de que ele existe alcançou uma elevação que sinto mesmo durante o sono; meu sangue o inscreve em mim”.
Eis como Rilke viu o quadro: “Diante de uma parede verde-terra, na qual um anel azul-cobalto (uma cruz com o centro vazio) repete-se raramente há uma poltrona vermelha, baixa e toda estofada; o encosto redondo protuberante se curva, tombando para a frente até os braços (que são fechados como o pedaço da manga do casaco de um aleijado). O da esquerda e a borla do qual pende, saturada de cinábrio, não têm atrás a parede, mas uma larga mancha azul-esverdeada contra a qual se chocam ruidosamente. Nessa poltrona vermelha, que é ela mesma uma personalidade, está sentada uma mulher, as mãos no colo, e seu vestido, com listras verticais, é muito levemente indicado por pequenos toques esparsos de verde amarelado e amarelo esverdeado, até a borda da jaqueta cinza-azul, fechada na frente por um laço de seda que brinca com reflexos verdes. Na clareza do rosto, a proximidade de todas essas cores é aproveitada por uma modulação simples. [...] É como se cada ponto do quadro soubesse de todos os outros. [...] dizem que é uma poltrona vermelha (e é a primeira e única de toda a pintura): mas só o é porque consumou em si uma experimentada soma de cores que a reforça e reafirma no vermelho. Para chegar ao máximo de sua expressão, ela está pintada com todo vigor em torno do retrato suave [...] e, contudo, a cor não tem nenhuma preponderância sobre o objeto. [...] cada pincelada desempenha seu papel na manutenção do equilíbrio compositivo e em sua produção; é assim, finalmente, que o quadro como um todo preserva a realidade em equilíbrio. [...] Tudo transformou-se em um acordo estabelecido entre as próprias cores: uma cor, em presença da outra, se afirma ou se concentra. [...] Neste ir e vir de mútuas e múltiplas influências, o interior do quadro vibra, eleva-se e volta a si mesmo, sem que nenhuma de suas partes fique parada”.

Um tecido singularmente rico de descrição, análise, interpretação e reflexão é o que se percebe nessa e nas outras cartas de Rilke sobre Cézanne. Daí, o brilho fragmentado das imagens pictóricas, o prolongamento de todo o impacto da fascinação de cada instante em que as contemplou. Aprendeu a ver a superfície e o interior das coisas ao acompanhar o trabalho de Rodin, de quem foi secretário, que muito influenciou a concepção artesanal e estrutural de seu fazer poético. Aprofundou essa aprendizagem com a pintura de Cézanne, experiência que, sem a presença do mestre de Aix-en-Provence, só pôde vivenciar diante dos quadros. A metamorfose do processo artístico de Rilke ocorreu tanto com a criação do que chamou de “poemas-coisa” (“Dinggedichte”), nas duas séries de “Novos poemas” (1907-8), quanto no lirismo reflexivo (“Gedankenlyrik”) de seus livros mais importantes, “Elegias de Duíno” e “Sonetos a Orfeu”, publicados em 1923. Abaixo, reprodução de uma foto de Rilke em 1906 e de “Madame Cézanne numa poltrona vermelha”.

Rainer-Maria Rilke (1871-1926) e pintura de Paul Cézanne



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