quinta-feira, 17 de março de 2022

MINOTAURO: SIMBOLO DE SOLIDÃO E ABANDONO

Pablo Picasso (1881-1973): Dora e o Minotauro



VIAGEM POR ÍNTIMOS LABIRINTOS
 

Florisvaldo Mattos

 Ante esses atualíssimos versos de Antônio Brasileiro, na forma de quase um haicai modernista, aduzi um comentário, no qual disse que em todas as guerras estão presentes minotauros, de um lado e outro do conflito, conferindo ressonância ao que a tradição lendária da mitologia grega consagrou, expondo o Minotauro, cujo nome em grego é Astérion, em narrativas como voraz fera canibal. Mas, no íntimo, não sigo esse rastro antropofágico. 
Prefiro o luminoso pensamento do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), em um belo conto intitulado "La casa de Astérion", no qual inverte totalmente as versões lendárias do ser humano com cabeça de touro, que devorava, de ano em ano, de três em três, ou de nove em nove anos (variam), sete rapazes e sete donzelas, como forma de cobrança do rei Minos, de Creta, a Atenas, como ônus pelo surgimento do monstro. 
Resumo a lenda macabra, só para recordar escritos. Diz a lenda mais divulgada que Astérion era filho de Parsífae, mulher de Minos, e de um touro, que o deus Posídon enviou ao rei, como prêmio. Envergonhado e aterrorizado com o procedimento da mulher e o nascimento do monstro, Minos ordenou ao artista ateniense Dédalo que construísse um imenso palácio (o famoso Labirinto), composto de um emaranhado de salas e corredores, de que ninguém conseguisse sair, a não ser o próprio construtor, e nele encarcerou Astérion, como prova de sua revolta, e exemplo de monstro antropofágico. (Daí nasceu a fantástica história infanto-juvenil intitulada "Teseu, herói do Labirinto", cuja leitura marcou a adolescência de muitos). 
Pois bem, não é esta a história que o belo conto de Borges, em narrativa confessional que próprio sofrido personagem reabilita. Pelo contrário, Astérion não é um devorador de seres humanos, mas um patente símbolo de solidão e abandono, que aquele ser monstruoso passou a representar desde tenra idade. Lá, dentro do Labirinto, seus urros e tropéis externavam somente dor e infelicidade, desde os anos de criança, seguindo-o por toda a vida. Portanto, confesso que muito mais me agradou essa versão trágica imaginada pelo imenso talento narrativo do célebre argentino, e ontem mesmo dei ponto final a um soneto, construído em modelo inglês, que comprova esta minha preferência, de ver no famoso Minotauro mais um símbolo de solidão, abandono e infelicidade, que de monstro. 
Por coincidência, me aparecem hoje esse agudo poema de Antônio Brasileiro, o que me levou a, mais uma vez afoitamente, postar este inédito soneto, e agora como justificativa do lastro ético e humanista em que se sustenta, faço acompanhá-lo do conto e de um soneto de Borges, aqui ambos em tradução para o português. Seguem abaixo os dois exemplos, um audacioso, o outro, uma singular criação ficcional e o soneto de Borges traduzido. 
Muito obrigado, poeta Brasileiro, por este meu surto imaginativo. 

NA CASA DE ASTÉRION 

        Sobre los siglos y las vanas millas
        ésta da horror a nuestras pesadillas.

                        (Jorge Luis Borges, El Minotauro, soneto)


Tecer no azul do céu a cor da morte 
Ou no verde do mar, na branca espuma, 
E até não perceber quando se arruma 
A casa onde a brisa, última consorte, 
Descerra a porta para o Minotauro. 
Apenas ouço-lhe o ruidoso trote, 
Com o trágico de Borges holofote, 
Igual à solidão em que me instauro. 
Ele vem devagar, de agudo chifre, 
Na tarde melancólica, de sombra 
Vasta, que me rodeia e que me assombra, 
Passo a passo, a exigir que me decifre. 

    Não sou Teseu, dispenso-me do luto. 
    Vence-me a dor dos urros que ainda escuto. 


 (Florisvaldo Mattos. Salvador, manhã de 05/03/2022, inédito) 

                                        
                                EL MINOTAURO

                                                Jorge Luis Borges
Encorvados los hombros, abrumado
por su testa de toro, el vacilante
Minotauro se arrastra por su errante
laberinto. La espada lo ha alcanzado
 
y lo alcanza otra vez, Quien le dio muerte
no se atreve a mirar al que fue toro
y hombre mortal, en un ayer sonoro
de hexámetros y escudos y del fuerte
 
batallar de los héroes. Ilusoria
fue tu aventura, trágico Teseo;
de la bifronte sombra la memoria
no ha borrado las aguas el Leteo.

    Sobre los siglos y las vanas millas
    ésta da horror a nuestras pesadillas.

O MINOTAURO

                           JLB

Curvados ombros sobrecarregado
por sua fronte de touro, o oscilante
Minotauro rasteia por vagante
labirinto. A espada o tem subjugado

e o envolve outra vez, Quem lhe deu morte
não se atreve a fitar a quem foi touro
 e homem morredouro, num dantes de ouro
 de hexâmetros e escudos e do forte

 batalhar dos audazes. Ilusória,
 trágico Teseu, foi tua ventura;
do bifacetado vulto a memória
d’ água do Lete límpida perdura

Em séculos e vãos deslocamentos
do nosso horror  ampliam-se os tormentos


Tradução: Heloísa Prazeres e Celina Scheinowitz

Minotauro, em gravura de arte grega


JORGE LUIS BORGES

LABIRINTO 
(Tradução de Augusto de Campos)

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera. 

LABERINTO

No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.

BORGES, Jorge Luis. "Laberinto" / "Labirinto". In: CAMPOS, Augusto de. Quase Borges. 20 transpoemas e uma entrevista (organização e tradução). São Paulo: Terracota, 2013.


A CASA DE ASTÉRION 

Jorge Luis Borges 

                            E a rainha deu à luz um filho 
                            Que se chamou Astérion. 
                                                APOLODORO: Biblioteca, III, I 

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei a seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas, dia e noite, aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito existe uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra história ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, num entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fiz isso pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já havia se posto o sol, mas o desvalido choro de uma criança e as toscas preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns trepavam no estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira. 

O Fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escritura. As maçantes e triviais minúcias não têm espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais reti a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos. 

Claro que não me faltam distrações. Igual ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até rolar ao chão, nauseado. Escondo-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e finjo que me procuram. Existem terraços de onde me deixo cair até me ensanguentar. A qualquer hora posso fingir que estou adormecido, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes durmo realmente, às vezes está mudada a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que vem visitar-me e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências digo-lhe: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o canalete ou Agora verás uma cisterna que se encheu de areia ou Já verás como o porão se bifurca. Às vezes me confundo e rimo-nos agradavelmente os dois. 

Não só tenho imaginado esses jogos; também tenho meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são quatorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, por força de esgotar pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas, há duas coisas no mundo que parecem existir uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me recordo. 

A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos e sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que algum dia chegaria o meu redentor. Desde então não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e no fim se levantará sobre o pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Tomara que me leve a um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu? 

    O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não havia nenhum vestígio de sangue. 

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu –. O minotauro mal se defendeu. 

A Marta Mosquera Eastman 

*O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Astérion, esse adjetivo numeral vale por infinitos. (N. do A.) 

