quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Giovanni Ricciardi entrevista João Cabral, 1988

   Poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto,1920-1999

Homenagem ao poeta JOÃO CABRAL

Minha entrevista

Giovanni Ricciardi

Qual é sua sua origem?
Eu nasci em Janeiro de 1920 no Recife. Nessa época, meu pai era senhor de engenho; era político também, mas quando veio a Revolução de 30, o governador, que era amigo dele, foi derrubado, de forma que, sendo advogado, foi se dedicar a ser consultor jurídico na Associação Comercial, depois teve cartório...
Sob o ponto de vista da família, sou descendente de famílias de plantadores de cana de toda a vida. Eu não nasci no engenho por uma casualidade, mas devia ter nascido no Engenho Poço. Nasci no Recife, mas passei a primeira infância no Engenho Poço, que era da família. Depois que a família vendeu esse engenho, meu pai arrumou outro no município de Moreno. Praticamente, até os dez anos eu fui menino de engenho, como o Zé Lins. Aquele livro do Zé Lins, Menino de engenho, eu tenho a impressão de que é a minha infância.
A origem é essa. O Gilberto Freire chamava a isso a "aristocracia canavieira": não era aristocracia, que no Brasil nunca houve aristocracia, eram famílias tradicionais. Pernambuco era o maior produtor de cana-de-açúcar, de forma que até meados do século passado, quando vieram as usinas e industrializaram o açucar, havia essa classe proprietária de engenhos, que foi sendo absorvida pouco a pouco. Foi havendo uma concentração capitalista na mão das usinas, e, praticamente, o engenho bangüê desapareceu. Pelos dois lados, eu descendo dessa classe açucareira decadente. E exatamente aquele problema que o Zé Lins mostra em Bangüê, Fogo morto e Usina.

Desses "verdes anos" — para manter os termos de José Lins do Rego —, desse período, qual é a memória poética?
Isso é uma coisa muito engraçada. Eu me mudei para o Rio nas vésperas de fazer 23 anos; vim para prestar concurso para a diplomacia. Passei; em 1945 fui nomeado diplomata, comecei por Barcelona e, praticamente, a partir dai deixei de viver no Brasil.
No principio, minha poesia é uma coisa muito intelectual: eu estava ainda perto demais de Pernambuco. Em O cão sem plumas, que é de 1950, minha poesia poderia ter sido escrita por um sujeito nascido no meio do oceano Atlântico ou nascido na Europa, na África, na Ásia ou em qualquer lugar. Era uma poesia inteiramente cosmopolita. E em O cão sem plumas, que é sobre as populações miseráveis do Recife, começa a presença de Pernambuco em minha obra. Eu já vivia na Espanha nesse tempo. Consegui falar de Pernambuco somente depois que eu fui para o exterior. Com a passagem do tempo, essa coisa de Pernambuco está cada vez mais presente na minha obra. Escrevi O rio, que é uma narração como se fosse a memória do Capibaribe; Paisagens com figuras, com metade dos poemas sobre Pernambuco; Morte e vida severina, que é imaginado no Nordeste; Dois parlamentos e A escola das facas são exclusivamente sobre Pernambuco. Eu sinto que a presença de Pernambuco pouco a pouco foi-se fazendo maior, cada vez está mais forte.

Que tipo de educação você recebeu?
Eu e meu irmão mais velho fizemos todos os estudos, todo o curso secundário com os irmãos maristas no Recife. Meus pais eram muito liberais. Apesar de o colégio ser católico e de ter uma porção de exigências, meu pai e minha mãe nunca se interessaram por assuntos de educação; eles sabiam que nós tínhamos boas notas, que estávamos passando. O colégio era uma coisa a que a gente ia todo dia e não trazia para casa. Eu via pais de outras crianças que conviviam com os irmãos maristas, mas meus pais nunca foram beatos. Eram oficialmente católicos, mas do tipo que não vão à missa... Confesso que para mim foram os anos mais desagradáveis esses em colégio marista. Até hoje há um pesadelo que recorre: eu voltando do interior para o Recife, para recomeçar as aulas. Íamos anualmente durante as férias, que nesse tempo eram longas, para o interior, para o engenho. Quando eu tenho um sonho de felicidade é eu voltando pro engenho, apesar de adorar Recife.

