Henri Matisse (1869-1964), Colagem (Gouache découpée, para ele, "um bálsamo mental")
A PELE DAS COISAS
Valdomiro Santana
Lápis ou caneta e papel. Ou máquina
datilográfica e papel. Ou computador. O que então acontece? Um nome, Água
Preta, é escrito por Florisvaldo Mattos. Mas, muito antes da escrita desse
nome, que é um topônimo, o nome de um lugar, razão pela qual o segundo vocábulo
é grafado com inicial maiúscula, uma imagem se acende, a qual não é mais a que
havia sido na infância (que, etimologicamente em latim, é “infantia”, do verbo
“fari”, falar, em que “fan” significa falante e “in”, a negação – sendo,
portanto, “infans” quem ainda não fala, já que só balbucia, murmura, grita,
gagueja), que imagem é essa? A de um rio de água preta sobre o qual há uma
ponte.
Imagem que vai persistir na retina (e
se encadear com outras) como, por sua velocidade (24 fotogramas por segundo),
persistem as que vemos no cinema, em cuja tela a percepção natural não é a
percepção do movimento. Podemos então dizer que, muito antes da literatura
(aqui, em uma de suas formas de expressão, a poesia), o cinema é o que está na
origem do soneto “Água Preta”. Eis o texto:
Água Preta: debruço-me na ponte,
olho o rio que sangra minha infância;
me despeço de mim — lá, do que fui,
do que somente fui, não mais serei.
Na Rua do Apertucho, com tristeza,
me despeço de mim, dos meus amigos.
Imperceptível traço do destino,
com palavras escritas nas paredes,
resiste na água quieta (minha tia
Dasdores, debruçada na janela,
olha a chuva batendo nos gramados).
Do necessário roxo dos telhados
desce o gado manso do tempo, rumo
ao fundo do rio chifrando ausências.
O que é singular neste soneto: a
imagem do rio de água preta vai devir outra, e outra, e outra, sem deixar de
ser a do passado contraído que imperceptivelmente se distende; não a imagem que
de fato é, ou foi. A imagem do rio e da cidade que tem seu nome. Imagem que, em
sua origem, é imagem-movimento, a se desdobrar em imagem-percepção, imagem
afecção e imagem-ação. Por isso vemos, em vez da reprodução do real desse rio,
seus efeitos de realidade.
Já que o verbo evocar diz muito a
Florisvaldo Mattos, evoquemos outro poeta lírico, Mario Quintana, que diz em
“Parábola”:
“A imagem daqueles salgueiros n’água
é mais nítida e pura que os próprios salgueiros. E tem também uma tristeza toda
sua, uma tristeza que não está nos primitivos salgueiros”.
Experimentemos ler “Água Preta” como
se assistíssemos a um filme, se víssemos um quadro, se ouvíssemos uma obra
musical. Isto é possível? Sim, porque há uma comunidade das artes; elas
dialogam, nenhuma delas está fechada em sua forma de expressão. Não há arte que
não esteja na origem de outra arte ou com outra não faça um entrelace.
Então, digamos: “Água Preta” é um
filme imaginário, puramente experimental, em cores, que se delineia, ganha
corpo, flui (como o rio do lugar). Abre com um trecho do “Concerto para piano e
orquestra, op. 42”, de Schoenberg, cuja emotividade é intensa, com dissonâncias
extremas, mostrando imagens que vão se dissolvendo:
a do plano geral de um adolescente
que se debruça na ponte para ver o rio; a do plano próximo desse adolescente e
a do plano detalhe de seus olhos; a do enquadramento da água do rio vista de
cima para baixo; a da Rua do Apertucho vista em profundidade de campo (som
direto); as de flashes, nessa rua, em tom sépia, de amigos que já morreram e os
ainda vivos; a da água do rio que enche
a tela e parece parada de tão quieta; as do close e do plano próximo de uma
mulher de meia idade, que, debruçada na
janela, olha a chuva; a do plano de conjunto da chuva batendo na grama (som
direto); as dos movimentos de câmera sobre os telhados que são vistos pintados
de roxo; a da palavra FIM em branco sobreimpressa em fundo roxo, quando cessa a
música expressionista de Schoenberg e ouve-se
um barulho suave, o dos murmúrios e submurmúrios do rio (som
direto).