(Tradução de Marcelo Bueno de Paula)

Pablo Picasso, Minotauro Moribundo, 09.05.1936. 




Jorge Luis Borges
(1899–1986)


La casa de Asterión
(El Aleph (1949)

      Y la reina dio a luz un hijo que se llamó Asterión.
                  Apolodoro: Bibliotecaiii, I.



         Sé que me acusan de soberbia, y tal vez de misantropía, y tal vez de locura. Tales acusaciones (que yo castigaré a su debido tiempo) son irrisorias. Es verdad que no salgo de mi casa, pero también es verdad que sus puertas (cuyo número es infinito)[1] están abiertas día y noche a los hombres y también a los animales. Que entre el que quiera. No hallará pompas mujeriles aqui ni el bizarro aparato de los palacios pero si la quietud y la soledad. Asimismo hallará una casa como no hay otra en la faz de la tierra. (Mienten los que declaran que en egipto hay una parecida). Hasta mis detractores admiten que no hay un solo mueble en la casa. Otra especie ridicula es que yo, Asterión, soy un prisionero. ¿Repetiré que no hay una puerta cerrada, anadiré que no hay una cerradura? Por lo demás, algún atardecer he pisado la calle; si antes de la noche volví, lo hice por el temor que me infundieron las caras de la plebe, caras descoloridas y aplanadas, como la mano abierta. Ya se había puesto el sol, pero el desvalido llanto de un niño y las toscas plegarias de la grey dijeron que me habían reconocido. La gente oraba, huía, se posternaba; unos se encaramaban al estilóbato del templo de las Hachas, otros juntaban piedras. Alguno, creo, se ocultó en el mar. no en vano fue una reina mi madre; no puedo confundirme con el vulgo, aunque mi modestia lo quiera.
          El hecho es que soy único. No me interesa lo que un hombre pueda trasmitir a otros hombres; como el filósofo, pienso que nada es comunicable por el arte de la escritura. Las enojosas y triviales minucias no tienen cabida en mi espiritu, que está capacitado para lo grande; jamás he retenido la diferencia entre una letra y otra. Cierta impaciencia generosa no ha consentido que yo aprendiera a leer. A veces lo deploro, porque las noches y los días son largos.
Claro que no me faltan distracciones. Semejante al carnero que va a embestir, corro por las galerías de piedra hasta rodar al suelo, mareado. Me agazapo a la sombra de un aljibe o a la vuelta de un corredor y juego a que me buscan. Hay azoteas desde las que me dejo caer, hasta ensangrentarme. A cualquier hora puedo jugar a estar dormido, con los ojos cerrados y la respiración poderosa. (A veces me duremo realmente, a veces ha cambiado el color del día cuando he abierto los ojos). Pero de tantos juegos el que prefiero es el de otro Asterión. Finjo que viene a visitarme y que yo le muestro la casa. Con grandes reverencias le digo: Ahora volvemos a la encrucijada anterior o Ahora desembocaremos en otro patio o bien decía yo que te gustaría la canalta o Ahora verás una cisterna que se llenó de arena o Ya verás como el sótano se bifurca. A veces me equivoco y nos reimos buenamente los dos.
          No sólo he imaginado esos juegos; también he meditado sobre la casa. todas las partes de la casa están muchas veces, cualquier lugar es otro lugar. No hay un aljibe, un patio, un abrevadero, un pesebre; son catorce [son infinitos] los pesebres, abrevaderos, patios, aljibes. La casa es del tamaño del mundo; mejor dicho, es el mundo. Sin embargo, a fuerza de fatigar patios con un aljibe y polvorientas galerías de piedra gris he alcanzado la calle y he visto el templo de las Hachas y el mar. Eso no lo entendí hasta que una visión de la noche me reveló que también son catorce [son infinitos] los mares y los templos. Todo está muchas veces, catorce veces, pero dos cosas hay en el mundo que parecen estar una sola vez: arriba, el intrincado sol; abajo, asterión. quizá yo he creado las estrellas y el sol la enorme casa, pero ya no me acuerdo.
          Cada nueve años entran en la casa nueve hombres para que yo los libere de todo mal. Oigo sus pasos o su voz en el fondo de las galerías de piedra y corro alegremente a buscarlos. La cremonia dura pocos minutos. uno tras otro caen sin que yo me ensangrinte las manos. Donde cayeron, quedan, y los cadaveres ayudan a distinguir una galería de las otras. Ignoro quiénes son, pero sé que uno de ellos profetizó, en la hora de su muerte, que alguna vez llgaría mi redentor. desde entonces no me duele la soledad, porque sé que vive mi redentor y al fin se levantará sobre el polvo. Si mo oído alcanza todos los rumores del mundo, yo percibiría sus pasos. Ojalá me lleve a un lugar con menos galerías y menos puertas. ¿Como será mi redentor?, me pregunto. ¿Será un toro o un hombre? ¿Será tal vez un toro con cara de hombre? ¿O será como yo?

          El sol de la mañana reverberó en la espada de bronce. Ya no quedaba ni un vestigio de sangre.
          —¿Lo creerás, Ariadna? —dijo Teseo—. El minotauro apenas se defendió.


A Marta Mosquera Eastman


[1] El original dice catorce, pero sobran motivos para creer inferir que, en boca de asterión, el número catorce vale por infinitos.

 

 

Teseu, o Minotauro e o Labirinto construído por Dédalo. Catedral de Chartres

 

La casa de Asterión de Borges


Por Margarita Carrera

Publicado el 24 de marzo de 2016 a las 0:03h

 

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“Encorvados los hombres, abrumado/ Por su testa de toro, el vacilante/Minotauro se arrastra por su errante/Laberinto. La espada lo ha alcanzado/y lo alcanza otra vez. Quien le dio muerte/no se atreve a mirar al que fue toro/y hombre mortal, en un ayer sonoro…” 

                                                                                                                El Minotauro. J. L. Borges


Para entender el cuento La casa de Asterión, de Jorge Luis Borges, se ha de recordar la leyenda del Minotauro. Minos, rey legendario de Creta, mandó a construir el Laberinto con el fin de ocultar al Minotauro, monstruo con cuerpo de hombre y cabeza de toro, hijo de su esposa Pasífae y de un toro enviado por Poseidón para su sacrificio, pero que Minos se niega a inmolar. El toro es llamado Toro de Creta y no es sino el mismo Zeus. Ahora bien, como Androgeo, hijo de Minos, había sido asesinado por los atenienses, como expiación por esa muerte, estos debían enviar al Laberinto, cada nueve años, siete jóvenes varones y siete doncellas, como alimento del monstruo. Estos sacrificios se continúan hasta que Teseo, héroe del Ática, ayudado por Ariadna, hija de Minos, logra descender al Laberinto y dar muerte al Minotauro.

La casa de Asterión es un brevísimo cuento cuyo personaje principal, llamado Asterión, habla melancólicamente en primera persona. Y es a través de sus palabras que descubrimos, poco a poco, cómo se va identificando con el Minotauro. Así, al describirnos su casa, notamos que se refiere al Laberinto. Afirma que no hay otra igual en la faz de la tierra y que no tiene puertas, de modo que cualquiera puede entrar y salir de ella a su antojo. Es a mitad del relato que nos damos cuenta de que no es un hombre normal quien hace de narrador, porque, cuando en un atardecer sale a la calle, ha de retornar pronto a su casa. La plebe se ha aterrorizado al verlo y el mismo Asterión nos confiesa su temor a causa de que dicha plebe era diferente a él, pues presentaba “caras descoloridas y aplanadas, como la mano abierta”.