Quais os primeiros livros que lembra ter lido?
Papai era um bom leitor; os primeiros livros que eu li, quando era menino, eram de aventuras. Depois, também houve a época do livro policial. E Eça de Queirós e outros. O primeiro livro de prosa, sem ser romance, que eu li foi O Egito, de Eça de Queirós, que é um livro fascinante, interessantíssimo.
Aos 18 anos, comecei a conviver com os amigos do círculo literário lá do Recife; então já sabia francês. Havia um mais velho que nós, que era um homem muito inteligente e muito culto — o Willy Lewin. Isso foi antes da guerra, estou falando de 1938, 1939, por aí. Willy Lewin tinha tudo da literatura francesa moderna, de forma que em 1938 eu já lia os surrealistas, por isso essa marca surrealista no meu primeiro livro, porque o ambiente em que nós vivíamos era inteiramente favorável à poesia surrealista. Mas, ao mesmo tempo, havia em meu temperamento qualquer coisa de construtivista que me dava uma certa repugnância por essa escrita automática do Surrealismo.
Nesse grupo de intelectuais que eu freqüentava, havia também um grupo de artistas, que me emprestaram os livros de Le Corbusier: esteticamente a pessoa que mais importância teve em minha obra. Eu tive grande influência de Valéry, mas a sua poética conseguiu me interessar, me prender e até hoje me impressiona, porque antes eu tinha lido os livros de Le Corbusier sobre arquitetura. A partir do meu segundo livro foi que eu entrei por esse caminho intelectual e racional. Nessa época, comecei a me interessar pela poesia moderna. No colégio, a poesia que nos davam a ler era uma coisa que me tirava completamente o gosto da poesia; em geral, eles chegavam até os parnasianos. Nós fazíamos análise lógica com Os Lusíadas, de Camões, de forma que isso tudo me deu um enjôo de poesia. Eu não entendia; como é que o sujeito perde tempo fazendo isso?
Aos dezoito anos, mais ou menos, eu li as primeiras coisas do Manuel Bandeira. Eu vi que a poesia podia ser outra coisa. Foi uma revelação para mim.
O colégio me tinha estragado o gosto pela poesia com o soneto, com o decassílabo. Até hoje o único decassílabo moderno que eu consigo ler com prazer é o verso de Marly de Oliveira. Quando o próprio Manoel Bandeira, o próprio Vinícius começam a fazer sonetos, eu tenho a impressão de que ninguém pode se livrar de Camões; eu sinto ressonâncias neles de Camões. No caso de Marly é diferente: como ela viveu na Itália, tem muito mais a influência do decassílabo de Petrarca do que do decassílabo camoniano.
Eu escrevi um livro, Educação pela pedra, já na Suíça, em que usei um verso mais comprido, mais irregular, mas fiz questão de não por nenhum decassílabo. Fiz o verso em volta de nove ou onze silabas. Se existe algum decassílabo é porque meu ouvido é muito ruim e ele passou sem eu notar.

Considera seu primeiro livro publicado um sucesso, um insucesso, um marco determinante em sua vida?
Sim, foi publicado ainda em Pernambuco, chama-se Pedra do sono. É essa coisa que eu lhe dizia: um negócio de aparência surrealista, mas em que há muita construção, não construção formal, mas construção no sentido de organização. Meus amigos escreveram sobre o livro lá no Recife. Quando me mudei para o Rio é que eu descobri uma coisa extraordinária: que havia nesse tempo um jovem crítico em São Paulo, um pouco mais velho do que eu, que vive ainda, felizmente, o Antônio Cândido. Quando cheguei aqui no Rio, em 1943, o Carlos Drummond me perguntou: “Você leu o artigo do Antônio Cândidos sobre seu livro?" Eu nunca tinha ouvido falar nele. O Antônio Cândido, de longe, sentiu essa coisa, essa aversão minha por esse laissez-aller do Surrealismo e disse: "É um livro de um poeta consciente e altamente construtivo"; e o chamou então de cubista, porque o Cubismo é realmente uma reação formalista contra aquele informalismo dos impressionistas e dos pós-impressionistas.