Esse diálogo imaginário com o cinema
vai dar origem a outro, também imaginário, o diálogo com a pintura, em que uma
imagem, a do título do quadro, também puramente experimental, aparece
metamorfoseada, primeiro em estilhaços, depois em seu todo, composta de linhas
e cores ora saturadas, ora rarefeitas (o preto, o vermelho, o verde, o cinza, o
terra de siena, o roxo). Volta-se a ouvir, durante o estilhaçamento da pintura
e em seu todo, a música de Schoenberg.
Essa imagem pictórica vai suscitar
outro diálogo, devir imagem de duas palavras – água e preta – que, na leitura do título do poema e antes da leitura de seu
texto, se acoplam enquanto signos e fendem-se, mas o espaço entre elas é
indeterminado, ora micro, ora imenso; espaço vazio, porém onde sensações de uma
vida interagem intensamente, as do passado contraído e as de sua distensão no
presente.
Disse André Bazin que os filmes de Jean Renoir são feitos com a pele das coisas. Assim como – digo, experimento, leio/vejo/sinto/penso – os poemas de Florisvaldo Mattos.
Valdomiro Santana é escritor, crítico e ensaísta de Literatura e Arte, em geral, autor de vários livros nas áreas de sua especialização intelectual.
Estimulado por esta saudável e preciosa análise, de sabor e imagem que
remontam o pós-impressionismo expressionista sobre o soneto "Água Preta",
alinho abaixo uma pequena seleção de poemas e excertos, inseridos em vários
livros do autor, que parecem conferir a esse antigo lugar dimensão quase
mítica. (FM)

ÁGUA PRETA (Sul da Bahia), Rua do Apertucho - Anos 1940
RUÍDOS NA NOITE
Súbito um ruído: em madrugada
fria,
Vozes arrastam sacos transitando.
Zonzo, acordo, na rede em que
dormia,
Lá fora, a noite, mas ninguém
passando.
Pela casa só via gente andando.
Ainda na escuridão, já vindo o
dia,
alguém com um saco de
caroços pando,
e eu sem decifrar o que
acontecia.
Sei agora. Essa de cacau trazer
Em tropa de burro para Água Preta
É coisa que não dá para entender.
Melhor nem perguntar, parece
treta.
Quando, apitando, aponta o
trem-de-carga
E para na estação da rua larga.
SONS PELA TARDE
Gritos na rua, olhar e ouvido
acesos:
Quatro jovens tocando uma sineta.
“Lampião morreu! Lampião morreu!
Foi-se lá para o inferno se
acabar!”.
As janelas incrédulas se fecham.
A vila volta à vida de
murmúrios.
O quarteto prossegue com a
sineta.
Ora, Lampião... Nada a ver com
Água Preta.
POÇO DO CURTUME
Depois da ponte, a Fazenda Natal;
a casa azul, adiante, no
caminho.
Na Avenida Baér, os carroceiros
acomodam arreatas e
alimárias.
De calças curtas ou calção de
banho,
ia com o primo manco de
criança,
sempre de tarde, quando o
sol morria,
tomar banho no Poço do
Curtume.
Moço cordato e carinhoso que era,
ensinou-me a nadar no morno
rio.
Comecei pelo
nado-cachorrinho;
logo braçadas e depois
mergulhos,
só voltando de lá no
lusco-fusco,
quando o sino tocava
Ave-Marias.
RUMO A ÁGUA PRETA
Na manhãzinha de um verão
defunto,
repisando palavras,
conselheira,
a mãe urdia na hora da
partida,
igualmente a um martelo na
bigorna.
“Vai, filho, estude, aprenda;
escreva e leia.
A luz do livro guia o
pensamento”.
Os dias disparando na folhinha,
subo no trem e vou para Água
Preta.
