Florisvaldo Mattos
Artista consciente e
predestinado, como o definiu o também hoje saudoso poeta e crítico de arte Wilson
Rocha, recordo Calasans Neto na figura de jovem pertencente à irrequieta e
sedutora malta que, na segunda metade dos anos 1950, deixava os bancos do curso
secundário, para decididamente participar e influir no vertiginoso processo
cultural de que a Bahia se mostrava trepidante cenário. Vinham eles das
chamadas Jogralescas, febris e depois afamadas representações de poesia
teatralizada, levadas então ao palco no auditório do Colégio da Bahia (hoje
Central), em que Calá, além de autor da cenografia, desempenhava também função
de ator.
Com Glauber Rocha à frente,
compunham esse grupo cavaleiros andantes, tomados de igual fervor, Fernando da
Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, João
Carlos Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima,
entre outros, ao lado de louçãs demoiselles
que infundiam, a um só tempo, ânimo, beleza e inspiração àqueles rumorosos
dias. Estavam resolvidos a subjugar e varrer do ambiente cultural a esclerose decadentista
que ainda o corroía, lançando luzes sobre opaco horizonte à sua frente, não
obstante os novos rumos descortinados por Edgar Santos, reitor da então
Universidade da Bahia, com seu vitorioso projeto de reformas.
A eles me incorporei, em
inícios de 1957, a convite de Glauber, que se entusiasmara com um poema de
minha autoria, intitulado “Composição de ferrovia” e publicado no número 11 da
revista Ângulos, então prestigioso
ícone editorial da Bahia, que acabara de circular. Calasans Neto era um desses quixotes, montado em seu rocinante, cujo peitoral de sonhos varava
o vasto e sensível campo das artes plásticas, um dos poucos redutos que a
geração anterior, a dos cavaleiros de Caderno da Bahia (1948-1955), conseguira
desbravar, abrindo fendas na resistente muralha de academicismo dominante, ajudados
pela sensibilidade modernista do educador Anísio Teixeira à frente da
Secretaria da Educação e Cultura, no governo Octávio Mangabeira (1947-1951).
Calá (no meio), João Ubaldo, Glauber Rocha, Sante e Paulo Gil |
Nas artes plásticas, vinha
com ânimo forte e aspirações a que mais adiante seria rotulada de Geração Mapa
por contar em seu pelotão com quatro varões de indiscutível talento artístico:
Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto e Hélio Oliveira, a que depois
se juntaria José Maria Rodrigues. Realce neste leque de criadores, já mestre em
muitas artes, inclusive na da conversa bem-humorada e envolvente, Calá logo revelaria
excepcional vocação para a gravura em madeira e na ilustração de livros e
álbuns constantes de obras publicadas pelas Edições Macunaíma e revista Mapa, duas
iniciativas que se tornariam carros-chefes para afirmação e prestígio literário
do grupo.
Eu próprio, não nego, me
considero um dos beneficiários das mágicas habilidades visuais de Calá, desde
que, tendo sido o ilustrador de meu primeiro livro, Reverdor (1965), o seria de outros que se seguiram, tais como Fábula Civil (1975) e A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior
(1996), além de uma plaqueta de poemas com que eu e Fernando da Rocha Peres, em
1985, homenageamos a memória de Glauber Rocha, todos publicados pelo mesmo selo
editorial. Em todas essas obras, a arte de Calá destacava-se como elemento
eficaz no impulso às sugestões estéticas que a entonação dos versos pretendia transmitir,
podendo-se dizer mesmo que eram as gravuras um fiel condutor.
Trabalhadas em madeira, no
primeiro caso, as gravuras de Calá agregavam feição gráfica aos poemas do livro, conferindo energia e brilho a seu
enunciado telúrico, tanto no que respeita às alusões épicas quanto ao lirismo
nas partes marcadas por separatrizes, desde a capa até a contracapa, cujas
imagens se articulavam com o universo rural por onde se insinuava o conteúdo.
Desenhos de cavaleiros vestidos
de armaduras, em cenário de cavalaria medieval, precediam os poemas com os cinco
monólogos de Garcia d´Ávila; a seguir, figuras de cabras placidamente pastando
(mais adiante, esses animais se tornariam signos definidores de uma das fases
de sua pintura, incutindo nas suas telas, e também em gravuras, dimensão
mitológica de conotação marinha), advertiam para o fundamento agrário da seção
“Agrotempo” e, por fim, uma locomotiva arrastando um comboio de vagões
anunciava os poemas da seção final denominada “Composição de ferrovia”. Havia arte, figuração modernista, evocação e
bucolismo, a refletirem o objeto poético que os versos adiante ambicionavam expressar.
Houve depois colaboração de
Calá à edição de outro livro de minha autoria, Fábula Civil (1975), cujos versos abandonavam o ambiente rústico e
o chão bucólico da região cacaueira, para centrar-se na trepidação de um universo
urbano conturbado, que desafiava e violava os princípios do humanismo. A poesia
agora se voltava para uma ordem de fatores pulsantes, em cenário marcado por
violência, ditadura, opressão e medo.
Neste denso circuito de
imaginação, as xilogravuras irão imprimir especial figuração, traduzindo a
entonação de denúncia, assombro e horror, presente na linguagem dos poemas, e
agigantando a edição, desde o vermelho da capa, com título em baixo relevo.
Letras fortes e cruamente cavadas compõem a página de rosto e se embrenham
pelas três seções divisórias que se seguem numa insinuante dança de imagens e
títulos também gravados. Agora tensos e meditativos rostos defrontam-se com
enigmas, seres humanos em célere fuga sobre chão de caveiras e ossos; bocas
escancaradas sob açoites sugerem espanto e dor, invocando urgências num
trançado de tragédia, como habitantes solitários de uma noite que não
passa.