Houve em sua vida uma encruzilhada, um acontecimento que o tenha marcado determinantemente?
Na minha vida, certas coisas foram muito importantes: o convívio com esse grupo jovem do Recife, principalmente com o Willy Lewin, e depois, quando me mudei para o Rio, o convívio com Joaquim Cardoso, que era um homem de multa cultura, um poeta extraordinário. Era engenheiro em Pernambuco, mas, por motivos políticos, o interventor no Estado — essa época era a da ditadura de Vargas — o expulsou de Pernambuco; então, ele se mudou para o Rio. Aqui eu o via diariamente: era um homem extraordinário, tinha quase a idade de meu pai. Cardoso me abriu os horizontes sobre a Ditadura, de uma maneira fantástica. Esses dois homens foram básicos na minha vida.
Qual a relação entre a "carreira" de poeta e a de diplomata?
Ser diplomata é uma vantagem e uma desvantagem para o escritor. Uma vantagem, porque abre horizontes culturais. Vivi muitos anos na Espanha, devo imensamente à literatura espanhola. Vivi na Franca, na Inglaterra, na Suíça, na América Latina. A cada país onde estive devo alguma coisa. O lado negativo é o seguinte: ser diplomata significa viver permanentemente numa língua estrangeira. O sujeito não pode viver o dia todo falando uma língua e depois escrever noutra. Tanto que é muito raro sair um grande escritor da carreira diplomática. Há grandes escritores que foram diplomatas, mas foram diplomatas de passagem, como Octavio Paz, Neruda, Vinícius de Moraes, que foi diplomata de carreira mas que nunca levou a carreira a sério.

Como é o seu processo criativo? Como nasce um texto? Poderia exemplificar?
Todo mundo se considera "inspirado", fala-se muito em inspiração, essa coisa. Inclusive o Carlos Drummond, numa entrevista, dizia que eu não tinha razão nessa coisa de procurar ser lúcido e consciente e banir a inspiração; então cita uma coisa de Manuel Bandeira que, evidentemente, foi uma boutade: que era preciso inspiração para tudo, inclusive para atravessar a rua e não ser apanhado por um automóvel. Valéry dizia: "Qual a pergunta mais profunda que se pode fazer ao ser humano? Pour quoi ai-je pensé a cela! Ele disse que isso era coisa que ninguém podia explicar. Porque você pode, sociologicamente, dizer por que é que o Zé Lins escreveu aquele romance, por que o Carlos Drummond escreveu aquela poesia sobre certas coisas, mas não pode dizer precisamente por que ele usou aquelas palavras ou escreveu aquele romance.
Eu confesso que não tenho nenhum interesse por inspiração e procuro mesmo anular a inspiração. Surge um assunto, eu anoto. Um poema meu que está em A escola das facas é sobre o Engenho Moreno, que foi de minha família. É um engenho muito bonito; a casa-grande, todo mundo mostra como modelo de arquitetura, mas é a coisa mais contrária a arquitetura dos engenhos. É muito bonita para quem quer um palácio na cidade, não é para um engenho. Quando Pedro II foi ao Recife, viajou pelo interior e se hospedou em Moreno. Eu, como não tenho nenhuma simpatia por Pedro II nem pela arquitetura da casa-grande de Moreno, não sei por que, juntei as duas coisas: a frieza arquitetônica daquela casa-grande e a frieza com que Pernambuco recebeu o imperador — os pernambucanos sempre fizeram oposição ao Império. Se Pernambuco tivesse gostado do "déspota manso", como eu chamo o imperador não o teria hospedado numa casa daquela frieza, teria hospedado numa daquelas casas aconchegantes do Recife ou de outros engenhos.
Eis o meu processo: primeiro me vem a ideia do poema, e eu anoto; depois me vem a ideia da forma, do desenvolvimento do poema, e faço um esboço; depois trato aquilo em poema, metrifico.
Eu não posso dizer que essas idéias do Engenho Moreno e de Pedro II tenham vindo juntas. Apenas, num momento qualquer, eu pensei na frieza da arquitetura da casa-grande; tempos depois, pensei, porque sou pernambucano, em juntar as duas coisas.
Eu não sou desses que sentam a mesa e escrevem, porque foram possuídos. A ideia de escritor que se tem até hoje é profundamente romântica. Veja está estátua de um escultor paulista que eu ganhei na Bienal Nestlé pelo conjunto da obra: representa Calíope, a musa da Literatura, uma mulher possuída por alguma coisa, agitada pela ventania!