Borges, al retomar el mito del Minotauro, expone cómo el Laberinto, en donde éste habita, podría identificarse con el infinito. Si Asterión es el Minotauro, la casa que habita viene siendo el Laberinto que, a su vez, es uno con el infinito o totalidad: “La casa es del tamaño del mundo: mejor dicho, es el mundo”, asegura Asterión. En esta casa inmensa, infinita, lo que se plantea fundamentalmente, según mi punto de vista, es el tema de la soledad. Asterión vive solo, en un total abandono. El hecho de ser único, esto es, diferente, fuera de lo normal, lo conduce a una insoportable soledad. Nadie lo acompaña. El dolor de Asterión, entonces, nos golpea. Su dramática vida solitaria conmueve. Más que un monstruo es una víctima. Un ser olvidado y marginado por un destino inclemente. El cuento culmina con la muerte del Minotauro. Inesperadamente aparecen Teseo y Ariadna. Teseo, asombrado, comunica a Ariadna que el Minotauro no se defendió ante la muerte.

Para mí que Asterión es el mismo Borges, cuya vida se hunde, extremadamente sola, en un Laberinto. La casa de Asterión es desolada, como la que habitó Borges en su niñez. Sin embargo, posee una biblioteca (algo que lamenta no tener Asterión). Una biblioteca que en la mente del niño sería infinita, como infinito, es, también, el Laberinto en donde vive Asterión. Una especie de cárcel olvidada y abandonada, en donde no existe el amor y en donde se percibe la falta de otros niños que hagan compañía, jueguen y diviertan al monstruo, el poeta. Seres que sufren tan infame soledad presienten que su única salvación está en la muerte. No en vano Borges ha escrito en su poema “Mis instrumentos de trabajo son la humillación y la angustia. –Ojalá yo hubiera nacido muerto”.

margaritacarrera1@gmail.com


Teseu e Ariadne, na porta do Labirinto, com o Minotauro, dentro, à espera, silencioso


https://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/15/aih_15_4_069.pdf


          Susan Sontag foi uma alta escritora, ensaísta e crítica de arte


UMA CARTA PARA BORGES
(13 de junho de 1996, Nova York)

Caro Borges,

Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta (Borges, são dez anos!). Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.
(...)
Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência.
(...)
Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma. Em breve, nos dizem, invocaremos em "telas-livro" quaisquer "textos" que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, "interagir". Quando os livros se tornarem "textos" com que "interagiremos" segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Este é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais "democrático". É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade - e do livro.
Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros - da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século XXI, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e nosso herói.

SUSAN SONTAG (EUA, 1933 - 2004)
(Fotografada por Roger Viollet)

Borges se interessou pela literatura brasileira, a parti
r de 1928


AS AFINIDADES ILUSÓRIAS

Mário de Andrade foi pioneiro 

na leitura de Borges no Brasil


ANTÔNIO PAULA GRAÇA
Especial para a Folha


Quando, em 1966, Michel Foucault abriu "As Palavras e as Coisas" com a desconcertante taxinomia chinesa, resgatada pelo humor de Jorge Luis Borges, parece ter iniciado uma vitoriosa campanha de marketing cujo produto era o escritor argentino. No Brasil, pelo menos, foi a partir dos anos 70 que Borges se tornou visível ao grande público e à mídia, embora, àquela altura, já houvesse escrito todos os seus livros mais importantes. Os posteriores volumes de poemas não contribuíram muito para a construção do mito Borges, o cego erudito, irônico, entre livros e, como Bernard Shaw, capaz de transformar em paradoxo o mais ululante lugar-comum. Entretanto, Borges vinha sendo lido e estudado por escritores brasileiros havia bastante tempo. Lembremos os primeiros deles.

Mário de Andrade a todos precedeu e, em 1928!, escreveu tudo o que era possível então. E com um minúsculo índice de erros, entre os abundantes acertos. Cita as duas primeiras coletâneas de poesia de Borges e passa a comentar "Inquisiciones'': "Este é um livro excepcionalmente bonito, duma elegância muito rara de pensamento, verdadeira aristocracia que se educou na sobriedade, na imobilidade da exposição e no raro das ideias. Além disso apresentando uma erudição adequada. Às vezes ri. Muito pouco".

Em não perceber o "basso continuo" do riso ininterrupto por sob a melódica variação erudita, está o principal tropeço do escritor paulista. Emir Monegal, que compilou e apresentou os cinco artigos de Mário de Andrade sobre a literatura argentina moderna, não deixou passar sem penitência o pecado venial. Mário continua: "É verdade que em 'Inquisiciones' ele apresenta menos que pensamentos, resultados de pensamentos, porém suponho uma espécie de dialética hegeliana no jeito dele pensamentear. Um certo ceticismo decadente que talvez lhe venha da cultura, excessiva pra idade tão moça que mostra só 28 anos".

Monegal perdoou-lhe a impropriedade da alusão a Hegel. A dialética de Borges dista alguns séculos e não menos quilômetros do filósofo alemão. Permaneceu fiel aos gregos, morreu rediscutindo e reinventando os enigmas de Zenão. Para ele, tempo e espaço nunca foram evidências, nem mesmo formas puras necessárias ao pensamento, como em Kant. Nesse capítulo, é bom ressaltar, a leitura de filosofia de Borges é curiosa, não original, mas demolidora. Jamais busca conceitos, sistemas, nem mesmo temas filosóficos. De fato, ele seleciona comprovações e refutações para as ideias que defende ou para as questões que trabalha sempre, obsessivamente, como o tempo e o espaço. Seu caráter acusador se volta contra a filosofia amesquinhada das academias. Em Borges, o anacronismo filosófico é sempre uma denúncia.

Também não tem muita legitimidade atribuir ao escritor o ceticismo decadente. Ceticismo, sim. Decadentismo, nunca. O próprio Monegal sublinhou a importância do pensamento por aforismo de Schopenhauer e Nietzsche já no primeiro Borges.

Com certeza, Mário de Andrade não poderia, em 1928, repita-se, ter percebido o caráter afirmativo do niilismo nietzschiano. Atribuindo-o aos constrangimentos da idade (28 anos apenas), Mário parece condescender com o "niilismo decadente" de Borges. Mas é preciso lembrar que ele também não vivera além do jovem poeta argentino mais que seis anos.

Afora esses percalços compreensíveis, os artigos de Mário de Andrade não são apenas precursores. Deixam-nos inquietos com a inteligência e a correção de sua leitura. Sem dúvidas, ele pressentiu o Borges por vir, o ensaísta e contista que iria não apenas adelgaçar as fronteiras entre ficção e ensaio, mas também dinamitar a ideia de sujeito.

Encontrando-o numa praça, uma senhora perguntou-lhe se era Borges. Ele respondeu: "A veces". Quando suas bibliotecas se tornaram cosmogônicas, quando a literatura passou a ser palimpsesto em correção perpétua, quando os textos deixaram de ter autores e mesmo deixaram de ser um texto, o sujeito cognoscente cartesiano, histórico dos marxistas ou ontológico de toda metafísica já perdera vigência. Foi por ter revogado a ideia de sujeito, na ficção e no ensaio, que Borges se viu como mestre dos "maitre-a-penser" franceses.

