quarta-feira, 4 de agosto de 2021

ÁGUA PRETA, DE SONHOS E POESIA


       Henri Matisse (1869-1964), Colagem (Gouache découpée, para ele, "um bálsamo mental")           

A PELE DAS COISAS

 

Valdomiro Santana


Lápis ou caneta e papel. Ou máquina datilográfica e papel. Ou computador. O que então acontece? Um nome, Água Preta, é escrito por Florisvaldo Mattos. Mas, muito antes da escrita desse nome, que é um topônimo, o nome de um lugar, razão pela qual o segundo vocábulo é grafado com inicial maiúscula, uma imagem se acende, a qual não é mais a que havia sido na infância (que, etimologicamente em latim, é “infantia”, do verbo “fari”, falar, em que “fan” significa falante e “in”, a negação – sendo, portanto, “infans” quem ainda não fala, já que só balbucia, murmura, grita, gagueja), que imagem é essa? A de um rio de água preta sobre o qual há uma ponte.

Imagem que vai persistir na retina (e se encadear com outras) como, por sua velocidade (24 fotogramas por segundo), persistem as que vemos no cinema, em cuja tela a percepção natural não é a percepção do movimento. Podemos então dizer que, muito antes da literatura (aqui, em uma de suas formas de expressão, a poesia), o cinema é o que está na origem do soneto “Água Preta”. Eis o texto:

 

Água Preta: debruço-me na ponte,

olho o rio que sangra minha infância;

me despeço de mim — lá, do que fui,

do que somente fui, não mais serei.

 

Na Rua do Apertucho, com tristeza,

me despeço de mim, dos meus amigos.

Imperceptível traço do destino,

com palavras escritas nas paredes,

 

resiste na água quieta (minha tia

Dasdores, debruçada na janela,

olha a chuva batendo nos gramados).

 

Do necessário roxo dos telhados

desce o gado manso do tempo, rumo

ao fundo do rio chifrando ausências.

 

O que é singular neste soneto: a imagem do rio de água preta vai devir outra, e outra, e outra, sem deixar de ser a do passado contraído que imperceptivelmente se distende; não a imagem que de fato é, ou foi. A imagem do rio e da cidade que tem seu nome. Imagem que, em sua origem, é imagem-movimento, a se desdobrar em imagem-percepção, imagem afecção e imagem-ação. Por isso vemos, em vez da reprodução do real desse rio, seus efeitos de realidade.

Já que o verbo evocar diz muito a Florisvaldo Mattos, evoquemos outro poeta lírico, Mario Quintana, que diz em “Parábola”:

“A imagem daqueles salgueiros n’água é mais nítida e pura que os próprios salgueiros. E tem também uma tristeza toda sua, uma tristeza que não está nos primitivos salgueiros”.

Experimentemos ler “Água Preta” como se assistíssemos a um filme, se víssemos um quadro, se ouvíssemos uma obra musical. Isto é possível? Sim, porque há uma comunidade das artes; elas dialogam, nenhuma delas está fechada em sua forma de expressão. Não há arte que não esteja na origem de outra arte ou com outra não faça um entrelace.

Então, digamos: “Água Preta” é um filme imaginário, puramente experimental, em cores, que se delineia, ganha corpo, flui (como o rio do lugar). Abre com um trecho do “Concerto para piano e orquestra, op. 42”, de Schoenberg, cuja emotividade é intensa, com dissonâncias extremas, mostrando imagens que vão se dissolvendo:

a do plano geral de um adolescente que se debruça na ponte para ver o rio; a do plano próximo desse adolescente e a do plano detalhe de seus olhos; a do enquadramento da água do rio vista de cima para baixo; a da Rua do Apertucho vista em profundidade de campo (som direto); as de flashes, nessa rua, em tom sépia, de amigos que já morreram e os ainda vivos;  a da água do rio que enche a tela e parece parada de tão quieta; as do close e do plano próximo de uma mulher de meia idade,  que, debruçada na janela, olha a chuva; a do plano de conjunto da chuva batendo na grama (som direto); as dos movimentos de câmera sobre os telhados que são vistos pintados de roxo; a da palavra FIM em branco sobreimpressa em fundo roxo, quando cessa a música expressionista de Schoenberg e ouve-se  um barulho suave, o dos murmúrios e submurmúrios do rio (som direto). 

