BAHIA DE TODOS OS SANTOS
Jorge de Lima
Bahia,
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!
Para me ver chegar,
os sobrados e as igrejas
subiram nos teus montes e me espiam
de cima com os olhos das janelas acesas.
os sobrados e as igrejas
subiram nos teus montes e me espiam
de cima com os olhos das janelas acesas.
É o amante que chega!
E as virgens loucas já o esperam
com as lamparinas da Parábola.
E que noite gostosa, que colcha macia,
nos cobre a nós ambos, Bahia!
Teu amigo vem saudoso de ti e estende as mãos
aos pedaços melhores de teu corpo:
tuas ladeiras, teus montes,
as curvas gostosas da cidade mais bonita
do Brasil!
E as virgens loucas já o esperam
com as lamparinas da Parábola.
E que noite gostosa, que colcha macia,
nos cobre a nós ambos, Bahia!
Teu amigo vem saudoso de ti e estende as mãos
aos pedaços melhores de teu corpo:
tuas ladeiras, teus montes,
as curvas gostosas da cidade mais bonita
do Brasil!
És tão cheia de altos e baixos,
Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimenta-de-cheiro.
Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimenta-de-cheiro.
Lamento o mau gosto dos teus turistas
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile asfaltada,
de tuas avenidas que o Seabra alargou.
Tu, como toda mulher, tens os lugares mais sombrios, mais gostosos:
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile asfaltada,
de tuas avenidas que o Seabra alargou.
Tu, como toda mulher, tens os lugares mais sombrios, mais gostosos:
Baixa dos Sapateiros!
Beco do guindaste dos padres!
Barroquinha!
Tabuão!
Beco do guindaste dos padres!
Barroquinha!
Tabuão!
Bahia de Todos os Santos,
por que os teus santos
não quiseram mudar o curso inglório
de meus 17 anos, nos quais
os teus professores retóricos,
os teus médicos literatos,
injetaram a ampola da água suja
de doutrinas sem fé?
E depois de tanto tempo perdido,
de tanto caminho errado,
teu amigo voltou para os teus braços abertos.
por que os teus santos
não quiseram mudar o curso inglório
de meus 17 anos, nos quais
os teus professores retóricos,
os teus médicos literatos,
injetaram a ampola da água suja
de doutrinas sem fé?
E depois de tanto tempo perdido,
de tanto caminho errado,
teu amigo voltou para os teus braços abertos.
Perdoa! Perdoa! Bahia!
Eu vim rezar nos teus santuários,
eu já sou um homem que tem
afetos por quem pedir e rezar.
E tu que me ensinaste a crer quando eu era criança,
e depois a descrer,
e hoje a crer outra vez... eu sou um
rio torto e tu és a Bahia do Salvador!
Cobre-me com o lençol de tua noite esburacada
de estrelas, em que a lua abriu um rombo maior.
eu já sou um homem que tem
afetos por quem pedir e rezar.
E tu que me ensinaste a crer quando eu era criança,
e depois a descrer,
e hoje a crer outra vez... eu sou um
rio torto e tu és a Bahia do Salvador!
Cobre-me com o lençol de tua noite esburacada
de estrelas, em que a lua abriu um rombo maior.
Bahia,
para olhar as nossas núpcias,
cobre-me com o teu perdão, Bahia!
Tu és católica, tu és a fé, tu és a âncora do
Nordeste; tu és a sempre nova.
Tu és a rainha, tu és a cidade que mostra ao que chega
ao invés de arranha-céus, cruzes e cruzes,
de braços estendidos para os céus,
e na entrada do porto,
antes do Farol da Barra,
o primeiro Cristo Redentor do Brasil!
para olhar as nossas núpcias,
cobre-me com o teu perdão, Bahia!
Tu és católica, tu és a fé, tu és a âncora do
Nordeste; tu és a sempre nova.
Tu és a rainha, tu és a cidade que mostra ao que chega
ao invés de arranha-céus, cruzes e cruzes,
de braços estendidos para os céus,
e na entrada do porto,
antes do Farol da Barra,
o primeiro Cristo Redentor do Brasil!
Bahia de ruas santas, de Santo Antônio da Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
dos fortes bem-aventurados, de São Marcelo, de Santa Ana,
de Santo Antônio da Barra,
Bahia do Teatro São João e do cinema São Jerônimo.
Bahia.