Por que você escreve?
Por que escrevo é um negócio complicado... Eu tenho a impressão de que a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser — e o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica —, ou por falta de ser.
Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial. Às vezes, eu escrevo porque quero dizer determinada coisa que eu acho que não foi dita; às vezes, porque me interessa que conheçam meu ponto de vista. Às vezes, escrevo também por prazer.
Como nasceram "O cão sem plumas" e "Morte e vida severina"?
'Depois de Psicologia da composição, eu tinha decidido não escrever mais. Era vice-cônsul em Barcelona e realmente tinha ficado muito tempo sem escrever. Um dia, na biblioteca do consulado, encontrei uma revista de economia política, o "Observador econômico e financeiro", muito importante naquela época, que trazia uma estatística sobre expectativa de vida. Eu descobri que na cidade do Recife a expectativa de vida era de 28 anos de idade, e na Índia, que é um país do qual todo mundo tem pena — as senhoras pernambucanas fazem festa pra ajudar os miseráveis da Índia —, a expectativa de vida era de 29 anos, mais alta do que no Recife. Esse negócio me abalou enormemente, então eu escrevi O cão sem plumas para mostrar a vida dos alagados de Recife, como quem diz: já abandonei a literatura e fui escrever esse negócio assim pra deixar o meu protesto.
Morte e vida severina que escrevi porque Maria Clara Machado me pediu para o seu grupo de teatro, o Tablado, um auto de Natal. Eu fiz Morte e vida severina por encomenda.
Talvez o fato de eu viver fora de Pernambuco tenha-me feito voltar mais para meu Estado. Eu saí de lá já com 23 anos. Viver fora do Brasil eu superei perfeitamente; viver fora de Pernambuco é coisa que até hoje não superei.

E agora, vivendo no Rio?
Vivendo no Rio continuo fora de Pernambuco.

Lembrando um pouco o poema "Catar feijão" de A educação pela pedra, sua poesia poderia ser definida como uma poesia "pedregosa"?
Essa impressão de pedregosa que dá minha poesia vem do fato de que eu não tenho vocação musical, de forma que minha poesia não tem melodia; talvez ela tenha excesso de ritmo, porque dos elementos da música o único a que eu sou sensível é o ritmo e por isso, talvez, dê essa impressão de pedregosa, Também um pouco porque minha região é uma região de um Brasil pobre; o sertão de Pernambuco é praticamente um deserto, de forma que, talvez, dê ao escritor nordestino essa pedregosidade que encontra em mim e em outros. Também não é para generalizar. Eu sou da Zona da Mata, como Gilberto Freire, Zé Lins do Rêgo, e eles não eram nada pedregosos. Em compensação, Graciliano, que era mais do sertão, é um pouco pedregoso, como também José Américo de Almeida. Eu sou da Zona da Mata de Pernambuco, que é uma zona amável, chovida, verde; mas, ao mesmo tempo, tenho antepassados sertanejos e, desde menino, lá em casa, o sertão era um valor positivo. Talvez tenha sido por isso ou pelos assuntos que eu escrevo.

Quando João Cabral não escreve poesia, está em crise?
Tenho a impressão de que eu nunca tive crise de criação literária. Acontece que criar, escrever, me cansa muito. Escrevo o menos que posso, porque realmente é um trabalho esgotante para mim. Como diziam Joaquim Cardoso — Cardoso escreveu muito pouco —, é muito melhor ler do que escrever. Minha mania, minha vida, é a leitura. Ocasionalmente eu saio da leitura para escrever, mas em geral não é por uma necessidade interior, é porque eu quero fazer determinada coisa, então me ponho a trabalhar. Como eu disse, esse trabalho é multo penoso; eu o evito o mais que posso.

Você disse que não acredita em inspiração, mas agora está dizendo: "Eu evito (o trabalho de escrever) o mais que posso." Quer dizer que algumas vezes você não pode deixar de escrever?
Em geral, eu tenho a impressão de que eu posso não escrever. Eu escrevo um pouco por determinação, eu não sou um sujeito "possuído", forçado a escrever. Eu escrevo porque tenho a impressão de que certas coisas não foram ditas, certos assuntos não foram tratados.

Existe o prazer da escrita?
Não, prazer propriamente não. Quando um homem está absorvido numa coisa, inteiramente dedicado e com intensidade, se isso se pode chamar de prazer, eu acho que existe o prazer da escrita. Se escrever é difícil, provoca sofrimento, se a pessoa volta a escrever, sabendo que vai encontrar outra vez aquelas dificuldades, é porque existe uma necessidade. Para mim é uma tarefa muito penosa, é um negócio que me esgota, e eu preciso estar em forma e com muita disposição pra poder me interessar, para escrever. Eu tenho a impressão de que eu poderia ficar perfeitamente sem escrever.