Trilhos rangem. A máquina
resfolga,
bafejando fumaça nos
dormentes.
Como a vida, o trem passa e
passará.
Chegar, parar, partir, é o seu
destino,
sem que perdure vivo nos
apitos
o pranto que ele deixa para
trás.
VOZES DA MERCADORIA
Agora adeus às sensações
bucólicas.
Agita-se o comércio; é a vila.
Avisto ruas, becos, uma praça.
Na calçada de
paralelepípedos,
Alça-se o sol risonho do
dinheiro.
Aqui, o recanto de veneração,
que se reserva às tropas de
cacau,
ao som das estaladas dos
tropeiros;
lá, o sacro império da
mercadoria:
tabuletas retumbam seda e
mescla,
calças de brim, o luxo dos
sapatos.
Ali fregueses para casimiras.
Caixeiros de camisa-manga-curta
gabam as novidades dos
estoques.
INSTANTÂNEOS NO MERCADO
Sem rabugem, nem asco, sem
salmoura,
limpas (de saia, lenço e
cinturão),
mulheres vão à feira, vão às
vendas,
às frutas, aos legumes,
mantimentos.
Tocam, apalpam, miram, provam,
cheiram,
tagarelam dentro dos
mercados.
Os homens regressando do
trabalho,
exaustos, perambulam por
bodegas,
um trago lhes redime o corpo
gasto,
e rumam para casa em lento
passo,
para juntar amor e suor na
alcova.
Dádiva contumaz da natureza,
lá fora a lua pela telha vã
sanciona o fruto de açoitada
entranha.
A ALMA BULIÇOSA DAS RUAS
Passo por ruas, em esquinas
dobro;
pacatos becos, silenciosas
praças,
ainda com luz em postes de
madeira.
Ganhadores, carroças e
aguadeiros.
Na tenda, o manequim de roupa
nova
aguarda acabamentos do
alfaiate
para a festa de Judas na
Aleluia.
O padeiro com a música do rádio
- “Meu consolo é você, /
meu grande amor,
/ eu explico por que” - desce a ladeira,
Enlaça-se com a doida
Cavaquinho.
A igreja benze a rua do Cruzeiro;
o rio espelha estrelas e
jangadas.
As ruas de Água Preta tinham
alma!
NOITINHA NO BAR DE MASSU
Aglomerado na barbearia
resenha o que ditaram no
gramado
rubro Atlanta e o Palestra
todo azul.
A professora ordena que a
cartilha
tenha ritmo de música cantada,
e som de passarinho no
arvoredo.
No Bar de Massu, é o
rádio-catedral
e o bilhar; o da Noite, com
sinuca,
mesas de gim, cervejas e
vermute.
Ainda posso ver, lá no jardim,
garotas e rapazes
conversando,
quando toca a sirene: é o
Cine Glória,
que chama para o filme de
Tarzan,
com meia-entrada de
quinhentos réis.
RUMO AO RIO QUE SOLETRA NUVENS
I
Sem as tristezas que depois
virão,
as de ir embora, deixando-a
para trás,
quero falar agora do
Apertucho,
a minha sempre amada e
quieta rua,
de moradas modestas e
quitandas,
com seu lado aos meninos
interdito;
o da casa onde mora Boi-inteiro,
alta negra de corpo e riso
largos,
inferno de mulheres
enciumadas.
“Puta, por que sempre aí sentada
estás,
na porta, a sorrir para o
meu marido?”
Como posso esquecer esse lugar?
Lá havia canto e sonho, havia um
rio,
que deslizava soletrando
nuvens.
II
Aves em céu azul de brancas
nuvens,
sítio embaixo de mangas e
goiabas.
Mulheres debruçadas nas janelas
costuram, cosem, ou somente
rezam.
Gamão e damas rolam na calçada;
jovens em babas, pescas e caçadas.
Regressando de nados e mergulhos,
corro para assistir o último
instante
em que a tarde das águas se
despede.