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
dos fortes bem-aventurados, de São Marcelo, de Santa Ana,
de Santo Antônio da Barra,
Bahia do Teatro São João e do cinema São Jerônimo.
Bahia.
BAHIA DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS
Gilberto Freyre
Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas trepadas umas por cima das outras
casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num
retrato de revista ou jornal
(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda a Bahia é uma maternal cidade gorda
como se dos ventres empinados dos seus montes
dos quais saíram tantas cidades do Brasil
inda outras estivessem para sair
ar mole oleoso
cheiro de comida
cheiro de incenso
cheiro de mulata
bafos quentes de sacristias e cozinhas
panelas fervendo
temperos ardendo
o Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres parindo
cheiro de alfazema
remédios contra sífilis
letreiros como este:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para sempre! Amém!)
automóveis a 30$ a hora
e um ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando pulando tilintando
para depois escorrer sobre o asfalto novo
que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a terra encarnada de 1500)
gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira que cupim não rói)
sem rostos cor de fiambre
nem corpos cor de peru frio
Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
tudo à sombra das tuas igrejas
todas cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões sãojosés meninozinhosdeus
e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que
eu
O padre reprimido que há em mim
se exalta diante de ti Bahia
e perdoa tuas superstições
teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do
Bonfim
e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia de Todos os Santos
Salvador
São Salvador
Bahia
Negras velhas da Bahia
vendendo mingau angu acarajé
Negras velhas de xale encarnado
peitos caídos
mães de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os
meninos do Brasil.
Mulatas de mãos quase de anjos
mãos agradando ioiôs
criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando iaiás
dando cafuné nas sinhás
enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções enfeitados de rendas
estrelas marinhas de prata
tetéias de ouro
balangandãs
presentes de português
óleo de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
padres, negros, caboclos
Mulatas quadrarunas octorunas
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas-de-vento
corpos ardendo suando de gozo
Todos os Santos
missa das seis
comunhão
gênios de Sergipe
bacharéis de pince-nez
literatos que leem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa
mulatos de fala fina
moleques
capoeiras feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades
ruivos e bons
aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema
cacau.
casas trepadas umas por cima das outras
casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num
retrato de revista ou jornal
(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda a Bahia é uma maternal cidade gorda
como se dos ventres empinados dos seus montes
dos quais saíram tantas cidades do Brasil
inda outras estivessem para sair
ar mole oleoso
cheiro de comida
cheiro de incenso
cheiro de mulata
bafos quentes de sacristias e cozinhas
panelas fervendo
temperos ardendo
o Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres parindo
cheiro de alfazema
remédios contra sífilis
letreiros como este:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para sempre! Amém!)
automóveis a 30$ a hora
e um ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando pulando tilintando
para depois escorrer sobre o asfalto novo
que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a terra encarnada de 1500)
gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira que cupim não rói)
sem rostos cor de fiambre
nem corpos cor de peru frio
Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
tudo à sombra das tuas igrejas
todas cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões sãojosés meninozinhosdeus
e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que
eu
O padre reprimido que há em mim
se exalta diante de ti Bahia
e perdoa tuas superstições
teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do
Bonfim
e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia de Todos os Santos
Salvador
São Salvador
Bahia
Negras velhas da Bahia
vendendo mingau angu acarajé
Negras velhas de xale encarnado
peitos caídos
mães de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os
meninos do Brasil.
Mulatas de mãos quase de anjos
mãos agradando ioiôs
criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando iaiás
dando cafuné nas sinhás
enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções enfeitados de rendas
estrelas marinhas de prata
tetéias de ouro
balangandãs
presentes de português
óleo de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
padres, negros, caboclos
Mulatas quadrarunas octorunas
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas-de-vento
corpos ardendo suando de gozo
Todos os Santos
missa das seis
comunhão
gênios de Sergipe
bacharéis de pince-nez
literatos que leem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa
mulatos de fala fina
moleques
capoeiras feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades
ruivos e bons
aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema
cacau.
Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da Fonseca. Salvador: Fundação das Artes, 1990. 167 p.
LADEIRA DA MISERICÓRDIA
Godofredo Filho
É ladeira sem princípio
ou por princípio sem fim.
È ladeira que começa
onde eu quisera acabar.
ou por princípio sem fim.
È ladeira que começa
onde eu quisera acabar.