Esse diálogo imaginário com o cinema vai dar origem a outro, também imaginário, o diálogo com a pintura, em que uma imagem, a do título do quadro, também puramente experimental, aparece metamorfoseada, primeiro em estilhaços, depois em seu todo, composta de linhas e cores ora saturadas, ora rarefeitas (o preto, o vermelho, o verde, o cinza, o terra de siena, o roxo). Volta-se a ouvir, durante o estilhaçamento da pintura e em seu todo, a música de Schoenberg.

Essa imagem pictórica vai suscitar outro diálogo, devir imagem de duas palavras – água e preta – que, na leitura do título do poema e antes da leitura de seu texto, se acoplam enquanto signos e fendem-se, mas o espaço entre elas é indeterminado, ora micro, ora imenso; espaço vazio, porém onde sensações de uma vida interagem intensamente, as do passado contraído e as de sua distensão no presente.

Disse André Bazin que os filmes de Jean Renoir são feitos com a pele das coisas. Assim como – digo, experimento, leio/vejo/sinto/penso – os poemas de Florisvaldo Mattos.

* 

Valdomiro Santana é escritor, crítico e ensaísta de Literatura e Arte, em geral, autor de vários livros nas áreas de sua especialização intelectual.


 ÁGUA PRETA, SEMPRE!

 Deste simplesmente magnífico comentário, do experiente, culto e lúcido crítico e ensaísta, de poesia, prosa e arte em geral, Valdomiro Santana, não poderia faltar parte do conjunto de poemas do autor desse soneto, que têm como referência a região cacaueira do sul da Bahia, especialmente os em que esse remoto núcleo urbano ainda chamado de Água Presta, então distrito do município de Ilhéus, ganha foro sensível, que reflete miríades de sensações de quem lá viveu e conserva no íntimo memória de rastro infanto-juvenil.

Estimulado por esta saudável e preciosa análise, de sabor e imagem que remontam o pós-impressionismo expressionista sobre o soneto "Água Preta", alinho abaixo uma pequena seleção de poemas e excertos, inseridos em vários livros do autor, que parecem conferir a esse antigo lugar dimensão quase mítica. (FM)

               ÁGUA PRETA (Sul da Bahia), Rua do Apertucho - Anos 1940


RUÍDOS NA NOITE

 

Súbito um ruído: em madrugada fria,

Vozes arrastam sacos transitando.

Zonzo, acordo, na rede em que dormia,

Lá fora, a noite, mas ninguém passando.

 

Pela casa só via gente andando.

Ainda na escuridão, já vindo o dia,

alguém com um saco de caroços pando,

e eu sem decifrar o que acontecia.

 

Sei agora. Essa de cacau trazer

Em tropa de burro para Água Preta

É coisa que não dá para entender.

Melhor nem perguntar, parece treta. 

 

Quando, apitando, aponta o trem-de-carga

E para na estação da rua larga.

 

 

SONS PELA TARDE



Gritos na rua, olhar e ouvido acesos:

Quatro jovens tocando uma sineta.

“Lampião morreu! Lampião morreu!

Foi-se lá para o inferno se acabar!”.

 

As janelas incrédulas se fecham.

A vila volta à vida de murmúrios. 

O quarteto prossegue com a sineta.

Ora, Lampião... Nada a ver com Água Preta.

 

POÇO DO CURTUME

 

Depois da ponte, a Fazenda Natal;

a casa azul, adiante, no caminho.

Na Avenida Baér, os carroceiros

acomodam arreatas e alimárias.

De calças curtas ou calção de banho,

ia com o primo manco de criança,

sempre de tarde, quando o sol morria,

tomar banho no Poço do Curtume.

Moço cordato e carinhoso que era,

ensinou-me a nadar no morno rio. 

Comecei pelo nado-cachorrinho; 

logo braçadas e depois mergulhos,

só voltando de lá no lusco-fusco,

quando o sino tocava Ave-Marias.

 

RUMO A ÁGUA PRETA

 

Na manhãzinha de um verão defunto,

repisando palavras, conselheira,

a mãe urdia na hora da partida,

igualmente a um martelo na bigorna.

“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.

A luz do livro guia o pensamento”.

Os dias disparando na folhinha,

subo no trem e vou para Água Preta.

