sexta-feira, 13 de março de 2020

GRIPE ESPANHOLA, O CORONAVÍRUS DE ONTEM

  "Agonia", pintura de Egon Schiele (1890-1918), óleo sobre tela

No momento em que uma pandemia, a do coronavírus, atinge grande número de países do planeta, causando até pânico em populações, parece oportuno recordar fenômeno igual que aconteceu, há cerca de 102 anos, em 1918, com muito mais efeitos danosos e catastróficos, se compararmos a população mundial à época (cerca de 2,1 bilhões), com a atual, que ultrapassa os sete bilhões; o panorama do desenvolvimento em inúmeras áreas, como a da ciência, dos transportes, das comunicações (física e entre pessoas), da medicina, da assistência no campo sanitário, da farmacologia, entre inúmeras outras. Basta dizer que ainda não existiam antibióticos e microscópios. A famosa gripe espanhola matou 21 milhões de pessoas (1% da população mundial), entre estas importantes nomes das artes, das letras e da política. Na Europa morreram abatidos pela gripe dois nomes das artes e das vanguardas; no Brasil, um presidente da República, eleito, mas sem conseguir tomar posse, e Olavo Bilac, tido na época como Príncipe dos Poetas Brasileiros.
A título de curiosidade e possível acréscimo informativo e cultural, abaixo reproduzo artigo que escrevi, em 2003 (não recordo a motivação de pauta), publicado ao lado de muitos outros textos, sobre a chamada "Gripe Espanhola", assim com letras maiúsculas, pelo tanto de pânico, preocupação e sofrimento que a também tachada de pandemia causou à população e às autoridades do país, enquanto durou o desastre, assim como junto, a título de ilustração, fotos das mais famosas vítimas, daqui e de alhures. Pela ordem, Guillaume Apollinaire, o guru das Vanguardas; Egon Schiele, consagrado pintor do expressionismo europeu; Rodrigues Alves, presidente eleito do Brasil, morto em 1919, e o poeta Olavo Bilac, glória do romantismo tardio no Brasil.

GRIPE ESPANHOLA

A EPIDEMIA QUE INFECTOU AS ARTES

Quando terminou em 1918, a Primeira Guerra Mundial deixou um saldo sinistro de oito milhões de mortos e 20 milhões de mutilados, porém, neste mesmo ano, mais assombroso ainda foi o rastro deixado pela epidemia da gripe espanhola, também chamada influenza: 21 milhões de mortos (então 1% da humanidade), no mundo, em apenas dois meses, mas esse total pode ter sido maior. O vírus se alastrou rapidamente, atingindo moradores das cidades e entre a população mais jovem. Na época, ainda não havia antibióticos e, também, microscópios, para detectar o vírus e estudá-lo. Por isso, entre estarrecido e impotente, o planeta assistiu à desenfreada matança.
Os sintomas de uma gripe normalmente são dores de cabeça e no corpo e congestão nasal. Com a espanhola foi diferente: os atingidos sofriam muito mais com os pulmões congestionados e enrijecidos, tornando o ato de respirar um gigantesco tormento, uma tarefa quase impossível, e os corpos ficavam de tal forma arroxeados que, segundo relatos, era difícil distinguir um branco de um negro.
A epidemia (depois chamada pandemia pela sua dimensão) representou uma dupla hecatombe, para a humanidade e para as artes. Embora tenha voltado ferido do campo de batalha, a morte do poeta Guillaume Apollinaire, com apenas 38 anos, na França, não se deveu ao petardo de obus que lhe atingira na cabeça no front, mas ao ser infectado pelo vírus da gripe espanhola, tornando-se a sua mais fulgurante vítima. Outra vítima de expressão, na Europa, foi o pintor e desenhista austríaco Egon Schiele, grande nome do expressionismo europeu nas artes plásticas.
Guillaume Apollinaire (1880-1918)

Dois foram os mortos ilustres brasileiros. Rodrigues Alves, que se elegera presidente da República para um segundo mandato (o primeiro tinha sido 1902-1906), não chegou a tomar posse; morreu fulminado pela gripe espanhola, em 16/01/1919, quando ainda não tinha sido o mal debelado. Impagável ironia: foi justamente ele quem instituíra a vacinação obrigatória, em campanha liderada por Osvaldo Cruz, causadora da chamada Revolta da Vacina de 1906. A outra foi o parnasiano Olavo Bilac, à época príncipe dos poetas brasileiros.