          No Brasil, J. L. Borges foi também leitura de Manuel Bandeira

Voltemos às primeiras recepções de Borges no Brasil. Outro que leu o jovem poeta argentino foi Manuel Bandeira. Embora não tenha deixado anotações ou comentários, Bandeira com certeza se identificou com sua poesia, pois inseriu-a no fechado círculo de suas afinidades eletivas.
Nos "Poemas Traduzidos" de 1945, entre Goethe, Heine e Rilke, lá estava Jorge Luis Borges. O poema era "Pátio" e fazia parte do primeiro livro de seu autor, "Fervor de Buenos Aires" (1926). Desconheço a edição utilizada por Bandeira, mas na revisão que fez em 1969, Borges deu o título de "Un Patio". Vale a pena usar uma ironia borgiana contra ele: o original não se manteve fiel à tradução. Os dois versos iniciais foram preservados: "Com a tarde/ cansaram-se as duas ou três cores do pátio". Mas a ilusão de permanência já se acaba. Bandeira traduz: "A grande franqueza da lua cheia/ Já não entusiasma o seu habitual firmamento/ Hoje que o céu está frisado,/ Dirá a crendice que morreu um anjinho". A estranheza das imagens e a irascível incompatibilidade entre a lua cheia e o céu habitual, agora enrugado e hostil, devem ter agradado ao poeta. A seguir vem o leve estremecer de um "pathos" preciso e bandeiriano: o anjinho morto, fruto da crendice, continua a existir no poema (leia nesta página).
Mas o trabalho foi em vão. Borges extirpou os quatro versos, cujos vestígios, fiéis ou traidores, sobrevivem apenas na tradução. Bandeira provavelmente gostou de: "O pátio é a janela/ Por onde Deus olha as almas". Borges achou-os excessivos e crédulos. Amputou-os, restando "El patio es el declive/ por el cual se derrama el ciclo en la casa". Afinal, as hipérboles nunca o satisfizeram. Não importam os cortes. Bandeira continuaria a ler no poema o que lhe era caro _um cromo cotidiano, aparentemente mudo, mas cheio de revelações.
Mais tarde, em 1964, o crítico Fausto Cunha, encantado com o escritor, declarou-o, a um só tempo, Deus e labirinto. Foi o suficiente para que Augusto Meyer se lançasse ao espinhoso desafio de investigar a presença de Deus na ficção borgiana. Lê dois contos de ''O Aleph''. Neles descobre um deus semelhante ao de Heráclito, cuja capacidade totalizadora, unindo dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, fartura e fome, se revela também como indiferença olímpica ao destino humano.
A habilidade analítica de Augusto Meyer se exibe quando escreve: "Tudo isto envolve necessariamente, além de uma arte soberana e quase escandalosa no governo da lucidez poética, sempre a cavaleiro da intuição criadora, certa franja de paralogia metafísica, impregnada de humorismo transcendente, aquele capitoso 'humour' borgiano, que vai espicaçando o nosso espanto com o arabesco renovado e aberto de uma fantasia desatada em imprevisto e agilidade". Augusto Meyer, nos anos 60, também não podia suspeitar que outra estrela da filosofia contemporânea, Jean-François Lyotard, iria eleger a paralogia, fundadora da anticrítica de Borges, como o instrumento privilegiado na legitimação do saber pós-moderno.
Em seguida, Meyer comete leve falsificação, quando dissolve a divindade borgiana no execrável recurso Deus ex machina. Vimos que Borges antecipa a dissolução do sujeito, entretanto ele também opõe à completa ausência uma onipresença atordoante do sujeito. Por isso, entende que todos os livros do universo ou não têm nenhum ou apenas um único e eterno autor. Essa é a complexidade de seu pensamento.
O universo de ''Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius'' não é mais do que nosso mundinho de paradoxos e aporias filosóficas. Nesse mundo: "Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incompleto".
Da mesma maneira, o pensamento de Borges se desdobra em auto-refutações e não raras vezes aceita correr o risco de aniquilar-se por uma extensão ad absurdum de suas proposições. Quanto à divindade, podemos supor que, se o deus de Berkeley, é "um ubíquo espectador, cujo fim é dar coerência ao mundo", o seu parece divertir-se em revelar a incoerência que, como parasita, se hospeda em toda certeza.

    J. L. Borges, com sua mulher, Maria Kodama, em visita à UFMG 

Em sua ''História da Literatura Ocidental'' (1959-1966), Otto Maria Carpeaux inaugurou um novo Borges, aquele que "integrou os elementos irracionalistas do criacionismo num sistema filosófico cuja tese principal é o caráter cíclico do Tempo e, portanto, a reversibilidade de todos os acontecimentos. Mas, em vez de um trato de metafísica, escreveu contos filosóficos, as 'ficciones', altamente fantásticas, engenhosamente construídas e baseadas em 'notas eruditas' diabolicamente inventadas, com a ajuda de toda a erudição fabulosa de que Borges dispõe realmente. É uma arte das mais requintadas, algo fria e desumana, sempre fascinante: obra significativa do século 20".
A luxúria dos advérbios parece uma concessão ao espanto diante da grandeza. Mas Carpeaux percebeu que erudição fictícia e verdadeira conviviam no mesmo autor e que aquela mente capaz de tudo embaralhar desfazia para sempre o ninho cálido em que o humanismo subjetivo ia refugiar-se. Por fim, o historiador não resistiu à tentação e desvelou a face satânica do escritor argentino. Pronto, não eram os livros nem as bibliotecas de Borges que criavam falsos cosmos a nos aturdir. Ele mesmo era o diabólico demiurgo a criar e trapacear, afirmando assim o fim último de toda ficção. E o resto é balbúrdia.
Cabe agora perguntar se a paixão brasileira foi correspondida. Ao que parece Borges não se interessou muito por nossa literatura. Minas Gerais e Rio Grande do Sul aparecem em seus contos. Entretanto, quando se dedicou a escolher cem obras para serem vendidas em bancas de jornal, esqueceu Machado de Assis e elegeu ''O Mandarim'', de Eça de Queirós, o que não constitui nenhuma lástima, afinal, nessa biblioteca ''personal'', também não se encontram Shakespeare nem Dante.
Borges julgava tal escolha demasiado óbvia _poderia dizer o mesmo de Machado de Assis. Diga-se, de passagem, que ''O Cânone Ocidental'', de Harold Bloom, não passa de uma versão pretensiosa e mal-humorada dos prólogos que Borges escreveu para sua biblioteca pessoal. Ali, além de clássicos insuspeitos, encontramos o fantasioso H.G. Wells, o aventureiro R.L. Stevenson e escritores de romances policiais, como William Wilkie Collins e G.K. Chesterton _mais uma irônica parábola sobre o gosto literário, mais um lancinante corte no rosto daqueles que concebem literatura como um vetusto museu de obviedades.
Voltemos à possível correspondência amorosa de Borges. Ele escreveu, sim, sobre literatura brasileira. O eleito, entretanto, não foi Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Carlos Drummond. Em seus artigos para a ''Revista Multicolor'', em 30 de dezembro de 1933, ele resenhou o livro ''Nordeste e Outros Poemas do Brasil'', do obscurecido Rui Ribeiro Couto (1898-1963).
Mas Borges, humilde, confessa sua ignorância sobre a literatura latino-americana e especialmente brasileira: "Meu desconhecimento da lírica do Brasil não se envergonha demasiado de ser total". Sua elegância leva-o a justificar-se em seguida: "Não se veja nisso um desdém, veja-se a indolente convicção _talvez equivocada, porém não ilógica_ de que pessoas parecidas comigo ou com os amigos que frequento e providas de uma biblioteca não muito distinta não podem me proporcionar vastos assombros". Talvez por esse motivo ele tenha silenciado sobre Machado de Assis. Não importa o desdém ou a preguiçosa convicção, hoje nos basta ler Borges e dele nos aproximarmos com "prévio fervor e com uma misteriosa lealdade". Era assim que definia um clássico.