Trilhos rangem. A máquina resfolga,

bafejando fumaça nos dormentes.

Como a vida, o trem passa e passará.

Chegar, parar, partir, é o seu destino,

sem que perdure vivo nos apitos

o pranto que ele deixa para trás.

 

 

VOZES DA MERCADORIA

 

Agora adeus às sensações bucólicas.

Agita-se o comércio; é a vila.

Avisto ruas, becos, uma praça.

Na calçada de paralelepípedos,

Alça-se o sol risonho do dinheiro.

Aqui, o recanto de veneração,

que se reserva às tropas de cacau,

ao som das estaladas dos tropeiros;

lá, o sacro império da mercadoria:

tabuletas retumbam seda e mescla,

calças de brim, o luxo dos sapatos.

Ali fregueses para casimiras.

Caixeiros de camisa-manga-curta

gabam as novidades dos estoques.

 

INSTANTÂNEOS NO MERCADO

 

Sem rabugem, nem asco, sem salmoura,

limpas (de saia, lenço e cinturão),

mulheres vão à feira, vão às vendas,

às frutas, aos legumes, mantimentos.

Tocam, apalpam, miram, provam, cheiram,

tagarelam dentro dos mercados.

Os homens regressando do trabalho,

exaustos, perambulam por bodegas, 

um trago lhes redime o corpo gasto,

e rumam para casa em lento passo,

para juntar amor e suor na alcova.

Dádiva contumaz da natureza,

lá fora a lua pela telha vã

sanciona o fruto de açoitada entranha.

 

A ALMA BULIÇOSA DAS RUAS

 

Passo por ruas, em esquinas dobro;

pacatos becos, silenciosas praças, 

ainda com luz em postes de madeira.

Ganhadores, carroças e aguadeiros.

Na tenda, o manequim de roupa nova

aguarda acabamentos do alfaiate

para a festa de Judas na Aleluia.

O padeiro com a música do rádio

“Meu consolo é você, / meu grande amor, 

/ eu explico por que” - desce a ladeira,

Enlaça-se com a doida Cavaquinho.

A igreja benze a rua do Cruzeiro;

o rio espelha estrelas e jangadas.

As ruas de Água Preta tinham alma!

 

NOITINHA NO BAR DE MASSU

 

Aglomerado na barbearia

resenha o que ditaram no gramado

rubro Atlanta e o Palestra todo azul.

A professora ordena que a cartilha

tenha ritmo de música cantada,

e som de passarinho no arvoredo.

No Bar de Massu, é o rádio-catedral

e o bilhar; o da Noite, com sinuca,

mesas de gim, cervejas e vermute.

Ainda posso ver, lá no jardim,

garotas e rapazes conversando,

quando toca a sirene: é o Cine Glória,

que chama para o filme de Tarzan,

com meia-entrada de quinhentos réis. 

 

 

RUMO AO RIO QUE SOLETRA NUVENS

 

I

Sem as tristezas que depois virão,

as de ir embora, deixando-a para trás,

quero falar agora do Apertucho,

a minha sempre amada e quieta rua,

de moradas modestas e quitandas,

com seu lado aos meninos interdito;

o da casa onde mora Boi-inteiro,

alta negra de corpo e riso largos,

inferno de mulheres enciumadas.

“Puta, por que sempre aí sentada estás,

na porta, a sorrir para o meu marido?”

Como posso esquecer esse lugar?

Lá havia canto e sonho, havia um rio,

que deslizava soletrando nuvens.

 

II

Aves em céu azul de brancas nuvens,

sítio embaixo de mangas e goiabas.

Mulheres debruçadas nas janelas

costuram, cosem, ou somente rezam.

Gamão e damas rolam na calçada;

jovens em babas, pescas e caçadas.

Regressando de nados e mergulhos,

corro para assistir o último instante

em que a tarde das águas se despede.

Sob pontilhão de ferro, no crepúsculo,

o rio segue namorando nuvens,

enquanto, morna, sem pedir licença,

a noite vem deitar nas suas margens.

Vou lá dentro calçar os meus tamancos.

 

 

O MENINO, O PADRE E O SERMÃO 

 

Ao pé do padre, visto-me de rei,

pouco menos talvez que sacristão.

O padre olha-me. Sou um rude, sei,

incapaz de encantar-me com o sermão.