CIÊNCIA IMPOTENTE – A hecatombe representou até recentemente um desafio para a ciência. Somente 77 anos depois, em 1995, após custosas e fatigantes pesquisas, envolvendo cientistas de vários países, descobriu-se a causa. A única explicação nos anos imediatos restringiu-se aos motivos da rapidez com que o mal se espalhou pelos continentes. O avanço vertiginoso da gripe decorreu das idas e vindas dos soldados da Primeira Guerra Mundial. Para o front iam homens de todos os quadrantes da Terra. Doentes, voltavam para a terra natal, infectando mais gente. Na Europa, morreram milhões. Só nos Estados Unidos foram 675 mil, e no Brasil, 300 mil (17 mil, no Rio de Janeiro; oito mil em São Paulo). Em 1920, tão misteriosa como surgiu, a gripe desapareceu.
Depois de décadas, médicos do Instituto de Patologia das Forças Armadas dos EUA anunciaram a causa e a publicaram na revista científica Science. Para tanto, os virologistas conseguiram estudar as vísceras conservadas em formol de 43 mil soldados mortos pela gripe e autopsiados em 1918. Descobriram 30 espécimes do terrível vírus nos pulmões de uma das vítimas. Conseguiram isolá-los estudar seu material genético. Encontraram enorme semelhança com a gripe suína.
A epidemia ganhou o nome de espanhola porque se pensou inicialmente que tivesse se originado na Espanha, mas hoje se sabe que ela surgiu nos Estados Unidos, tendo-se registrado o primeiro caso no estado de Kansas, em março de 1918. Supõe os pesquisadores que o vírus tenha saído de um chiqueiro de porcos, embora (asseguram) o vírus da gripe quase sempre esteja presente nos corpos de aves. Admite-se que os suínos de Kansas comeram dejetos de aves da região e passaram o vírus para seu dono. Supõe-se que a gripe espanhola tenha sido causada por mutação de microorganismo que ataca os porcos.
Rodrigues Alves, morto em 01/1919

Era a primeira vez que se observava o vírus causador da pior doença que já atingiu a humanidade, segundo um dos pesquisadores.
As pesquisas continuam, porque o vírus a classe científica não se dá ainda por satisfeita. Pesquisadores da Escola William Dunn de Patologia, de Oxford, pretendem reconstruir o vírus da gripe espanhola, porque desejam descobrir as razões de ele ter sido tão letal, como também obter informações que possam ajudar a desenvolver métodos de combate a futuras pandemias.
A GRIPE NO BRASIL – Segundo relatos da época, a epidemia entrou ao Brasil em setembro de 1918, pelo Rio de Janeiro, logo depois da chegada de um navio com imigrantes vindos da Espanha, mas houve relatos de marinheiros que sentiram estranhos sintomas a bordo de um navio ancorado no porto de Recife. Em novembro de 1918, a doença se espalhara por vários pontos do território nacional, atacando principalmente as cidades portuárias.
É dantesca a narrativa do que acontecia. Famílias desesperadas jogavam seus mortos na rua, temendo contrair a doença. Cadáveres se empilhavam por avenidas e ruas, e presidiários foram convocados para servir de coveiros, tão grande era o serviço nos cemitérios. Bondes circulavam abarrotados de corpos, as igrejas se enchiam de pessoas clamando por ajuda, multiplicavam-se as procissões e as preces pela sorte dos vivos.
No Rio, o combate à epidemia foi comandado pelo cientista Carlos Chagas, embora a classe médica tenha ficado entre alarmada e confusa. Diante do inusitado, não sabendo o que receitar, indicavam canja de galinha às vítimas. E não faltava jornal recomendando tratamento à base de cachaça com limão ou uísque com gengibre, em noticiário a que não faltava o intenso movimento nos cemitérios. Em Porto Alegre, foi criado um cemitério especialmente para as vítimas da gripe espanhola. (FM).

(FLORISVALDO MATTOS - ARTIGO PUBLICADO NO CADERNO CULTURAL DE A TARDE, EDIÇÃO DE 30/08/2003).
Poeta Olavo Braz dos Guimrães Bilac (1865-1918)

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