Escritor portenho 

Jorge Luis Borges continua 

dando o que falar


Borges babilônico, um dos melhores lançamentos 

sobre o enciclopédico autor argentino e portenho


Por *


Borges, o legendário escritor argentino, talvez o último autor planetário da literatura, teve no segundo semestre do ano que passou uma elegante e fina homenagem organizada por Jorge Schwartz, conhecido professor da língua hispânica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com coordenação editorial de Maria Carolina de Araujo. Trata-se de Borges babilônico, um catatau enciclopédico de 570 páginas – trabalho editado pela Companhia das Letras, que contou com um time verdadeiramente de escol para a confecção de todos os verbetes do inspirado volume.

Na apresentação, Jorge Schwartz  nos chama a atenção para um fato central: “Poderia começar esta breve introdução, fazendo considerações acerca do excesso que significa mais um dicionário sobre Borges; poderia também refletir sobre o papel da biblioteca ou da enciclopédia em sua vida e literatura”. O fato é que esta empreitada brasileira dará muito o que falar.

É mais que sabida a predileção de Borges (um perfeito homem de letras) por algumas de suas obsessões, além das duas já mencionadas acima por Schwartz: o espelho, o labirinto, a rosa, as apropriações indevidas de trechos de textos de outros escritores, o simulacro, a prestidigitação, os animais imaginários ou não, e muitos outros.


Verdadeiramente prolífico e portenho (nasceu em Buenos Aires, a 24 de agosto de 1899, e morreu em Genebra, a 14 de junho de 1986), sua vida sinaliza um amor perfeito ao trabalho com a literatura, seja escrevendo seus livros de prosa e poesia, seja em seus ensaios, em suas traduções e coescrituras (a de Adolfo Bioy Casares é a mais profícua).

Pois bem, tenho uma pequena história para contar sobre Borges: ocorreu na última vez em que ele esteve no Brasil, em São Paulo, para uma estadia de apenas dois dias. Ele chegou a 7 de dezembro de 1984. Já naquela época éramos “fissurados” (do curso de Letras da USP, pelo menos) pela sua obra e quase chegávamos à veneração.  Assim, por volta de 22h40, o grande homem chegou a Congonhas. De cadeira de rodas, que era empurrada por Augusto Massi, lá estava ele e sua então secretária, Maria Kodama.

A primeira impressão que tive de Borges não foi lá essas coisas. Mesmo sentado, ele não tinha controle nenhum sobre seu maxilar, o que o deixava de boca aberta, olhando de um lado para o outro por olhos que já não viam mais nada, pois ele estava cego há vários anos. Lembro ainda que, como a visita era patrocinada pela Folha de S. Paulo, Borges teve enorme dificuldade para entrar no veículo que o levaria ao hotel. O que nos trouxe certa indignação, pois o carro mandado pelo jornal poderia ser um pouco mais alto.

Assistimos às duas conferências que ele deu em São Paulo: uma na Folha e a segunda, no Masp. A do jornal revelou que Borges era muito mais famoso no Brasil do que o periódico tinha noção, uma vez que um palco teve que ser montado no galpão do diário, pois havia uma tremenda multidão para vê-lo.

No Masp, lotado tanto quanto na Folha, o portenho teve maior conforto e sua fala foi traduzida pelo mesmo Jorge Schwartz, que tanto fez por Borges até aqui e lá o portenho mostrou maior loquacidade.

E finalmente o vi no mesmo aeroporto de Congonhas, quando ele se foi. Notei uma imensa diferença entre sua chegada e sua despedida. Eu o vi atravessando todo o saguão do aeroporto andando, com Maria Kodama ao lado.  Numa das entrevistas que Borges deu na ocasião, ele disse que se sentia muitíssimo bem ao estar com pessoas jovens, pois de certa forma as vampirizava. Poderia dizer que ele deve ter tido uma estadia feliz nesse quesito, pois os públicos que o ouviram consistiam de grande número de jovens.

Tornando ao Borges babilônico, a empreitada de Jorge Schwartz e Maria Carolina de Araujo e os 60 colaboradores (entre eles Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia) nada deixa a desejar: lá estão, entre os mais de mil verbetes, vários deles dedicados à literatura argentina, como Martin Fierro ou Leopoldo Lugones. Lá estão as 1001 noites e Xerazade e Harum al-Rashid, os espelhos, os seres imaginário. Ou seja, todo o material, usurpado ou não, que lhe deu histórias as mais diversas e eloquentes (penso no Pierre Menard).

De toda forma, me incomodou um pouco – ou pode ser que me engano – pois li o livro da forma borgeana adequada, ou seja, fazendo uma leitura inicial a voo de pássaro, como se diz, e depois sequencialmente. Julgo que falta no belo livro um verbete sobre Paracelso (afinal, ele escreveu um dos mais belos contos de sua vida, A rosa de Paracelso, e outro sobre Os tigres azuis, publicados originalmente  em A memória de Shakespeare (devo essa informação a Jurandir Renovato, com quem trabalho lá se vão 27 anos). O primeiro mencionado, sobre Paracelso, eu o traduzi em um momento de diletantismo, mas ambos os contos, se não me falha a memória, compõem também um outro volume, com trabalhos dele para a coleção La biblioteca de Babel, da editora espanhola Siruela, primeiramente publicada em italiano.

Senti certa falta também de algum verbete sobre o budismo ou Sidarta Gautama (em O livro dos seres imaginários, Buda se encontra numa praia com um desses seres, Kapila) e, ainda, Buda, escrito a quatro mãos com Alícia Jurado. É intrigante, pois há inúmeros verbetes sobre o judaísmo e o rabinato, além de longas observações sobre os muçulmanos, além do fato de contemplar o confucionismo e o taoísmo, entre suas referências prediletas.

Acho falta ainda de um verbete sobre os “prólogos”, tão caros a Borges, a ponto de ele publicar um livro intitulado Prólogos, com um prólogo dos prólogos.

Em suma, Borges babilônico é quase tão bom de ler quanto a própria obra de Borges, o que nem de longe é pouco. Um volume com a magnitude do atual, só merece aplausos. E por fim, deixo aqui o dado de uma das centenas de entrevistas de Borges: o repórter lhe pergunta sobre suas aulas de literatura na Universidade de Buenos Aires: o sr. reprovou algum aluno seu? Ao que Borges lhe responde mais ou menos o seguinte: “Não reprovei nenhum, mesmo porque a literatura só pode aprovar”.


*Francisco Costa é jornalista e professor de Língua Portuguesa da USP. Redação publicada em Jornal da USP, em 11.10.2018.