È ladeira da Bahia,
cruel ladeira perdida,
que por boca da ironia
se diz da Misericórdia.
cruel ladeira perdida,
que por boca da ironia
se diz da Misericórdia.
É ladeira da Bahia.
Por onde a traçaram vai
ou de súbito não vai,
torcida sobre seu corpo,
virada quase ao contrário,
canyon por onde os alíseos
se precipitam silvando
na trança das urupemas.
ou de súbito não vai,
torcida sobre seu corpo,
virada quase ao contrário,
canyon por onde os alíseos
se precipitam silvando
na trança das urupemas.
Que de sobrados fantasmas,
varandas ermas de sonho,
arcos, muralhas de sombra,
janelas, portais vazios,
molduras de pedra suja
sem apoio de mais nada,
com rios doidos de vento
saltando no etéreo golfo
do inútil azul das tardes!
varandas ermas de sonho,
arcos, muralhas de sombra,
janelas, portais vazios,
molduras de pedra suja
sem apoio de mais nada,
com rios doidos de vento
saltando no etéreo golfo
do inútil azul das tardes!
Ó vós que passais, ouvi-me
a efêmera e monocórdia
canção da negra ladeira
que é da Misericórdia.
a efêmera e monocórdia
canção da negra ladeira
que é da Misericórdia.
Misericórdia de quem?
Misericórdia por quê?
se eu só (quem lhe deu amor
obscuro mas imortal),
possa entender o desvairo,
a esconsa mágoa, o silêncio
que oprime seu sonho informe.
Misericórdia por quê?
se eu só (quem lhe deu amor
obscuro mas imortal),
possa entender o desvairo,
a esconsa mágoa, o silêncio
que oprime seu sonho informe.
Ai, quero cantar-te agora,
na solidão desta hora
que não voltará no tempo
- sombra vã da eternidade,
cantar-te o jugo, o tormento
que faz que durmas de noite
com pálpebras descoladas,
o obsidente sofrimento
que prendo na trama aérea
de meus versos incorpóreos.
na solidão desta hora
que não voltará no tempo
- sombra vã da eternidade,
cantar-te o jugo, o tormento
que faz que durmas de noite
com pálpebras descoladas,
o obsidente sofrimento
que prendo na trama aérea
de meus versos incorpóreos.
Também quisera na glória
contigo sobreviver,
como hoje, no desespero,
te incorporas ao meu ser
pelo verbo conviver.
contigo sobreviver,
como hoje, no desespero,
te incorporas ao meu ser
pelo verbo conviver.
Ó inverossímil ladeira,
que foste o íngreme caminho
por onde outrora subiram,
coléricos e espantados,
tantos negros sofredores
sob o relho dos feitores,
índios bravos, curumins,
ao suave clarão dos hinos
de pastorais cor de aurora
que iam a dessedentar-se
nas fontes do teu perdão.
que foste o íngreme caminho
por onde outrora subiram,
coléricos e espantados,
tantos negros sofredores
sob o relho dos feitores,
índios bravos, curumins,
ao suave clarão dos hinos
de pastorais cor de aurora
que iam a dessedentar-se
nas fontes do teu perdão.
Onde vive o teu perdão?
Ouço-te as vozes perdidas,
ou que das festas dos muros,
de teus paredões enormes,
vão singrando o dorso esquivo
da maré de teu silêncio:
são vozes de missionários,
alaridos de corsários,
esporas de bandeirantes,
lanças longas, arcabuzes
vazando o crânio da treva,
gemidos de agonizantes
nos postigos do Hospital,
saudade daquelas donas
do Santo Recolhimento,
os olhos postos no mar;
ou que das festas dos muros,
de teus paredões enormes,
vão singrando o dorso esquivo
da maré de teu silêncio:
são vozes de missionários,
alaridos de corsários,
esporas de bandeirantes,
lanças longas, arcabuzes
vazando o crânio da treva,
gemidos de agonizantes
nos postigos do Hospital,
saudade daquelas donas
do Santo Recolhimento,
os olhos postos no mar;
vozes bruscas de ouvidores,
de capitães, de Doutores,
de Primazes sonolentos,
e de Vice-Reis odientos;
e também, no teu mistério
das horas de amor celeste,
procissões de virgens brancas
entre aromas de alecrim,
gargantilhas de aleluia
em cadeirinhas de arruar,
e o amor que ali teve um dia
um rei mago de Ajudá.
de capitães, de Doutores,
de Primazes sonolentos,
e de Vice-Reis odientos;
e também, no teu mistério
das horas de amor celeste,
procissões de virgens brancas
entre aromas de alecrim,
gargantilhas de aleluia
em cadeirinhas de arruar,
e o amor que ali teve um dia
um rei mago de Ajudá.