 

Muito mais me embevecem as ladainhas

das novenas de maio, a voz das moças.

Eu queria que todas fossem minhas

(o macaco que é bom não quebra louças).

 

Padre Luís San Juan do alto me olhava,

sem saber de que era que mais eu ria. 

O moderado tom com que falava

ao coração, sem vã filosofia?

 

Era o som das palavras, cristalino,

que fascinava os olhos do menino.    

 

 

 

SOL DA MANHÃ NO ROSTO DOS RAPAZES 

​​

​​​Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.

​​​​​​​​Sosígenes Costa

 

I

Depois que o dia sepultou injúrias,

e o salário dormita na algibeira,

um aqui, outro ali, de andar gingado,

rapazes se distraem, ainda mornos

os rumores da guerra nos seus longes.

Deuses que são, esbaldam-se e se enroscam,

no cabaré de som e putas jovens,

com samba, choro e valsa, com foxtrote,

ao trombone-de-varas de Agenor.

Manhã cedo, sem queixas, sem remorsos,

transitam pela rua sentenciosa,

que os encobre com auréola de homens feitos.

Rindo, clamam que a aurora os justifique:

sem orgia, não há vida melhor.

 

Por entre frestas, ao menino encanta,

no trânsito do exército feliz,

a luz do sol no rosto dos rapazes.

Depois é o mundo de clareiras turvas:

o trem-de-ferro avança para um porto,

tão infinito quanto foi sonhado

para quem se descobre na cidade

de camisa, gravata e paletó. 

 

A alma apreensiva arrasta-se num bonde:

um quarteirão de prédios, novidades,

que acordam sonhos dentro de cada um.

Longe de charcos e remotos rios,

agora ousados centuriões urbanos,

na palavra de doutos confiantes,

passeiam, fumam, bebem cuba-libre,

diante do mar, saboreando olvidos.

 

 

II

Eu era um deles, para o que desse e viesse.

É tempo de mudar, todos sabemos.

A emoção logo abraça o pensamento,

que aparência lhe dá de um coração.

Jamais pertence a quem do sonho ausenta-se

o que se ganha após luta incessante.

Melhor atar-se à roda da fortuna,

porque a juventude, única, não volta.

A vida é sempre passo para a frente,

mesmo que até depois de muitas voltas

a memória se torne único bem,

em que dias e noites resplandecem.

Bom ser íntegro em tudo a não ser nada,

dentro do mundo, humanamente livre.

 

 

SUAVES HORAS COR DE CINZA

                         “Vais encontrar o mundo. (...) Coragem para a luta”

                                                                                (Raul Pompeia)

 

Na noite de estrelas que me amadurecem,

Sento-me e abro mapa de interrogações.

Manhã cedo, quando a rua é calma e expectante,

a mãe prepara-me os apetrechos de viagem,

leva-me à porta e cobre-me de conselhos graves.

Saio e dobro a esquina já de cães ausentes.

Atrás, perscrutando o último sentido abraço,

turvos, fitam-me os olhos da silente casa.

Na estrada de cascalho e dúvidas empoeiradas,

aos solavancos de ônibus em tudo exausto,

miro a extensão das ânsias, o vasto horizonte

de razão e irrazão, que, tácito, adivinho,

pronto a vencer chão acerbo e chapada de erros,

enfiado em malha prévia de conceitos.  

De voz em solo gráfico, ouvira e já sabia:

“Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”. 

 

 

No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:

a vida é bela, há mais que desfrutar.

 

TECELÃO DE MANHÃS

 

...eu acho que 99,9% dos poetas brasileiros são altamente provincianos.

(Roberto Piva (1937-2010), entrevista; apud Floriano Martins – O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina, 2001).

 

 

Cogito. Sou um poeta de província,

até mesmo um andarilho sem caminhos.

Penso ou pensam assim. Sem compromissos,

sendo o primeiro a conhecer limites,

aprumo o corpo e aceito o veredito,

talvez por ter as coisas que me bastam.