Borges, o Sábio Cego na Biblioteca

 

A Dimensão Filosófica de Jorge Luis Borges

 

Carlos Cardoso Aveline

Em outubro de 1977 eu morava na Argentina. Um jornalista peruano que visitava Buenos Aires conseguiu, graças à minha ajuda indireta, uma entrevista com o escritor Jorge Luis Borges. A amiga que obteve a conversa privada insistiu em convidar-me: eu deveria ir junto.

 “Será um prazer”, respondi.

 Entardecia quando nós três chamamos ao porteiro eletrônico, no pequeno prédio da rua Maipu, no centro da cidade. Ao atender, a governanta disse:

 “O senhor saiu, mas mandou dizer que não tarda. Vocês podem voltar dentro de 15 minutos?” A espera não durou muito. Dez minutos mais tarde um Galaxie estacionou junto à calçada oposta, e o motorista ajudou o escritor de 78 anos, cego e trôpego, enquanto ele começava a atravessar a rua movimentada e em obras. O trânsito parou, reverentemente. Borges era um símbolo nacional, um sábio, quase um santo. Todos queriam escutá-lo, e nas ruas não havia quem não o reconhecesse. Embora as suas opiniões políticas paradoxais desagradassem a muitos, ele brilhava como um raio de sol em meio à noite negra da ditadura militar e da violência autoritária. 

 O escritor avançou passo a passo e com ajuda de uma bengala, experimentando o terreno incerto sob os pés, enquanto mantinha o olhar sempre fixo no alto. Depois de completar a travessia, parou à frente da sua porta e tirou, trêmulo, uma chave do bolso. Procurou com os dedos o buraco da fechadura, sustentado pelo motorista, e finalmente abriu a porta do edifício.

 Estava ali a personalidade mais polêmica da Argentina. O seu apoio ao general chileno Augusto Pinochet e a sua opinião cética em relação à realização de eleições no seu próprio país mereciam destaque no jornalismo de Buenos Aires, onde tantas coisas não podiam ser ditas. Mas por detrás das aparências, como eu saberia mais tarde, o velho e sábio escritor estava, misteriosamente, emitindo sinais que preparavam um renascimento da paz. Trazia à tona energia positiva do inconsciente coletivo, e plantava sementes para uma cultura baseada na ética.

 Através de incontáveis palestras e entrevistas, Borges recriava a sua própria pessoa. Construía-se a si mesmo em público como um grande personagem saído das páginas de algum livro mágico, que fascinava com os seus paradoxos, as suas tiradas de humor e ironia profunda em relação aos diversos aspectos da vida: política, literatura, turfe ou futebol. Na sua atitude, colocava sempre em primeiro lugar o assombro diante da vida e, em distante segundo plano, os fatos, opiniões e circunstâncias que rodeiam cada ser humano.

 

Falava longamente de sua árvore genealógica, da sua sensação de que o tempo é cíclico e a realidade labiríntica. No seu talentoso monólogo, a intervenção deste ou daquele jornalista era frequentemente dispensável, embora na verdade tampouco chegasse a prejudicar. A fala de Borges era entremeada por longos silêncios em que ele fitava o vazio com uma expressão de profundo esforço estampada no rosto, enquanto parecia buscar a melhor palavra ou modo de dizer. Mas era uma fala tão abundante e encantadora que aceitava facilmente as interrupções e até algumas mudanças aparentes de tema. No fundo, porém, Borges estava sempre falando de si mesmo, isto é, do seu mundo, do universo segundo a sua sensibilidade.

 

Durante nossa conversa, chocou-me a inutilidade das palavras. O silêncio parecia mais eloquente. A percepção da minha própria ignorância limitava o diálogo verbal da minha parte. A presença de Borges parecia esmagadora, porque impunha a seus interlocutores uma atenção total e profunda diante de qualquer tema que fosse abordado. Eu estava impressionado pela sensação de que as palavras faziam mais ruído do que comunicavam, e de que Borges dominava a arte de conversar em silêncio.

 “Quais foram as suas primeiras leituras?”

 “Não me lembro de uma época em que não soubesse ler e escrever. Se me dissessem que essas são condições inatas, inerentes ao homem desde o seu nascimento, eu acreditaria, baseado na minha experiência pessoal. Criei-me na biblioteca do meu pai, composta em grande parte por livros ingleses. Li os contos dos irmãos Grimm, li Kipling e mais tarde os contos de Andersen.  Me criei lendo.”

 Borges elogiou o poeta norte-americano Walt Whitman. Disse que George Orwell, autor do romance futurista “1984” (publicado em 1948) e da parábola sobre a revolução russa “A Revolução dos Bichos”, havia sido um tanto pretensioso, e acusou-o de ter pouca imaginação. Para bom entendedor, Borges – um habitante do mundo dos sonhos – criticava Orwell por não ter ido além de denunciar, com realismo e amargura certeira, as ideologias opressoras da primeira metade do século 20.

 Não conhecia Khalil Gibran, e tampouco Krishnamurti, uma influência da minha juventude. Borges lamentou: desde os anos 1950, já não podia ler, devido à gradual cegueira que lhe havia trazido para os olhos as sombras da noite.

 “O homem se vê frequentemente indefeso diante de uma realidade externa que é muito complexa”, disse eu. “Arma, então, esquemas e racionalizações para interpretar essa realidade. A história humana é a história dessas tentativas racionalizantes que tantas vezes fracassam. Você pensa que tais tentativas têm algo de ilusório na sua origem, que sua validade é só parcial?”

 Eu estava querendo fazer aqui uma crítica krishnamurtiana, e zen, das ideologias políticas. Mas a resposta foi curta.

 “Não”, disse Borges. “O que acontece é que essas racionalizações são parte da realidade que elas querem explicar. Nós vivemos dos sonhos dos mortos, dos esquemas dos mortos. O mundo pode parecer um caos, mas nós tratamos de que seja um cosmos, uma ordem.”

 A conversa deveria durar sessenta minutos, mas prolongou-se durante mais de quatro horas. Por coincidência, um compromisso do escritor foi desmarcado e ele convidou-nos a jantar em um restaurante simples, a um quarteirão de distância.

 O seu jantar consistiu de arroz puro com queijo ralado, e uma banana como sobremesa. Foi interrompido várias vezes por pessoas pedindo autógrafos. Escrevia seu nome por extenso, a mão trêmula fazendo uma letra de pessoa semialfabetizada.

 Borges escreveu um livro sobre Buda, em coautoria com Alicia Jurado.[1] Entre seus autores preferidos estava William James, respeitado pelos estudiosos de ocultismo. Pesquisou e escreveu sobre a Cabala. Foi admirador de Emanuel Swedenborg, o grande místico sueco do século XVIII. Um dos seus livros mais interessantes é “História da Eternidade”, em que discute a teoria oriental dos ciclos e a ideia do tempo circular. Numa palestra sobre imortalidade, Borges citou repetidamente Pitágoras, fazendo um elogio da sua doutrina sobre a transmigração da alma (reencarnação), e investigando a sabedoria de Sócrates e Platão.[2] A dimensão transcendente de Borges ficou mais clara nos últimos anos de sua vida.

 “Perguntaram um dia a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia”, contou Borges em uma palestra pública certa vez. “E Bernard Shaw respondeu: ‘Todo livro que valha a pena ser lido foi escrito pelo Espírito’.”[3]

 De fato, Borges percebia o livro como algo quase mágico. Mesmo cego – podia distinguir apenas o vulto de alguém à sua frente – ele seguia comprando livros.