Misericórdia por quê?
se a alva escorre sem ver,
nem redimir os amantes
que dormem pelo abandono
dos mornos beijos viscosos
no mar dos lençóis desfeitos.
se a alva escorre sem ver,
nem redimir os amantes
que dormem pelo abandono
dos mornos beijos viscosos
no mar dos lençóis desfeitos.
Misericórdia de quem?
se esmaga os rostos que dormem
ou sobre as pedras magoadas
eu piso gargantas súplices
de vozes que não escuto.
se esmaga os rostos que dormem
ou sobre as pedras magoadas
eu piso gargantas súplices
de vozes que não escuto.
Ah, quantos sábados tristes
do amor estival das terdes
não rolei nas pedras lisas
de teu ardente convite,
buscando Lalu dormindo,
afagando Durvalina,
ou, na carne incandescida,
sentindo a pua dos ossos
do prenúncio do esqueleto
de Eva Maria Fernandes.
do amor estival das terdes
não rolei nas pedras lisas
de teu ardente convite,
buscando Lalu dormindo,
afagando Durvalina,
ou, na carne incandescida,
sentindo a pua dos ossos
do prenúncio do esqueleto
de Eva Maria Fernandes.
E quantas noites ungidas
de lua escorrendo insone
sobre os desvãos de teu leito,
não prendi minh´alma enferma
nos muros de teu silêncio,
e tangido ao torvo anseio
de segredos que não digo,
na madrugada morrente
varando portais desertos,
trepei teus jiraus de espanto!
de lua escorrendo insone
sobre os desvãos de teu leito,
não prendi minh´alma enferma
nos muros de teu silêncio,
e tangido ao torvo anseio
de segredos que não digo,
na madrugada morrente
varando portais desertos,
trepei teus jiraus de espanto!
Ah, descesse eu em t
ais noites
teu funicular de angústia,
sob o riso avermelhado
da gengiva das janelas,
e amargo olvido buscasse
nas ilhas do mar do vinho.
ais noites
teu funicular de angústia,
sob o riso avermelhado
da gengiva das janelas,
e amargo olvido buscasse
nas ilhas do mar do vinho.
Ou então perquirindo o assombro
de horas tardas de vigília,
ouvisse teu longe canto
no cimo das turvas ilhas,
as ilhas do mar do vinho.
de horas tardas de vigília,
ouvisse teu longe canto
no cimo das turvas ilhas,
as ilhas do mar do vinho.
Onde andais, sombras fugidas
da angra de meu carinho?
Onde andais, sombras perdidas
Marfisa, Dalva, Marília?
da angra de meu carinho?
Onde andais, sombras perdidas
Marfisa, Dalva, Marília?
E as outras mais? Onde estão,
de clorose e de carmim,
glicínias da noite ardente
despetaladas por mim?
de clorose e de carmim,
glicínias da noite ardente
despetaladas por mim?
Sila, Silu, Clementina,
Eurides nos braços de Elza,
Zezé com seu filho morto,
cantando a canção de Ofélia...
Eurides nos braços de Elza,
Zezé com seu filho morto,
cantando a canção de Ofélia...
Juracy longa e fragílima,
Que amor abrasou na fulva
nevrose de consunções
e Judith, a flor do ciúme
que a noite acendeu no espanto
das convulsões fesceninas,
Judith que eu redimira
(ó alma, ó clarão da alma!)
Que amor abrasou na fulva
nevrose de consunções
e Judith, a flor do ciúme
que a noite acendeu no espanto
das convulsões fesceninas,
Judith que eu redimira
(ó alma, ó clarão da alma!)
Que no dezoito não vejo
na sombra o rosto de Stela,
nem Flaviana anoitece
na tarde de outra janela.
na sombra o rosto de Stela,
nem Flaviana anoitece
na tarde de outra janela.
Onde andais sombras sumidas,
Floriceia negra e tantas
que nunca tiveram nome,
espuma das turvas ondas
do mar da dissolução?
Floriceia negra e tantas
que nunca tiveram nome,
espuma das turvas ondas
do mar da dissolução?