 

Por exemplo (eu apenas enumero):

no terreiro de casa, mansas noites,

em que a lua era sempre uma surpresa;

rosas e girassóis, tosco jardim,

cacau e bananeiras no quintal,

mamão, goiabas, a perder de vista

(na mão sentia este favor do chão);

claras manhãs de tropas nas ladeiras,

lá, subindo e descendo, uma alegria,

que não era somente dos tropeiros;

moringas na janela do vizinho,

substituindo gelo que não tinha;

os banhos de água fresca nos riachos;

a mirada da serra azul-turquesa,

poentes ávidos que avermelham tardes,

amarelecem nuvens, casas, seja

primavera, verão, outono, inverno

(das estrelas Sosígenes me avisa);

as tranquilas ruas de minha infância,

a passagem do trem por Água Preta,

o apito e a máquina resfolegante

jungindo ao trilho todos os sentidos;

passarinhos nos fios de telégrafo;

o rio de jangadas, que refresca

rosto, braços e pernas de garotos;

manhãs de fontes claras que celebram

sol de estendidas roupas em lajedos;

o pão quente que vem da padaria;

competições no jogo da sinuca,

graves rostos centrados no bilhar;

o futebol e os sons do cabaré,

interdito aos que sonham com manhãs;

miro na placidez de noites mornas

mulheres, as ansiosas por grinaldas,

quanto as que escorregavam nos oitões

por uma oferta, talvez amor sentido,

e sumiam pelo trem libertador;

hinos e fatos pelo rádio escorrem

guerra longínqua, escurecendo mentes,

que até parece perto a dor distante;

uma tarde, em Ilhéus, perante as ondas,

eu, que só conhecia o azul dos mares,

saboreando um sorvete no Vesúvio;

Itabuna de uma só biblioteca:

a descoberta do livro (um passo à frente)

um verso me incutiu na Praça Adami:

soprava brisa, um eco; o luar sorria;

música do Francês, declinações

do mítico Latim, que me encantava;

Salvador de outros tempos salvadores:

bondes lotados na cidade grande,

que me levam a bairros e convívios,

disputando moedas de centavos;

delícia de viver camaradagens,

que a copa dos oitis justificava;

o cinema, o samba, o jazz, claridades

de um século de muita escuridão;

em pé, fumando um filtro na calçada,

talvez imite Bogart ou Clark Gable,

(talvez ninguém, apenas um cartaz); 

os bailes de bolero e mambo-jambo,

artes de namorar com bailarinas,

e mais que tudo, mais que a própria vida,

o prazer de viver na boemia

(Baco brinda com Exu e com Xangô,

as bênçãos no Terreiro de Jesus).

 

Amanheceu. A orquestra foi embora.

São seis, e o sino toca lá na Ajuda.

(Vontade de morrer na Rua Chile...)

A roda gira, de um dia atrás outro.

Chega a hora de sentir que a vida é breve,

de crescer, de vencer, de mergulhar

nos labirintos da burocracia.

Assim me perco em lúdico passado,

transitando por auroras e agonias,

para um futuro grávido de incógnitas.

Fui e sou isto: um poeta de província;

meus dias de saudades entreteço.

 

TARDE NA VÁRZEA COM CHUVA

A João Ubaldo Ribeiro

                        (“Não existe poesia sem infância”, ele disse)

 

A chuva há de passar... De quando em quando,

Um alarido vem pelo ar, fugidio.

Na tarde bruxuleante, além do rio,

Teles e Caboclinho estão jogando.

 

Não posso ver; a chuva me atrapalha.

Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.

Avanço a rua. Minha tia ralha

(nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”

 

Raiva. Bato três vezes na madeira.

Será que vai chover a tarde inteira?

Digam como lá estão os litigantes.

 

É agosto, sim, e chove sem parar.

Dentro, o menino quer comemorar

logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.

 

COM A ALMA DAS RUAS

 

As ruas de Água Preta começavam

Onde se perde a minha solidão.

Era no Apertucho que me esperavam

As alegrias de meu coração.

A Ruy Barbosa era uma rua enorme,

Que consumia o meu sonhar ligeiro,

Deixando para trás a do Cruzeiro,

A ouvir o som de uma canção que dorme.

Que irei fazer na Rua do Comércio,

Entre burros de cargas e tropeiros,

De calça nova, inutilmente, a ver se

O que me diz a lábia dos caixeiros

Não vale nada do que eu guardo mais

Do campinho lá da Rua do Gás?