 “Eu tenho esse culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo que talvez pareça patético e não quero que seja patético; quero que seja como uma confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um de vocês, porque todos é uma abstração e cada um é verdadeiro. Eu sigo brincando de não ser cego, sigo comprando livros, sigo enchendo minha casa de livros. Outro  dia deram-me a Enciclopédia de Brockhause. Senti a presença desse livro em casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Aí estavam vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, no entanto, o livro estava ali. Sentia como que uma gravitação amistosa vinda do livro. Penso que o livro é uma das formas de felicidade que temos, os homens.” [4]

 Borges escreveu:

 “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões da sua vista; o telefone é extensão da sua voz; em seguida temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.” [5]

 Polêmicas à parte, quais eram as ideias políticas de Borges? Na entrevista conosco em 1977, ele disse que no fundo se considerava um anarquista. Alguns anos depois, ele afirmou que via o mundo todo como uma comunidade. “O nacionalismo é o maior problema do nosso tempo. Infelizmente para os homens, o planeta foi parcelado em países, cada um provido de lealdades, de memórias queridas, uma mitologia particular, direitos, fronteiras, bandeiras, escudos e mapas. Enquanto durar esse estado arbitrário de coisas, as guerras serão inevitáveis. (…) Na Grécia, onde cada homem se definia por sua cidade – Heráclito de Éfeso, Zenão de Eleia – os estoicos se declaravam cosmopolitas, cidadãos do mundo. Devemos tratar de ser dignos desse antigo propósito.” [6]

E afirmou a outro jornalista, após a derrota na guerra das Malvinas e reforma das forças armadas argentinas:

 “Quero insistir no fato de que sou pacifista. Neste país havia 82 generais, que foram reduzidos a quarenta: agora há, pois, um excesso de quarenta generais. Não há nenhuma razão para que os militares governem um país, é algo tão absurdo quanto que o façam os escritores ou os dentistas.”  [7]

 Sobre a rotina das crenças religiosas e partidos políticos, Borges afirmou:

 “O homem, em geral, é muito acomodado e prefere que outros assumam a responsabilidade por seus atos. Professar uma religião ou afiliar-se a um partido político é um bom pretexto para não pensar”. [8]

 O cineasta Ruy Guerra contou que Borges, já quase com 80 anos, passou certa vez três dias intensos dando palestras, participando de almoços e recebendo homenagens na capital do México. Depois disso tudo, havia apenas um dia livre antes de voltar a Buenos Aires.  Borges pediu a um amigo argentino que morava na capital do México que o levasse às pirâmides aztecas em Yucatán. O amigo explicou ao velho escritor cego que se tratava de uma viagem extremamente cansativa, entre táxis e aviões. Teriam de viajar o dia inteiro, e só poderiam ficar uma hora no local das pirâmides. Mas Borges não mudou de ideia, e foram até Uxmal. Frente à pirâmide azteca do século 10, o escritor sentou-se sobre uma pedra, com o queixo apoiado sobre a velha bengala, os olhos fixos em algum lugar desconhecido. Levantou-se exatamente uma hora mais tarde. Ao final do passeio qualificou a visita à pirâmide como “inesquecível”. [9] Os seus olhos vazios brilhavam, mas ninguém sabe o que ele viu ou percebeu por lá.

 “O que é o tempo?”, perguntou Borges durante uma palestra pública em Buenos Aires. “Não sei se, mesmo depois de 20 ou 30 séculos de meditação, já avançamos muito na questão do tempo. Eu diria que sempre sentimos esta antiga perplexidade, esta que Heráclito sentiu, mortalmente, naquele exemplo a que eu volto sempre: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Porque é que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio? Em primeiro lugar, porque as águas do rio fluem. Em segundo lugar – e isto é algo que nos toca metafisicamente, que nos dá uma espécie de horror sagrado – porque nós mesmos somos também um rio, nós também somos flutuantes. O problema do tempo é este. É o problema da fugacidade: o tempo passa.” [10]

 Pouco depois, nesta palestra, Borges retomou o tema da transmigração ou reencarnação. E acrescentou:

 “Talvez sejamos ao mesmo tempo, como creem os panteístas, todos os minerais, todas as plantas, todos os animais, todos os homens. Mas felizmente não o sabemos. Felizmente acreditamos na existência de indivíduos. Porque senão seríamos esmagados, aniquilados por essa plenitude.”

 Para Borges, o tempo é a imagem móvel da eternidade. “O tempo é sucessivo porque, tendo saído do eterno, quer voltar ao eterno. Quer dizer, a ideia de futuro corresponde ao nosso desejo de voltar ao princípio. Deus criou o mundo. E todo o mundo, todo o universo das criaturas, quer voltar a esse manancial eterno que é intemporal, não anterior nem posterior ao tempo, mas que está fora do tempo.”

 No final da sua vida, de certo modo, Borges tinha a sensação de que o tempo não havia transcorrido. Dois anos antes de morrer, ele, que havia nascido entre os livros, visitou a capital de São Paulo e, entre uma palestra e outra, confessou:

 

“Apesar de ter percorrido o mundo todo, tenho a impressão de nunca haver saído da biblioteca do meu pai.” [11]  A figura de pai, para ele, tinha algo de arquetípico. Seu pai era também seu mestre.

 Uma vez perguntaram-lhe se acreditava em Deus. “Não acredito em Deus, não consigo”, respondeu. “Mas um dia meu pai disse que este universo é tão estranho que pode ser, subitamente, que a Santíssima Trindade exista. Não posso acreditar na pessoa de Deus, mas consigo acreditar em um Deus que está em transformação, como Bernard Shaw disse, um Deus que trabalha através de nós, através das plantas e dos animais.” [12]

 Quando lhe perguntaram se aceitava ser chamado de gênio, defendeu-se:

 “É uma injúria. Eu sou apenas um homem lúcido, que não tem valor e com pouca esperança. Não há muito o que esperar na minha idade. Eu só gostaria de poder ver mais moralidade, mais ética ao meu redor. Em outros planos e esferas, a economia sempre encontrará alguma solução.” [13]


 Jorge Luis Borges, talvez a maior lacuna da cultura argentina hoje


BORGES DIZIA NÃO TEMER A MORTE


“Eu não temo a morte. Ela não me assusta, tampouco me entristece. Quando a tristeza me invade, lembro-me: como posso me entristecer, se a maior de todas as aventuras, a morte, ainda me espera? Se tiver sorte, serei completamente apagado, aniquilado — e isso será o fim de tudo. Mas, se não for assim, se existir outra vida, aceitarei essa nova jornada como aceitei esta. Pior do que esta não será. Quem sabe até seja melhor. Não sabemos nada sobre o além, mas podemos imaginar que a morte, em sua essência, seja a mais grandiosa de todas as aventuras.”
— Jorge Luis Borges


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Algumas Palavras de Borges

 

1. Do Evangelho de um Herege:

 *“Nada se edifica sobre pedra, tudo sobre areia, mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…”

 *“Não odeies teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo.  O teu ódio nunca será melhor que tua paz.”

 [Do volume “Elogio da Sombra e Um Ensaio Autobiográfico”, Ed. Globo, São Paulo, 1993, 122 pp., ver. pp. 59-60, no texto “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”.]