Onde andais, sombras perdidas?
E tu, Leonor, pela cova?
Que tal isso lá, menina?
Melhor que nossa ladeira
com sulfa e penicilina?
Que tal isso lá, menina?
Melhor que nossa ladeira
com sulfa e penicilina?
No reino das águas frias,
quisera dormindo o rosto
de Dioneia Jesus Pires.
quisera dormindo o rosto
de Dioneia Jesus Pires.
Dioneia, dá-me essa taça,
quero beber por teus olhos
no reino das águas frias.
quero beber por teus olhos
no reino das águas frias.
Que vem do mar da ladeira,
entre ondas de urina e pedra,
borboleta comandando
o barco da perdição,
e eu, piloto dessa nave,
à doida rosa-dos-ventos
furando a bruma das saias
de Eva Maria Fernandes...
entre ondas de urina e pedra,
borboleta comandando
o barco da perdição,
e eu, piloto dessa nave,
à doida rosa-dos-ventos
furando a bruma das saias
de Eva Maria Fernandes...
Ó Nauta que vais escota,
suspende a vela que é tarde,
ó Nauta, vais naufragar:
nos penedos desses peitos,
nos baixios desses púbis,
o barco vai se afundar.
suspende a vela que é tarde,
ó Nauta, vais naufragar:
nos penedos desses peitos,
nos baixios desses púbis,
o barco vai se afundar.
Navegador solitário
dos óstios himenais,
não soçobres teu decoro
na fossa navicular.
dos óstios himenais,
não soçobres teu decoro
na fossa navicular.
Que longe o Porto dos Mastros,
onde alguém debalde espera
a nave que não virá!
onde alguém debalde espera
a nave que não virá!
Ó Nauta, que vai às ilhas
para esconder teu tormento,
não haverá nesses mares
a ilha do esquecimento?
para esconder teu tormento,
não haverá nesses mares
a ilha do esquecimento?
Que longe o Porto dos Mastros
e o brando lençol macio
da praia do Bogari!
e o brando lençol macio
da praia do Bogari!
Por aqui só excrescências,
detritos amoniacais
e, em decúbito dorsal,
untada de mornas galas
para estranhos esponsais,
a noiva dos formicidas
com seu bilhete fatal.
detritos amoniacais
e, em decúbito dorsal,
untada de mornas galas
para estranhos esponsais,
a noiva dos formicidas
com seu bilhete fatal.
Marise, Antônio sumiu.
Amália, a luz se apagou.
O riso daquela boca
o tintureiro lavou.
Amália, a luz se apagou.
O riso daquela boca
o tintureiro lavou.
Escorraçado, esse canto
buscando a torta ladeira
na crina das bebedeiras,
é o canto de um marinheiro
que mares azuis trocara
pelo Biscaia de treva
das pedras desta ladeira.
É um canto de amor desfeito
contrapontando o silêncio
da língua dos enforcados
na trave de teu banheiro.
buscando a torta ladeira
na crina das bebedeiras,
é o canto de um marinheiro
que mares azuis trocara
pelo Biscaia de treva
das pedras desta ladeira.
É um canto de amor desfeito
contrapontando o silêncio
da língua dos enforcados
na trave de teu banheiro.
Ó Dioneia Jesus Pires
afogada na escureza
das ondas do mar sem fim,
também eu vou me afundando
nas ondas do mar do peito
de Eva Maria Fernandes.
afogada na escureza
das ondas do mar sem fim,
também eu vou me afundando
nas ondas do mar do peito
de Eva Maria Fernandes.
Ladeira do meu tormento!
Fojo de animais bifrontes,
pobres cervos desgalhados
que João Batista apascenta
nos verdes quintais da encosta,
vagas enguias lustrosas
que o pesadelo da noite
distende no claro-escuro
do aquário lunar do sono...
pobres cervos desgalhados
que João Batista apascenta
nos verdes quintais da encosta,
vagas enguias lustrosas
que o pesadelo da noite
distende no claro-escuro
do aquário lunar do sono...
Guiovaldo acende uma vela,
Rosa jogou-se à calçada: _
- “Meu lenço de seda branco,
meu pé de manjericão!”
Rosa jogou-se à calçada: _
- “Meu lenço de seda branco,
meu pé de manjericão!”