                           Trem-de-ferro, pintura de Almiro Borges, Alagoinhas/BA  


O TREM DE ÁGUA PRETA

 

II– A navegação dos horários

 

Conscientemente

                                    instalo-me sobre mudos

pontilhões e repasso calendários

De vapor o marulho transeunte

é das locomotivas ofegantes

Rodas e trilhos no asilo da ferrugem

abalando dormentes na lembrança

ensaiam no ar nostálgico de ruídos

brados

Ancoram em terminais de sono

onde tudo é memória luto sombra

 

Congelados nos postes de telégrafo

espectros de mensagens desgarradas

soterrando-se em Morse de azinhavre

cifram em sinais de brumoso código

a solidão das estações em ruína

duelam contra ventos redundantes

funcionários dementes engenheiros

severos cabos-de-turmas

                                               Oligarcas

 

que à mesa pela noite jogam cartas

bebem uísque, soda e vinho do Porto

pantagruelicamente comem lauto

repasto convertido em florilégio

peões da estrada a martelar o sexo

regressando de abismos petrificam

desolado tributo que persegue

Mutuns Rio do Braço Água Preta

Santa Cruz Serra Verde Catolé

Cascata Pedras Pretas Poiri

 

Os atletas do trem soprando búzios

voam no pelo de cavalos doidos

 

Ante brasa e aço a dança dos foguistas

desperta cogumelos que deslizam

lentos por corredores de resina

e naufragam em crepitante pélago

 

Guarda-freios e maquinistas bêbados

escapando de sujos botequins

entoam sobre plataformas ermas

velhas canções de esperma itinerante

 

A fome lhes comeu o olhar de espanto

comeu-lhes rosto braços pensamento

e agora por entre aldeias sanatórios

praças com animais mumificados

acena-lhes com moedas de crepúsculo

misturadas a ânsias confissões gemidos

que viajam na mala dos correios

pelos desvios despachando brisas

que sobressaltam como os telegramas.

 

(...)

 

A máquina quando geme

é a centelha sentindo a cento e vinte

a bandeira vermelha nas tangentes

era de fato um sinal de perigo

que ninguém viu descendo para Ilhéus

 

Árvore rio nuvem recolheram

espetáculos de roupas suarentas

e teceram no espaço dos horários

biografias murais de óleo e carvão

 

Dos trens de carga aqueles vagões negros

levam sonhos de infância em feixe e fardo

cabedais de família minhas queixas

rolam por ribanceiras vêm como águas

de cheia

                        Torturadas torturando

 

As armações dos verdes armazéns

delegam ao ferro forças irreais

para guardar sob zinco a sacaria

Safras de cacau

                                         Vidas em coágulo.

 

III – Cemitério de esperança

a)

Nem mesmo estavas preparada

Estavas como caça fatigada

quando de ti veio se acercando

por entre ramos cedros sapucaias

desavindo rumor

                                Severidades

ensombrecendo leito matutino

 

Era preciso que o céu baixasse rápido

que tudo se cobrisse de argamassa

e se desse ao ferro cemitério

Tudo era preciso no momento

Era preciso que se abatesse a caça

e se fizesse sombra onde era sol

se apagasse o caminho de alegrias

por onde seguiam os que voltavam

 

b)

olhos mergulho agudos na folhagem

perfuro frondes de onde saltam rostos

cavados dentes olhos do barranco

aparições enfermas se debruçam

sobre desfiladeiro imaginário

que persigo em desembestada fúria

vozerio que se arma me acompanha

eleva-se como corpo trespassado

veloz dardo que passa e me detém

 

Gritam choram tremem dentes olhos

rostos qual pensa esteira de gemidos

lua despedaçada em mar distante

relâmpagos amargos que me fendem

o coração

                   a boca paralisa

c)

Eu sei

              Tens até mágoa

                                       Quando vens

Espetas teu apito verdejante

no céu na flora de abundante mel

madeira mineral que te rodeia

– e o louro e o fel e a mão oculta

e sobre a roxa amêndoa de cacau

que anuncia o verão

                                    Vens e despejas

tua usina de aromas

                                    teu calor

Eu sei

Tens vontade até de recuar

para o seio absoluto da manhã

e lá polir a crosta de ferrugem

arrancar-se depois do inanimado

chão da morte

                          como ave ou como estrela

súbito em voo raso sobre os campos

 