Sob pontilhão de ferro, no
crepúsculo,
o rio segue namorando
nuvens,
enquanto, morna, sem pedir
licença,
a noite vem deitar nas suas
margens.
Vou lá dentro calçar os meus
tamancos.
O MENINO, O PADRE E O SERMÃO
Ao pé do padre, visto-me de rei,
pouco menos talvez que
sacristão.
O padre olha-me. Sou um rude,
sei,
incapaz de encantar-me com o
sermão.
Muito mais me embevecem as
ladainhas
das novenas de maio, a voz
das moças.
Eu queria que todas fossem minhas
(o macaco que é bom não
quebra louças).
Padre Luís San Juan do alto me
olhava,
sem saber de que era que
mais eu ria.
O moderado tom com que falava
ao coração, sem vã
filosofia?
Era o som das palavras,
cristalino,
que fascinava os olhos do
menino.
SOL DA MANHÃ NO ROSTO DOS RAPAZES
Entre os tanques dos reis,
o meu tanque é profundo.
Sosígenes Costa
I
Depois que o dia sepultou
injúrias,
e o salário dormita na
algibeira,
um aqui, outro ali, de andar
gingado,
rapazes se distraem, ainda
mornos
os rumores da guerra nos
seus longes.
Deuses que são, esbaldam-se e se
enroscam,
no cabaré de som e putas
jovens,
com samba, choro e valsa,
com foxtrote,
ao trombone-de-varas de
Agenor.
Manhã cedo, sem queixas, sem
remorsos,
transitam pela rua
sentenciosa,
que os encobre com auréola
de homens feitos.
Rindo, clamam que a aurora os
justifique:
sem orgia, não há vida melhor.
Por entre frestas, ao menino
encanta,
no trânsito do exército
feliz,
a luz do sol no rosto dos
rapazes.
Depois é o mundo de clareiras
turvas:
o trem-de-ferro avança para
um porto,
tão infinito quanto foi
sonhado
para quem se descobre na cidade
de camisa, gravata e
paletó.
A alma apreensiva arrasta-se num
bonde:
um quarteirão de prédios,
novidades,
que acordam sonhos dentro de
cada um.
Longe de charcos e remotos rios,
agora ousados centuriões
urbanos,
na palavra de doutos
confiantes,
passeiam, fumam, bebem
cuba-libre,
diante do mar, saboreando
olvidos.
II
Eu era um deles, para o que desse
e viesse.
É tempo de mudar, todos sabemos.
A emoção logo abraça o
pensamento,
que aparência lhe dá de um
coração.
Jamais pertence a quem do sonho ausenta-se
o que se ganha após luta
incessante.
Melhor atar-se à roda da fortuna,
porque a juventude, única,
não volta.
A vida é sempre passo para a
frente,
mesmo que até depois de
muitas voltas
a memória se torne único
bem,
em que dias e noites resplandecem.
Bom ser íntegro em tudo a não ser
nada,
dentro do mundo, humanamente
livre.
SUAVES HORAS COR DE CINZA
“Vais
encontrar o mundo. (...) Coragem para a luta”
(Raul Pompeia)
Na noite de estrelas que me
amadurecem,
Sento-me e abro mapa de
interrogações.
Manhã cedo, quando a rua é calma
e expectante,
a mãe prepara-me os
apetrechos de viagem,
leva-me à porta e cobre-me de
conselhos graves.
Saio e dobro a esquina já de cães
ausentes.
Atrás, perscrutando o último
sentido abraço,
turvos, fitam-me os olhos da
silente casa.
Na estrada de cascalho e dúvidas
empoeiradas,
aos solavancos de ônibus em
tudo exausto,
miro a extensão das ânsias,
o vasto horizonte
de razão e irrazão, que,
tácito, adivinho,
pronto a vencer chão acerbo
e chapada de erros,
enfiado em malha prévia de
conceitos.
De voz em solo gráfico, ouvira e
já sabia:
“Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”.
No alto, leio: ÁGUA
PRETA. E logo penso:
a vida é bela,
há mais que desfrutar.