Ron Merino, bofetadas,
um punhal riscando a fundo
teu nome numa canção,
soluços, pragas, risadas,
misturados blues e sambas
das radiolas de aluguel
ao lento noturno rouco
de xaques-xaques e agês
se alando às trilhas longínquas
do Axé do Opô Afonjá...
um punhal riscando a fundo
teu nome numa canção,
soluços, pragas, risadas,
misturados blues e sambas
das radiolas de aluguel
ao lento noturno rouco
de xaques-xaques e agês
se alando às trilhas longínquas
do Axé do Opô Afonjá...
Ebó, dendê na farofa,
pimenta no arroz de Haussá.
pimenta no arroz de Haussá.
Nossa Senhora do parto
tem olhos de conta verde
no rosto moreno estanho;
galos de alfazema e nuvem
com bicos de índigo vidro,
e as aéreas naves de âmbar,
partindo a meio o silêncio
das duas da madrugada.
tem olhos de conta verde
no rosto moreno estanho;
galos de alfazema e nuvem
com bicos de índigo vidro,
e as aéreas naves de âmbar,
partindo a meio o silêncio
das duas da madrugada.
Ladeira que já não subo,
mas que desço agora sem medo
da sombra que vai comigo.
mas que desço agora sem medo
da sombra que vai comigo.
Vereda isenta de arrimo,
caminho solto no tempo.
caminho solto no tempo.
A lua deitou-se agora
no leito escuso da rua,
tomando a forma das coisas,
das janelas e das tranças
porque os convites obscenos
transmudasse em línguas brancas
segredando-me a ternura
de um conúbio sepulcral.
no leito escuso da rua,
tomando a forma das coisas,
das janelas e das tranças
porque os convites obscenos
transmudasse em línguas brancas
segredando-me a ternura
de um conúbio sepulcral.
Hoje, és Padre Nóbrega
para o cartaz das esquinas,
mas foste acaso o caminho
de Mem de Sá, de Vieira,
de Gregório de Mattos Guerra,
comborça de capadócios,
amante de seresteiros,
Xisto da Bahia afagando
na garganta dos violões
modinhas de adormentar
o olhar que não tem mais pálpebras.
para o cartaz das esquinas,
mas foste acaso o caminho
de Mem de Sá, de Vieira,
de Gregório de Mattos Guerra,
comborça de capadócios,
amante de seresteiros,
Xisto da Bahia afagando
na garganta dos violões
modinhas de adormentar
o olhar que não tem mais pálpebras.
Foste rua de prosápia
e hoje és ladeira de negras,
de mulatas sifilíticas,
de soldados e de bêbedos,
rua de míseras putas
ou das sombras que entrevejo
cavalgando desabridos
ginetes de bruma errante.
e hoje és ladeira de negras,
de mulatas sifilíticas,
de soldados e de bêbedos,
rua de míseras putas
ou das sombras que entrevejo
cavalgando desabridos
ginetes de bruma errante.
Ó, esse amor ignora
do que eu só te dei, ó ladeira
de insone Misericórdia:
amor de carne, de sangue,
de saliva e beijos ácidos,
amor que sobe do fundo
dos pântanos seminais.
do que eu só te dei, ó ladeira
de insone Misericórdia:
amor de carne, de sangue,
de saliva e beijos ácidos,
amor que sobe do fundo
dos pântanos seminais.
Sou eu quem te beija as pedras,
quem, ao pranto convolado,
se adensa no teu mistério;
quem prende à carne dos lábios
macerados de sevícia
o amor que não sabe o nome,
e o traduz em luz aurora
de redenção impossível,
por te querer abrasada
nesse amanhã que demora
de alvorecer meu tormento,
ansiando-te violentada
da graça abissal do Cristo,
à flor da chama vermelha
tocando de irreal brancura.
quem, ao pranto convolado,
se adensa no teu mistério;
quem prende à carne dos lábios
macerados de sevícia
o amor que não sabe o nome,
e o traduz em luz aurora
de redenção impossível,
por te querer abrasada
nesse amanhã que demora
de alvorecer meu tormento,
ansiando-te violentada
da graça abissal do Cristo,
à flor da chama vermelha
tocando de irreal brancura.
E então és Misericórdia!
Ladeira da minha vida.
Ladeira do meu amor.
Ladeira do meu amor.
ÉGUA DE JADE
Florisvaldo Mattos
Costumo amanhecer, o céu vislumbro;
O mar embaixo muge sossegado,
A orla estriada rege o som das nuvens;
O vento lança-me aos olhos (o rosto bebe)
O que sobra das ondas, claro dorso.