Houve em sua vida de escritor um acontecimento extremamente gratificante ou frustrante?
Não, acho que nem uma coisa nem outra. Eu tive a sorte de ser bem recebido pela crítica desde que apareci. Apesar de estar vivendo fora do Brasil, de passar toda a vida fora, sinto que minha poesia teve sempre uma boa repercussão aqui, e isso é gratificante. Quando houve, pelo Teatro Universitário de São Paulo, a representação de Morte e vida severina, meu auto de Natal, o êxito aqui foi fantástico, foi um acontecimento teatral considerável na vida dos país, mas eu estava na Suíça e só tive conhecimento disso depois. Quando se tem conhecimento tardio de um sucesso assim, a coisa chega um pouco fria, não sobe à cabeça. Parece de outro.

Você fala multo em Recife e na Espanha, Então estes são os pretextos de sua poesia?
A Espanha, porque é o país em que eu, como diplomata, mais tempo vivi: um total de 13 anos. Estive lá seis vezes distintas: duas vezes em Barcelona, duas em Madri, duas em Sevilha. Sevilha foi a cidade que, até hoje, mais me impressionou, onde eu gostaria de ter nascido, onde eu gostaria de viver. Pra mim é o ideal da cidade. Mas eu fiquei surpreendido quando fiz o levantamento da quantidade de poemas pernambucanos que escrevi. Eu tenho a impressão de que eu escrevi talvez metade de minha obra sobre temas pernambucanos, ou talvez mais.

Qual é o papel do imprevisto em seu trabalho criativo?
Isso eu não posso dizer, porque não sei. A vida da gente a gente não pode analisar. Eu não sei por que é que escrevi um poema sobre tal coisa e não sobre outra. Eu escrevi muito sobre a música, a dança e o cante da Andaluzia, o flamengo. Por que não escrevi sobre a sardana de Barcelona? Isso aí eu não sei.

Você nunca pensou em "pensar" a origem de seus poemas?
Isso é um problema. Só daqui a anos, quando os computadores estiverem muito aperfeiçoados, talvez os neurologistas possam traçar a origem do pensamento de qualquer ser humano. Por enquanto é impossível. "Por que não pensei nisso?" Ninguém pode dizer: "Pensei nisso porque ontem eu comi tal coisa, li tal livro..." É uma coisa inteiramente arbitrária.

Qual é o poema, o livro dos outros que gostaria de ter escrito? Por quê?
O livro de poemas que eu gostaria de ter escrito? Flores do mal, do Baudelaire, o livro que me abalou mais profundamente. Victor Hugo, quando escreveu a Baudelaire agradecendo o livro, disse que ele trazia para a poesia francesa un frisson nouveau, ou qualquer coisa assim. Para mim, foi o sujeito que produziu o impacto mais forte de tipo poético. Eu comecei a sentir o que significava poesia com a leitura de Baudelaire, que fiz muito moço.

Qual é o lugar de João Cabral na literatura brasileira?
A literatura brasileira tem sempre, em cada época, uns out-siders, sujeitos que estão fora dessa tradição romântica que dá o poeta como inspirado e a poesia como eloqüência. Eu sou um pouco de fora, eu me sinto um pouco marginal na tradição da lírica luso-brasileira, assim como o foram um Sousândrade no tempo do Romantismo e, mais recentemente, Augusto dos Anjos.

Como o cotidiano, a família, os filhos, o trabalho influenciam seu trabalho literário?
Devem influenciar indiretamente. Eu não acredito milito na poesia confessional, não faço poesia para falar de mim. Devem influenciar porque nós somos influenciados por ludo. Um filho é assunto de preocupação para mim, mas não é assunto literário.
Entre as palavras seguintes escolha três e diga alguma coisa sobre elas: amor, cidade, poder, povo, solidão, solidariedade, prazer, violência, amizade, noite, silêncio.
Esses termos já são em si poéticos; eu fujo disso. Amor...
Meus poemas, falando em mulher, não falam em amor. Eu não acredito em poesia feita com palavras abstratas; eu prefiro a palavra concreta, e o que eu vejo de concreto aí? Cidade, povo... O resto são palavras abstratas. A poesia se faz com coisas ou com vocábulos concretos.