Calá também iria participar
da homenagem em forma de plaqueta de poemas que eu e Fernando da Rocha Peres
prestamos à memória de Glauber Rocha, em 1985, agora com um conjunto de
monotipias alusivas à obra do saudoso amigo e já famoso cineasta. Na edição de A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior,
obra editada pela Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e
Arte), Calasans Neto comparece com oito gravuras que integram capa e divisórias
do conjunto de poemas.
Aqui apenas assinalo parte
atomizada da significativa obra gráfica de Calasans Neto, que, para ficar
apenas no campo da poesia, conferiu qualidade visual, artística e de fidelidade
a edições de obras de outros poetas, a começar por Samba de Roda, de Fred Souza Castro, de 1957, livro com que Edições
Macunaíma inaugurava sua aventura editorial (suponho ter sido também o primeiro
livro ilustrado por Calá). Seguiram-se, entre livros e plaquetas, os de
Fernando da Rocha Peres (Diluviano,
Rurais, Tempo Objeto), Paulo Gil Soares (Mirante dos Aflitos), os muitos de Myriam Fraga, Alberto Luiz
Baraúna, Humberto Fialho Guedes, José Carlos Capinan, e de outros nomes
consagrados, como Jorge Amado, Godofredo Filho e Carvalho Filho, entre outros baianos,
nas áreas de poesia e ficção, como o livro de contos, também inaugural, de
Sonia Coutinho, Do herói inútil (1964),
sem esquecer monumental edição com poemas de Vinicius de Moraes e Pablo Neruda,
um primor de solução em matéria de conteúdo editorial e gráfico.
Pertence à esfera da alta
cordialidade estética esta aliança entre as artes plásticas, a poesia e a
literatura. Faz parte da história da civilização ocidental, desde o
Renascimento, porém acentuada a partir dos movimentos literários e artísticos
do século XIX e incrementada com as vanguardas de início do século XX, quando
se consagrou e se tornou uma saudável referência na produção de livros e álbuns,
muitos destes apenas de arte.
Quanto a mim, esse
intercâmbio de minha poesia com a linguagem plástica de Calasans Neto teve um
significado de diálogo afetivo e congraçamento de ideias que coincidiam com aspirações
estéticas de uma geração, em que palavras, traços e cores se harmonizavam, sob
o signo da cooperação e do afeto, unificando propostas e ânimos sensíveis,
desde que a gravura desse artista, sendo ela própria também um processo
poético, em escala visual, pressupõe entrelaçamento de identidades que se
situam na raiz dos temas abordados, como no caso de meu livro Reverdor, em que suas gravuras,
funcionando como separatrizes, procuravam realçar o núcleo de poemas que
cantavam o labor dos campos e heróis do passado, desbravadores da terra descoberta,
a partir da ocupação, a fincarem as raízes da nação brasileira. Nele, uma dinâmica
visual trespassada por um sopro de inocência juvenil; em mim, um estado mental
que transmitia pureza de origens, com terra e gentes sancionando palavras e imagens;
enfim, uma relação que se traduzia e se justificava pela confluência de
sentimentos e aspirações geracionais, alojados num cosmo íntimo de amizade.
Aproveito para manifestar o
meu eterno agradecimento a José Júlio Calasans Neto, ou simplesmente Calá, que
nos deixou num dia frio de outono, em 2006, por sua desprendida solidariedade e
generosidade, e também para anunciar novidade, que demonstra permanecerem
saudavelmente vivas, mais de uma década depois, a magia e a arte desse notável
baiano. Trata-se de atitude tão digna quanto rara, no atual panorama cultural
da Bahia, adotada por um empresário da construção civil, Denis Guimarães, que
resolveu pôr em prática projeto inteiramente pessoal, que se destina a coletar
e preservar o acervo de Calasans Neto, representado por gravuras, pinturas,
esculturas, assim como documentos, e mais o que seja e onde esteja, para tanto
não medindo esforços em consegui-lo. Salve, salve a grande arte!
(Salvador, novembro de 2018)
CANTEIRO DE OBRAS
A
Calasans Neto
nas torrentes urbanas
são passos insones sombras
entre automóveis e hábitos.
Marulho de pés e pedra
escuro clamor de buzinas
deslizamos sobre leito
de ritos – sulcos na face.
Os engenheiros rasgam
o ventre da cidade
mar de mitos represado
o fel da impotência
escorre ladeira abaixo.
Tudo resplandece em luxo visual
no cotidiano das paredes claras.
Dentadura gretada de edifícios
engole projeta miragens
morno hálito de sangue
sobre todos – por ali sai
um odor antigo um bafio
negro muito sem disfarces.
Lábios e mãos se apagam
em escrita de muros – implacável
olhos ouvidos rostos numerados
mansamente nos consumimos
em surdo medo e azinhavre.
(Florisvaldo Mattos, “Fábula civil”, 1975)
DADOS DO AUTOR:
Nascido em Uruçuca,
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista, encerrando a carreira profissional
como editor-chefe do jornal “A Tarde”, em 2011; professor aposentado da UFBA,
pertence à Academia de Letras da Bahia. Publicou livros de poesia e ensaios,
sendo os cinco últimos Poesia Reunida e
Inéditos (2011), Sonetos elementais
(2012), Estuário dos dias e outros poemas
e Antologia Poética e Inéditos,
ambos em 2017, e a terceira a edição do ensaio A comunicação social na Revolução
dos Alfaiates (2018), publicado pela Assembleia Legislativa da Bahia, em
comemoração aos 220 anos da Revolta dos Búzios, ocorrida em Salvador, no ano de
1798. Tem em preparo novo livro de ensaios, reunindo texto sobre literatura,
artes e humanidades.
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