O mar embaixo muge sossegado,
A orla estriada rege o som das nuvens;
O vento lança-me aos olhos (o rosto bebe)
O que sobra das ondas, claro dorso.
Eu que te procurei em luas, sol,
Mar e águas todas só agora te encontro,
No ardor dos pelos, fulgurantes olhos,
Animal sobre o oceano debruçado,
Na postura de alguém que sempre aguarda.
Mar e águas todas só agora te encontro,
No ardor dos pelos, fulgurantes olhos,
Animal sobre o oceano debruçado,
Na postura de alguém que sempre aguarda.
Exaurido me apalpo. Sei que existes,
De ventre aberto ao mar, de espera rude.
De ventre aberto ao mar, de espera rude.
Navegadores chegam, embriagados
De sonho, de cobiça e velhas perdas.
De sonho, de cobiça e velhas perdas.
Sei que te ornam algas; vieste do Oriente.
Ou do Ocidente vens, em luz de pérola?
Que me enchem de desvairos cores novas.
Ou do Ocidente vens, em luz de pérola?
Que me enchem de desvairos cores novas.
A alvorada me beija? Nem sei se a tenho
Entre teus braços – trucidantes hastes,
Enlaçando mastros, extraviadas quilhas.
Entre teus braços – trucidantes hastes,
Enlaçando mastros, extraviadas quilhas.
Foi boa a noite dentre pesadelos
Ruminados sobre teus passos, tua
Lenta navegação por entre torres
Em que te amarram cordas de silêncio.
Dorme a amada; o mar urde laborioso.
Ruminados sobre teus passos, tua
Lenta navegação por entre torres
Em que te amarram cordas de silêncio.
Dorme a amada; o mar urde laborioso.
Estamos sós, eu e tu. E o mar, testante
(Leguleio de aromas e vivências)
Do que deixaram tardos marinheiros
Sobre a terra límpida, mas exausta,
Os bens que, de alma apenas, pó restaram.
(Leguleio de aromas e vivências)
Do que deixaram tardos marinheiros
Sobre a terra límpida, mas exausta,
Os bens que, de alma apenas, pó restaram.
O mar é o que te basta; é a tua culpa.
Por isso, nada esqueces, nada passa:
A memória a acender-te o labirinto,
A luz a reavivar o antigo rosto,
Espuma a te invadir adusto ventre.
Por isso, nada esqueces, nada passa:
A memória a acender-te o labirinto,
A luz a reavivar o antigo rosto,
Espuma a te invadir adusto ventre.
Tua baía, escancarada porta
A quem te penetre água e terra adentro
– peixes, pássaros, luas navegantes –,
A boca lúbrica, emitindo toques
De tambores também lascivos, urra.
A quem te penetre água e terra adentro
– peixes, pássaros, luas navegantes –,
A boca lúbrica, emitindo toques
De tambores também lascivos, urra.
Fica em silêncio que já te cubro, égua
Fogosa, imersa em toldo florescente:
Te pego pelo casco, jade puro;
Te puxo pelas crinas rutilantes;
Te arranco das encostas em que pastas.
Fogosa, imersa em toldo florescente:
Te pego pelo casco, jade puro;
Te puxo pelas crinas rutilantes;
Te arranco das encostas em que pastas.
Vem, vem; se és de ouro, risco-te nas pedras.
Vem; se és de fogo, banho-te no mar.
Vem; se és de lua, lanço-te no céu.
Urras; ah, pela anca afinal peguei-te,
Égua translúcida da madrugada.
Vem; se és de fogo, banho-te no mar.
Vem; se és de lua, lanço-te no céu.
Urras; ah, pela anca afinal peguei-te,
Égua translúcida da madrugada.
E após, na lassidão que disto sobra,
Batida pela brisa que ressoa
No côncavo de uma onda, desvaneces,
Além do cais onde dormitam barcos.
O mar te trouxe; estrela, o mar te leva.
Batida pela brisa que ressoa
No côncavo de uma onda, desvaneces,
Além do cais onde dormitam barcos.
O mar te trouxe; estrela, o mar te leva.
(Extraído de “Poesia Reunidas e Inéditos”. São Paulo: Escrituras Editora, p. 235, 2011)
Salvador, cidade de dois andares, primeira capital do Brasil, fundada em 1549
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