quarta-feira, 15 de setembro de 2021

POEMAS DA MINEIRA ADÉLIA PRADO


Perfil escrito poro por Rebeca Fuks,
Doutora em Estudos da Cultura,
publicado no site Cultura Genial.

"A escritora mineira Adélia Prado publicou o seu primeiro livro aos 40 anos. Intitulado Bagagem (1976), essa primeira publicação foi apadrinhada por Carlos Drummond de Andrade que, além de elogiar a autora estreante, enviou a série de poemas para a Editora Imago. Assim que foi lançado, o livro chamou a atenção da crítica especializada e Adélia passou a ser vista com bons olhos. De lá para cá, a poeta vem publicando com certa regularidade, tendo se tornado um dos grandes nomes da poesia brasileira.
Dona de um estilo muitas vezes caracterizado como um romantismo crítico, Adélia Prado usa em seus poemas uma linguagem coloquial e pretende transmitir para o leitor novos pontos de vista sobre o cotidiano, muitas vezes o ressignificando.
POEMAS ENCANTADORES DE ADÉLIA PRADO
1. Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Inserido em Bagagem, seu livro de estreia, Com licença poética é o poema que inaugura a obra e faz uma espécie de apresentação da autora até então desconhecida do grande público.
Os versos tecem uma clara referência (e homenagem) ao Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade. O poeta, aliás, foi de suma importância na carreira de Adélia. Drummond não só foi material de inspiração poética como ajudou a escritora mineira nos primeiros tempos da sua carreira, indicando o seu livro a um editor que veio a publica-la.
2. Alfândega
O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.
==========================
3. Momento
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
4. A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Os versos acima fazem parte de um poema mais extenso, que tece uma crítica a determinado tipo de poeta descolado da realidade, preocupado com escolas, movimentos literários, normas e fórmulas. Trata-se de um poeta cerebral, focado no racional e na precisão.
5. Fragmento
Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.
--------------------------------------
6. Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Casamento narra a história de um casal aparentemente maduro, sereno, estável, que experimenta um amor tranquilo e sem sobressaltos. O eu-lírico enfatiza o seu desejo de cuidar do parceiro e de estar ao seu lado, ainda que isso implique muitas vezes sair da sua zona de conforto. Ela levanta-se a meio da noite para estar junto dele na cozinha enquanto os dois, juntos, preparam a refeição do dia a seguir. Tudo acontece com profunda naturalidade. A relação de longo prazo se baseia nesses pequenos gestos de companheirismo cotidiano.
O casal partilha o silêncio e cada um dos membros parece confortavelmente acolhido na presença do parceiro.
=======================
7. Dona Doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
-----------------------------------------
8. Um jeito
Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.
9. Janela
Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário