quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Calasans Neto, gravador da Geração Mapa



 CALASANS NETO: MAGIA E ARTE PRESENTES

Florisvaldo Mattos

Artista consciente e predestinado, como o definiu o também hoje saudoso poeta e crítico de arte Wilson Rocha, recordo Calasans Neto na figura de jovem pertencente à irrequieta e sedutora malta que, na segunda metade dos anos 1950, deixava os bancos do curso secundário, para decididamente participar e influir no vertiginoso processo cultural de que a Bahia se mostrava trepidante cenário. Vinham eles das chamadas Jogralescas, febris e depois afamadas representações de poesia teatralizada, levadas então ao palco no auditório do Colégio da Bahia (hoje Central), em que Calá, além de autor da cenografia, desempenhava também função de ator.
Com Glauber Rocha à frente, compunham esse grupo cavaleiros andantes, tomados de igual fervor, Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima, entre outros, ao lado de louçãs demoiselles que infundiam, a um só tempo, ânimo, beleza e inspiração àqueles rumorosos dias. Estavam resolvidos a subjugar e varrer do ambiente cultural a esclerose decadentista que ainda o corroía, lançando luzes sobre opaco horizonte à sua frente, não obstante os novos rumos descortinados por Edgar Santos, reitor da então Universidade da Bahia, com seu vitorioso projeto de reformas. 
A eles me incorporei, em inícios de 1957, a convite de Glauber, que se entusiasmara com um poema de minha autoria, intitulado “Composição de ferrovia” e publicado no número 11 da revista Ângulos, então prestigioso ícone editorial da Bahia, que acabara de circular. Calasans Neto era um desses quixotes, montado em seu rocinante, cujo peitoral de sonhos varava o vasto e sensível campo das artes plásticas, um dos poucos redutos que a geração anterior, a dos cavaleiros de Caderno da Bahia (1948-1955), conseguira desbravar, abrindo fendas na resistente muralha de academicismo dominante, ajudados pela sensibilidade modernista do educador Anísio Teixeira à frente da Secretaria da Educação e Cultura, no governo Octávio Mangabeira (1947-1951).
Calá (no meio), João Ubaldo, Glauber Rocha, Sante e Paulo Gil

Nas artes plásticas, vinha com ânimo forte e aspirações a que mais adiante seria rotulada de Geração Mapa por contar em seu pelotão com quatro varões de indiscutível talento artístico: Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto e Hélio Oliveira, a que depois se juntaria José Maria Rodrigues. Realce neste leque de criadores, já mestre em muitas artes, inclusive na da conversa bem-humorada e envolvente, Calá logo revelaria excepcional vocação para a gravura em madeira e na ilustração de livros e álbuns constantes de obras publicadas pelas Edições Macunaíma e revista Mapa, duas iniciativas que se tornariam carros-chefes para afirmação e prestígio literário do grupo.
Eu próprio, não nego, me considero um dos beneficiários das mágicas habilidades visuais de Calá, desde que, tendo sido o ilustrador de meu primeiro livro, Reverdor (1965), o seria de outros que se seguiram, tais como Fábula Civil (1975) e A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior (1996), além de uma plaqueta de poemas com que eu e Fernando da Rocha Peres, em 1985, homenageamos a memória de Glauber Rocha, todos publicados pelo mesmo selo editorial. Em todas essas obras, a arte de Calá destacava-se como elemento eficaz no impulso às sugestões estéticas que a entonação dos versos pretendia transmitir, podendo-se dizer mesmo que eram as gravuras um fiel condutor.
Trabalhadas em madeira, no primeiro caso, as gravuras de Calá agregavam feição gráfica aos poemas do livro, conferindo energia e brilho a seu enunciado telúrico, tanto no que respeita às alusões épicas quanto ao lirismo nas partes marcadas por separatrizes, desde a capa até a contracapa, cujas imagens se articulavam com o universo rural por onde se insinuava o conteúdo.
Desenhos de cavaleiros vestidos de armaduras, em cenário de cavalaria medieval, precediam os poemas com os cinco monólogos de Garcia d´Ávila; a seguir, figuras de cabras placidamente pastando (mais adiante, esses animais se tornariam signos definidores de uma das fases de sua pintura, incutindo nas suas telas, e também em gravuras, dimensão mitológica de conotação marinha), advertiam para o fundamento agrário da seção “Agrotempo” e, por fim, uma locomotiva arrastando um comboio de vagões anunciava os poemas da seção final denominada “Composição de ferrovia”.  Havia arte, figuração modernista, evocação e bucolismo, a refletirem o objeto poético que os versos adiante ambicionavam expressar.

Houve depois colaboração de Calá à edição de outro livro de minha autoria, Fábula Civil (1975), cujos versos abandonavam o ambiente rústico e o chão bucólico da região cacaueira, para centrar-se na trepidação de um universo urbano conturbado, que desafiava e violava os princípios do humanismo. A poesia agora se voltava para uma ordem de fatores pulsantes, em cenário marcado por violência, ditadura, opressão e medo.
Neste denso circuito de imaginação, as xilogravuras irão imprimir especial figuração, traduzindo a entonação de denúncia, assombro e horror, presente na linguagem dos poemas, e agigantando a edição, desde o vermelho da capa, com título em baixo relevo. Letras fortes e cruamente cavadas compõem a página de rosto e se embrenham pelas três seções divisórias que se seguem numa insinuante dança de imagens e títulos também gravados. Agora tensos e meditativos rostos defrontam-se com enigmas, seres humanos em célere fuga sobre chão de caveiras e ossos; bocas escancaradas sob açoites sugerem espanto e dor, invocando urgências num trançado de tragédia, como habitantes solitários de uma noite que não passa. 
Calá também iria participar da homenagem em forma de plaqueta de poemas que eu e Fernando da Rocha Peres prestamos à memória de Glauber Rocha, em 1985, agora com um conjunto de monotipias alusivas à obra do saudoso amigo e já famoso cineasta. Na edição de A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, obra editada pela Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte), Calasans Neto comparece com oito gravuras que integram capa e divisórias do conjunto de poemas.
Aqui apenas assinalo parte atomizada da significativa obra gráfica de Calasans Neto, que, para ficar apenas no campo da poesia, conferiu qualidade visual, artística e de fidelidade a edições de obras de outros poetas, a começar por Samba de Roda, de Fred Souza Castro, de 1957, livro com que Edições Macunaíma inaugurava sua aventura editorial (suponho ter sido também o primeiro livro ilustrado por Calá). Seguiram-se, entre livros e plaquetas, os de Fernando da Rocha Peres (Diluviano, Rurais, Tempo Objeto), Paulo Gil Soares (Mirante dos Aflitos), os muitos de Myriam Fraga, Alberto Luiz Baraúna, Humberto Fialho Guedes, José Carlos Capinan, e de outros nomes consagrados, como Jorge Amado, Godofredo Filho e Carvalho Filho, entre outros baianos, nas áreas de poesia e ficção, como o livro de contos, também inaugural, de Sonia Coutinho, Do herói inútil (1964), sem esquecer monumental edição com poemas de Vinicius de Moraes e Pablo Neruda, um primor de solução em matéria de conteúdo editorial e gráfico.

Pertence à esfera da alta cordialidade estética esta aliança entre as artes plásticas, a poesia e a literatura. Faz parte da história da civilização ocidental, desde o Renascimento, porém acentuada a partir dos movimentos literários e artísticos do século XIX e incrementada com as vanguardas de início do século XX, quando se consagrou e se tornou uma saudável referência na produção de livros e álbuns, muitos destes apenas de arte.
Quanto a mim, esse intercâmbio de minha poesia com a linguagem plástica de Calasans Neto teve um significado de diálogo afetivo e congraçamento de ideias que coincidiam com aspirações estéticas de uma geração, em que palavras, traços e cores se harmonizavam, sob o signo da cooperação e do afeto, unificando propostas e ânimos sensíveis, desde que a gravura desse artista, sendo ela própria também um processo poético, em escala visual, pressupõe entrelaçamento de identidades que se situam na raiz dos temas abordados, como no caso de meu livro Reverdor, em que suas gravuras, funcionando como separatrizes, procuravam realçar o núcleo de poemas que cantavam o labor dos campos e heróis do passado, desbravadores da terra descoberta, a partir da ocupação, a fincarem as raízes da nação brasileira. Nele, uma dinâmica visual trespassada por um sopro de inocência juvenil; em mim, um estado mental que transmitia pureza de origens, com terra e gentes sancionando palavras e imagens; enfim, uma relação que se traduzia e se justificava pela confluência de sentimentos e aspirações geracionais, alojados num cosmo íntimo de amizade.
Aproveito para manifestar o meu eterno agradecimento a José Júlio Calasans Neto, ou simplesmente Calá, que nos deixou num dia frio de outono, em 2006, por sua desprendida solidariedade e generosidade, e também para anunciar novidade, que demonstra permanecerem saudavelmente vivas, mais de uma década depois, a magia e a arte desse notável baiano. Trata-se de atitude tão digna quanto rara, no atual panorama cultural da Bahia, adotada por um empresário da construção civil, Denis Guimarães, que resolveu pôr em prática projeto inteiramente pessoal, que se destina a coletar e preservar o acervo de Calasans Neto, representado por gravuras, pinturas, esculturas, assim como documentos, e mais o que seja e onde esteja, para tanto não medindo esforços em consegui-lo. Salve, salve a grande arte!


(Salvador, novembro de 2018)
  
CANTEIRO DE OBRAS
                        A Calasans Neto

 Triste nada mais triste
nas torrentes urbanas
são passos insones sombras
entre automóveis e hábitos.

Marulho de pés e pedra
escuro clamor de buzinas
deslizamos sobre leito
de ritos – sulcos na face.

Os engenheiros rasgam
o ventre da cidade
mar de mitos represado
o fel da impotência
escorre ladeira abaixo.

Tudo resplandece em luxo visual
no cotidiano das paredes claras.

Dentadura gretada de edifícios
engole projeta miragens
morno hálito de sangue
sobre todos – por ali sai
um odor antigo um bafio
negro muito sem disfarces.

Lábios e mãos se apagam
em escrita de muros – implacável
olhos ouvidos rostos numerados
mansamente nos consumimos
em surdo medo e azinhavre.

(Florisvaldo Mattos, “Fábula civil”, 1975)



DADOS DO AUTOR:

Nascido em Uruçuca, Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista, encerrando a carreira profissional como editor-chefe do jornal “A Tarde”, em 2011; professor aposentado da UFBA, pertence à Academia de Letras da Bahia. Publicou livros de poesia e ensaios, sendo os cinco últimos Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos elementais (2012), Estuário dos dias e outros poemas e Antologia Poética e Inéditos, ambos em 2017, e a terceira a edição do ensaio A comunicação social na Revolução dos Alfaiates (2018), publicado pela Assembleia Legislativa da Bahia, em comemoração aos 220 anos da Revolta dos Búzios, ocorrida em Salvador, no ano de 1798. Tem em preparo novo livro de ensaios, reunindo texto sobre literatura, artes e humanidades.



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