E a mim vens com teu peso

                                               teu galope

animal de pelagem coruscante

rolas sobre meu peito

                                       meu semblante

sobre meus olhos hóspedes do vento

a de ontem vida tua enfermidade

 

Vens como se rompesse a noite em febre

açulando os outeiros acordando

pássaros empalhados nas ramagens

malgrado tudo

                                    Sonho capturado

vens banhada de luz e tempestade

tua massa colora os ambientes

embriaga o instante avança e nos eriça

cadáver hoje que se inventou bandeira

ao roçar de teu sopro

                                    Teu convívio

 

IV – Expectante reflexão

 

O trem

               verde e vermelho como a vida

mas pode-se agregar ocre e amarelo

se é de homens e coisas que se fala

O trem

  ânsias de infância/arrimo de velhice

O trem

   rebanho de acenos/rama flamejante

O trem

   ágil pesadelo/viação da aurora

O trem

   transido soluço/bandeira de sorrisos

O trem

   flauta de vidro/vertebrado canto

O trem

   centopeia de nuvem/potro de esmeralda

O trem

               O trem de Água Preta

 

Dardo de som lançado ao infinitivo

rajada de luz atravessando o paraíso

me aduba o coração o sonho acorda

o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.


NO TREM, COM CENTURIÕES

 

O trem-de-ferro para na estação.

Dentro da classe de janelas muitas,

sento-me na cadeira de palhinha.

Tez denunciando terras e distâncias,

fazendeiros de bota e paletó

penetram no vagão suando auroras.

De cenho carregado, dependuram,

no alto, o chapéu, esporas e o revólver.

 

As mulheres destrincham seus rosários.

Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.

Compadres são de justas e conquistas

(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).

Colecionando safras e plantios,

transpiram suor e orvalho. Nas capangas,

dormem papéis e ganhos, calendários.

Nunca delas sairá a última moeda.

 

Confiam num outono redentor,

em dias mergulhados na lavoura.

Pacíficos, serenos e domésticos,

não bebem aguardente, nem sorriem.

Sonharam, não mais sonham, esses machos.

Em tardes mansas de remotos sítios,

sem traficar afagos e carícias,

encharcaram de filhos castos ventres.

 

Logo velhas histórias de jagunços

desfilam entre gáudios outonais:

de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,

do que morreu de tiro noutro rio

(quietos Mocambo, Almada. Catolé).

Logo se dá notícia alvissareira:

cacaueiros esplendem de fartura,

com fruto encachoeirando pelo tronco.

 

Fugindo de centelhas e fuligem,

em meu traje de seda cintilante,

abro a janela e me debruço. Sopro

minha flauta vermelha de metal,

com que costumo celebrar instantes

em que o dia derrama suavidades

e saúdo os guriatãs e os curiós,

que se abancam nos postes de telégrafo.

 

A manhã solidária me convoca

a mirar a beleza das campinas,

na luz que pauta a música do dia.

A máquina suspira, o trem esbarra.

Guardo a flauta no bolso da camisa.

Súbito casas, uma praça, letras.

No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:

a vida é bela, há mais que desfrutar.


(Excertos do poema FERROVIAURA; Poesia Reunida e Inéditos, SP: Escrituras, 2011)

                           Jane Hilda Badaró, Colheita de Cacau, Ilhéus-Bahia, s.d.

Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e articulista; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, pela Faculdade de Comunicação. Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe de “A Tarde”, chefe de Redação do “Diário de Notícias”, ambos de Salvador, e de chefe da Sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia. Editou o suplemento A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Membro da Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31 desde 1995. Foi presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia (1987-89). Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, Prêmio da União Brasileira de Escritores, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma antologia, 2012; Estuário dos dias e outros poemas, 2017; Antologia poética e inéditos, 2017 (todos de poesia). Escritos outros: Estação de Prosa & Diversos, 1997); Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, (2004); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 3ª edição, 2018. CACAUEIROS – Poesia. Conto. Teatro (2022); Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022). Participou de antologias poéticas baianas, nacionais e estrangeiras (Portugal, Espanha, França e Alemanha).

Nasceu na Fazenda Conceição, na região de Serra Verde, arredores de Uruçuca, ao tempo em que esta se chamava Vila de Água Preta, distrito de Ilhéus, em 1932.






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