Mas por que escolheu cidade? Só por ser uma palavra concreta ou por definir alguma ressonância?
Sou o menos urbano dos homens, não gosto de viver na cidade, meu ideal seria viver num engenho de açúcar. Não gosto de cidade. Essas palavras que escolhi são palavras que eu já usei em poemas. As outras são essas palavras abstratas, não tem lugar no poema, não.

O que é o sucesso para você?
Como vivi fora do Brasil, nunca, ou muito raramente, experimentei pessoalmente contato com o sucesso. Quando me comunicavam que eu tinha obtido um prêmio ou um sucesso literário qualquer, eu recebia a notícia com tanto atraso que a emoção já tinha desaparecido. Se eu participasse da vida literária aqui, talvez pudesse dizer alguma coisa, mas eu vivi sempre como se fosse na lua.
Há muitos tipos de sucesso. Num país como o Brasil, com população inculta tão grande, o sucesso é a apreciação das pessoas mais lúcidas. Não creio necessário para o escritor brasileiro; ele deveria interessar à massa.

Quando você escreve, percebe alguma auto-censura, tem medo de se revelar, ou é extremamente sincero?
Não acredito em poesia feita com a minha intimidade, nem em poesia feita como confissão: eu escrevo sobre as coisas. Não há nisso nenhuma auto-censura. Se prefiro escrever sobre uma bandeja a escrever sobre a solidão, não é porque esteja me auto-censurando. Essa palavra "solidão" é muito vaga para ser usada em poesia. Se eu usar na poesia uma palavra como "maçã", todo mundo vai entender o que eu digo. Se eu usar "tristeza", cada pessoa vai atribuir a essa palavra um sentido diferente. Pra angústia, não há palavra mais vaga, cada pessoa dá a "angústia" o nome de um estado de espírito diferente de outro. Ao passo que ninguém chama a maçã de laranja. , .....

Peço-lhe um auto-retrato.
Essas coisas vagas... A profissão de diplomata foi uma coisa acidental. Tanto poderia ter sido advogado, como poderia ter sido médico. O poeta João Cabral poderia ter sido crítico ou romancista, se, no princípio da minha carreira, o meio em que eu vivia não valorizasse tanto a poesia, como era o caso daquele núcleo de que falei — todos eles eram poetas. Se eu tivesse convivido com o Zé Lins do Rego, talvez eu tivesse sido romancista; se tivesse convivido com Gilberto Freyre... Ele era primo-irmão de minha mãe, mas eu nunca o freqüentei.
Se eu fosse pintor, nunca pintaria auto-retrato. Alias, se eu fosse pintor, seria um pintor abstrato, porque eu não posso fazer um retrato meu: seria falar de mim e não acredito que minha intimidade possa interessar a ninguém; por isso, eu evito na poesia de falar essas coisas. Não procurei consolidar em palavras o que eu acho de mim. O que eu acho de mim é uma quantidade de idéias que eu nunca expressei. Elas devem agir indiretamente quando eu falo, por exemplo, de um objeto concreto qualquer. Quando eu digo "concreto", é no sentido gramatical. Eu me lembro que na escola aprendi qual é a diferença entre substantivo concreto e substantivo abstrato. "Tristeza" é um substantivo abstrato, "maçã" é um substantivo concreto — palavra que é percebida pelos sentidos. Essa é que deve ser a matéria-prima do poema. O sujeito pode expressar tristeza sem usar a palavra "tristeza". "Tristeza", "melancolia", "angústia" e outras palavras são muito vagas. E a literatura tem de ter uma linguagem a mais concreta possível.
Eu digo que, se eu fosse pintor, seria um pintor abstrato, geométrico, construtivista. Um poema é um objeto que eu crio. Pra mim, um quadro do Malevitch ou do Mondrian ou de um pintor assim é uma coisa mais concreta do que um pôr-do-sol. Na poesia abstrata, geométrica, o sujeito, em vez de estar falando de si, está criando coisas. Quando eu escrevo um poema, também não escrevo pra falar de mim, eu escrevo para criar um objeto.
A base de toda a obra de arte é o que os cubistas chamavam "o equivalente plástico da realidade": o sujeito não precisa pintar o objeto, ele pode sugerir esse objeto indiretamente, por meio de outros objetos; é mais ou menos o que Eliot chamava "correlativa objetiva”.

Rio de Janeiro, setembro de 1988.

Nenhum comentário:

Postar um comentário