TECELÃO DE MANHÃS
...eu
acho que 99,9% dos poetas brasileiros são altamente provincianos.
(Roberto Piva
(1937-2010), entrevista; apud Floriano Martins – O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina,
2001).
Cogito. Sou um poeta de província,
até mesmo um andarilho sem caminhos.
Penso ou pensam assim. Sem compromissos,
sendo o primeiro a conhecer limites,
aprumo o corpo e aceito o veredito,
talvez por ter as coisas que me bastam.
Por exemplo (eu apenas enumero):
no terreiro de casa, mansas noites,
em que a lua era sempre uma surpresa;
rosas e girassóis, tosco jardim,
cacau e bananeiras no quintal,
mamão, goiabas, a perder de vista
(na mão sentia este favor do chão);
claras manhãs de tropas nas ladeiras,
lá, subindo e descendo, uma alegria,
que não era somente dos tropeiros;
moringas na janela do vizinho,
substituindo gelo que não tinha;
os banhos de água fresca nos riachos;
a mirada da serra azul-turquesa,
poentes ávidos que avermelham tardes,
amarelecem nuvens, casas, seja
primavera, verão, outono, inverno
(das estrelas Sosígenes me avisa);
as tranquilas ruas de minha infância,
a passagem do trem por Água Preta,
o apito e a máquina resfolegante
jungindo ao trilho todos os sentidos;
passarinhos nos fios de telégrafo;
o rio de jangadas, que refresca
rosto, braços e pernas de garotos;
manhãs de fontes claras que celebram
sol de estendidas roupas em lajedos;
o pão quente que vem da padaria;
competições no jogo da sinuca,
graves rostos centrados no bilhar;
o futebol e os sons do cabaré,
interdito aos que sonham com manhãs;
miro na placidez de noites mornas
mulheres, as ansiosas por grinaldas,
quanto as que escorregavam nos oitões
por uma oferta, talvez amor sentido,
e sumiam pelo trem libertador;
hinos e fatos pelo rádio escorrem
guerra longínqua, escurecendo mentes,
que até parece perto a dor distante;
uma tarde, em Ilhéus, perante as ondas,
eu, que só conhecia o azul dos mares,
saboreando um sorvete no Vesúvio;
Itabuna de uma só biblioteca:
a descoberta do livro (um passo à frente)
um verso me incutiu na Praça Adami:
soprava brisa, um eco; o luar sorria;
música do Francês, declinações
do mítico Latim, que me encantava;
Salvador de outros tempos salvadores:
bondes lotados na cidade grande,
que me levam a bairros e convívios,
disputando moedas de centavos;
delícia de viver camaradagens,
que a copa dos oitis justificava;
o cinema, o samba, o jazz, claridades
de um século de muita escuridão;
em pé, fumando um filtro na calçada,
talvez imite Bogart ou Clark Gable,
(talvez ninguém, apenas um cartaz);
os bailes de bolero e mambo-jambo,
artes de namorar com bailarinas,
e mais que tudo, mais que a própria vida,
o prazer de viver na boemia
(Baco brinda com Exu e com Xangô,
as bênçãos no Terreiro de Jesus).
Amanheceu. A orquestra foi embora.
São seis, e o sino toca lá na Ajuda.
(Vontade de morrer na Rua Chile...)
A roda gira, de um dia atrás outro.
Chega a hora de sentir que a vida é breve,
de crescer, de vencer, de mergulhar
nos labirintos da burocracia.
Assim me perco em lúdico passado,
transitando por auroras e agonias,
para um futuro grávido de incógnitas.
Fui e sou isto: um poeta de província;
meus dias de saudades entreteço.
TARDE
NA VÁRZEA COM CHUVA
A
João Ubaldo Ribeiro
(“Não existe poesia sem infância”, ele
disse)
A chuva há de passar... De quando em quando,
Um alarido vem pelo ar, fugidio.
Na tarde bruxuleante, além do rio,
Teles e Caboclinho estão jogando.
Não posso ver; a chuva me atrapalha.
Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.
Avanço a rua. Minha tia ralha
(nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”
Raiva. Bato três vezes na madeira.
Será que vai chover a tarde inteira?
Digam como lá estão os litigantes.
É agosto, sim, e chove sem parar.
Dentro, o menino quer comemorar
logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.
COM
A ALMA DAS RUAS
As ruas de Água Preta começavam
Onde se perde a minha solidão.
Era no Apertucho que me esperavam
As alegrias de meu coração.
A Ruy Barbosa era uma rua enorme,
Que consumia o meu sonhar ligeiro,
Deixando para trás a do Cruzeiro,
A ouvir o som de uma canção que dorme.
Que irei fazer na Rua do Comércio,
Entre burros de cargas e tropeiros,
De calça nova, inutilmente, a ver se
O que me diz a lábia dos caixeiros
Não vale nada do que eu
guardo mais
Do campinho lá da Rua do
Gás?
O TREM DE ÁGUA PRETA
II– A navegação dos horários
Conscientemente
instalo-me
sobre mudos
pontilhões e repasso calendários
De vapor o marulho transeunte
é das locomotivas ofegantes
Rodas e trilhos no asilo da ferrugem
abalando dormentes na lembrança
ensaiam no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram em terminais de sono
onde tudo é memória luto sombra
Congelados nos postes de telégrafo
espectros de mensagens desgarradas
soterrando-se em Morse de azinhavre
cifram em sinais de brumoso código
a solidão das estações em ruína
duelam contra ventos redundantes
funcionários dementes engenheiros
severos cabos-de-turmas
Oligarcas
que à mesa pela noite jogam cartas
bebem uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente comem lauto
repasto convertido em florilégio
peões da estrada a martelar o sexo
regressando de abismos petrificam
desolado tributo que persegue
Mutuns Rio do Braço Água Preta
Santa Cruz Serra Verde Catolé
Cascata Pedras Pretas Poiri
Os atletas do trem soprando búzios
voam no pelo de cavalos doidos
Ante brasa e aço a dança dos foguistas
desperta cogumelos que deslizam
lentos por corredores de resina
e naufragam em crepitante pélago
Guarda-freios e maquinistas bêbados
escapando de sujos botequins
entoam sobre plataformas ermas
velhas canções de esperma itinerante
A fome lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes rosto braços pensamento
e agora por entre aldeias sanatórios
praças com animais mumificados
acena-lhes com moedas de crepúsculo
misturadas a ânsias confissões gemidos
que viajam na mala dos correios
pelos desvios despachando brisas
que sobressaltam como os telegramas.
(...)
A máquina quando geme
é a centelha sentindo a cento e vinte
a bandeira vermelha nas tangentes
era de fato um sinal de perigo
que ninguém viu descendo para Ilhéus
Árvore rio nuvem recolheram
espetáculos de roupas suarentas
e teceram no espaço dos horários
biografias murais de óleo e carvão
Dos trens de carga aqueles vagões negros
levam sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais de família minhas queixas
rolam por ribanceiras vêm como águas
de cheia
Torturadas
torturando
As armações dos verdes armazéns
delegam ao ferro forças irreais
para guardar sob zinco a sacaria
Safras de cacau
Vidas em coágulo.