 

2. De um Relato sobre Si Mesmo:

 * “Não mais considero a felicidade inatingível como há muito tempo eu a considerava. Agora sei que ela pode acontecer a qualquer momento, mas que nunca deveria ser buscada. Quanto ao fracasso ou à fama, são muito irrelevantes e nunca me preocupei com eles. O que estou procurando agora é a paz, a alegria de pensar e da amizade, e, embora possa parecer demasiada ambição, uma sensação de amar e de ser amado.”


[“Elogio da Sombra e Um Ensaio Autobiográfico”, obra citada, p. 122.]

 

 NOTAS:

 

[1] “Buda”, Jorge Luis Borges e Alicia Jurado, trad. de Cláudio Fornari, ed. Difel, SP, 1977, 103 pp.

 [2] “Borges, Oral”, Emecé Editores/Editorial Belgrano, Buenos Aires, 1979, 105 pp., pp. 27 a 41.

[3] “Borges, Oral”, Emecé Editores/Editorial Belgrano, Buenos Aires,  1979, 105 pp., ver pp. 17-18.

[4] “Borges, Oral”, obra citada, p. 23.

[5] “Borges, Oral”, obra citada, p. 13.

[6] “Diálogos”, Jorge Luis Borges e Nestor J. Montenegro, Nemont Ediciones, Buenos Aires, 1983, 93 pp., ver pp. 24-25.

[7] Jornal quinzenal “La Gaceta Porteña”, Buenos Aires, Ano 1, número 1,  de  9 março 1984, ver p. 02. Entrevista de Borges com o jornalista Rodolfo Balocco.

[8] “Diálogos”, obra citada, p. 73.

[9] Jornal “O Estado de S. Paulo”, 22 maio 1994, artigo de Ruy Guerra intitulado “O Velho Escritor Cego e a Pirâmide Azteca”.

[10] “Borges, Oral”, obra citada, p. 85. As duas citações seguintes são das pp. 88 e 94-95, respectivamente.

[11] Jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre, edição de 15 de agosto de 1984.

[12] “South”, revista mensal publicada no Reino Unido,  edição de novembro de 1984, pp. 110-111, reportagem do correspondente Edgardo Antoñana, em Buenos Aires. Ver p. 111.

[13] Revista “South”, publicação citada, p. 111.

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 O texto “Borges, o Sábio Cego na Biblioteca” é reproduzido do livro “Conversas na Biblioteca, um diálogo de 25 séculos”, de Carlos Cardoso Aveline, Edifurb, Blumenau, 2007, 170 páginas. O artigo foi publicado em diversos lugares ainda no século 20. Além de fazer parte do livro “Conversas na Biblioteca”, ele foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas à medida que eles foram surgindo, processo que começou em 2007. O texto está disponível em espanhol: Borges, el Sabio Ciego en la Biblioteca.   

 

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Leia mais:

Borges e a Arte de Viver.

 A Rosa de Paracelso (conto de J.L. Borges).

 A Ioga de Cabral e Camões.

 O Hábito, a Intenção e a Vontade.  

 Fortalecendo a Vontade Individual.


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    Jorge Luis Borges segue um ícone da literatura latino-americana
    (Ilustração: imagem do argentino, sem indicação de autor)


Biblioteca como Paradigma do
Paraíso em Jorge Luis Borges

“Sempre achei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”

Oliver Harden

Jorge Luis Borges, uma das figuras mais proeminentes da literatura do século XX, frequentemente explorou a interseção entre o conhecimento, a linguagem e a condição humana em suas obras. Sua afirmação de que o paraíso poderia ser uma biblioteca ressoa profundamente com a sua visão da literatura como um espaço sagrado, um repositório de experiências e verdades universais. Esta reflexão busca analisar o significado dessa concepção borgeana, examinando a biblioteca não apenas como um local físico de armazenamento de livros, mas como uma metáfora rica para o conhecimento, a eternidade e a busca humana pela compreensão.

A Biblioteca como Símbolo de Conhecimento

Em primeiro lugar, a biblioteca representa uma acumulação vasta e infinita de conhecimento. Para Borges, o ato de ler e o acesso à informação são fundamentais para a experiência humana. Em suas obras, como "A Biblioteca de Babel", ele imagina uma biblioteca universal que contém todos os livros possíveis, incluindo aqueles que nunca foram escritos. Essa ideia de uma biblioteca infinita sugere que o conhecimento não é apenas um acúmulo de informações, mas uma busca incessante pela verdade. Assim, o paraíso borgeano, como uma biblioteca, torna-se um espaço onde o conhecimento é não só acessível, mas imutável e eterno.

O Paraíso da Imortalidade Intelectual

Além disso, a biblioteca pode ser vista como um símbolo da imortalidade intelectual. Através das páginas dos livros, as ideias, os pensamentos e as emoções de autores ao longo da história se tornam parte de um legado coletivo. Se o paraíso é um lugar onde a alma encontra seu destino final, a biblioteca, nesse sentido, oferece uma forma de transcendência. Ao ler, o ser humano se conecta com mentes que viveram e morreram, que refletiram sobre a condição humana e que, de certa forma, permanecem vivas através de suas obras. Nesse espaço, o passado e o presente se entrelaçam, permitindo que o leitor se torne parte de uma realidade maior.

A Ambivalência do Conhecimento

Entretanto, é importante notar que, em Borges, a biblioteca não é apenas um símbolo de luz e conhecimento; ela também carrega uma ambivalência inerente. A vastidão do conhecimento pode ser opressora, e o labirinto da informação pode levar ao desespero. Em "A Biblioteca de Babel", Borges nos apresenta um universo onde a busca pelo sentido é quase impossível, pois os livros contêm não apenas verdades, mas também inverdades e absurdos. Essa duplicidade reflete a condição humana: o desejo de compreender o mundo e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de alcançar um conhecimento absoluto. Assim, o paraíso da biblioteca torna-se um espaço de tanto esperança quanto perplexidade.

A Biblioteca como Comunidade

Por fim, a biblioteca é um espaço de comunidade e diálogo. No ato de ler e compartilhar conhecimento, os indivíduos se conectam, criam laços e se tornam parte de um discurso coletivo. O paraíso, nesse contexto, não é apenas um local de satisfação pessoal, mas um espaço de interconexão humana onde as ideias se cruzam e se desenvolvem. Borges frequentemente enfatiza a importância da colaboração intelectual, reconhecendo que as obras literárias são construções coletivas, influenciadas por contextos sociais, culturais e históricos. O verdadeiro paraíso, então, reside na capacidade de aprender uns com os outros e de transcender as limitações individuais por meio do conhecimento compartilhado.

Conclusão

A afirmação de Borges de que o paraíso poderia ser uma biblioteca encapsula uma visão profunda da literatura como um espaço sagrado e complexo. A biblioteca simboliza a acumulação do conhecimento, a imortalidade intelectual, a ambivalência da busca por sentido e a importância da comunidade. Em última análise, a biblioteca borgeana é um microcosmo da experiência humana, refletindo nossas aspirações, ansiedades e a incessante busca por compreensão. Nesse sentido, a biblioteca não é apenas um efeito da cultura literária, mas um verdadeiro paraíso, onde a alma encontra um lar nas páginas dos livros e onde o conhecimento se torna um caminho para a transcendência.


Oliver Harden


 


 

 


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