III – Cemitério de esperança
a)
Nem mesmo estavas preparada
Estavas como caça fatigada
quando de ti veio se acercando
por entre ramos cedros sapucaias
desavindo rumor
Severidades
ensombrecendo leito matutino
Era preciso que o céu baixasse rápido
que tudo se cobrisse de argamassa
e se desse ao ferro cemitério
Tudo era preciso no momento
Era preciso que se abatesse a caça
e se fizesse sombra onde era sol
se apagasse o caminho de alegrias
por onde seguiam os que voltavam
b)
olhos mergulho agudos na folhagem
perfuro frondes de onde saltam rostos
cavados dentes olhos do barranco
aparições enfermas se debruçam
sobre desfiladeiro imaginário
que persigo em desembestada fúria
vozerio que se arma me acompanha
eleva-se como corpo trespassado
veloz dardo que passa e me detém
Gritam choram tremem dentes olhos
rostos qual pensa esteira de gemidos
lua despedaçada em mar distante
relâmpagos amargos que me fendem
o coração
a boca paralisa
c)
Eu sei
Tens até mágoa
Quando vens
Espetas teu apito verdejante
no céu na flora de abundante mel
madeira mineral que te rodeia
– e o louro e o fel e a mão oculta
e sobre a roxa amêndoa de cacau
que anuncia o verão
Vens
e despejas
tua usina de aromas
teu
calor
Eu sei
Tens vontade até de recuar
para o seio absoluto da manhã
e lá polir a crosta de ferrugem
arrancar-se depois do inanimado
chão da morte
como ave ou como estrela
súbito em voo raso sobre os campos
E a mim vens com teu peso
teu
galope
animal de pelagem coruscante
rolas sobre meu peito
meu semblante
sobre meus olhos hóspedes do vento
a de ontem vida tua enfermidade
Vens como se rompesse a noite em febre
açulando os outeiros acordando
pássaros empalhados nas ramagens
malgrado tudo
Sonho
capturado
vens banhada de luz e tempestade
tua massa colora os ambientes
embriaga o instante avança e nos eriça
cadáver hoje que se inventou bandeira
ao roçar de teu sopro
Teu
convívio
IV – Expectante reflexão
O trem
verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
O trem
ânsias de
infância/arrimo de velhice
O trem
rebanho de
acenos/rama flamejante
O trem
ágil
pesadelo/viação da aurora
O trem
transido
soluço/bandeira de sorrisos
O trem
flauta de
vidro/vertebrado canto
O trem
centopeia de
nuvem/potro de esmeralda
O trem
O trem de Água Preta
Dardo de som lançado ao infinitivo
rajada de luz atravessando o paraíso
me aduba o coração o sonho acorda
o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.
NO TREM, COM CENTURIÕES
O trem-de-ferro para na estação.
Dentro da classe de janelas muitas,
sento-me na cadeira de palhinha.
Tez denunciando terras e distâncias,
fazendeiros de bota e paletó
penetram no vagão suando auroras.
De cenho carregado, dependuram,
no alto, o chapéu, esporas e o revólver.
As mulheres destrincham seus rosários.
Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.
Compadres são de justas e conquistas
(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).
Colecionando safras e plantios,
transpiram suor e orvalho. Nas capangas,
dormem papéis e ganhos, calendários.
Nunca delas sairá a última moeda.
Confiam num outono redentor,
em dias mergulhados na lavoura.
Pacíficos, serenos e domésticos,
não bebem aguardente, nem sorriem.
Sonharam, não mais sonham, esses machos.
Em tardes mansas de remotos sítios,
sem traficar afagos e carícias,
encharcaram de filhos castos ventres.
Logo velhas histórias de jagunços
desfilam entre gáudios outonais:
de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,
do que morreu de tiro noutro rio
(quietos Mocambo, Almada. Catolé).
Logo se dá notícia alvissareira:
cacaueiros esplendem de fartura,
com fruto encachoeirando pelo tronco.
Fugindo de centelhas e fuligem,
em meu traje de seda cintilante,
abro a janela e me debruço. Sopro
minha flauta vermelha de metal,
com que costumo celebrar instantes
em que o dia derrama suavidades
e saúdo os guriatãs e os curiós,
que se abancam nos postes de telégrafo.
A manhã solidária me convoca
a mirar a beleza das campinas,
na luz que pauta a música do dia.
A máquina suspira, o trem esbarra.
Guardo a flauta no bolso da camisa.
Súbito casas, uma praça, letras.
No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:
a vida é bela, há mais que desfrutar.
(Excertos do poema FERROVIAURA; Poesia Reunida e Inéditos, SP: Escrituras, 2011)
Jane Hilda Badaró, Colheita de Cacau, Ilhéus-Bahia, s.d.



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