terça-feira, 2 de janeiro de 2018

RÉQUIEM PARA ANTÔNIO MOREIRA

Antônio Moreira, sócio do Restaurante Porto do Moreira, no Largo do Mucambinho, em Salvador

ADEUS AO AMIGO ANTÔNIO MOREIRA
Florisvaldo Mattos

Estou hoje, pela manhã, em casa, ainda me recuperando das tropelias hedonistas de final de ano, quando recebo pela voz embargada do jornalista Carlos Navarro Filho (Navarrinho) a triste notícia de que misteriosamente se fora o querido amigo de todos nós e de muitos mais Antônio Moreira, que desde decênios divide com o irmão Francisco (Chico) Moreira a direção e sustentação do paradigmático Restaurante Porto do Moreira, situado no Largo do Mucambinho, uma das joias, senão a principal, do universo sensorial da Cidade do Salvador. Memorável figura, admirável exemplo de fraternidade e cordialidade, que conciliava na convivência diária com clientes, muitos frequentadores da casa por decênios, gestos de amabilidade e respeito com irreverência bonachã, como bem o caracterizou hoje um deles, o Dr. Fernando Santana, presidente do Clube inglês, sempre alegre, sorridente e afetuoso, em todos os momentos e dias em que lá se postava para cumprir a faina que o destinho lhe reservara e o tornara um ser humano amado por todos que dele se aproximavam. Desde que o conheci, lá se vão quase sessenta anos, travamos uma relação de consideração e amizade que durou até que os Fados o permitissem. Vai-se Moreira, de repente, deixando em todos os que o conheceram um sentimento de perda incalculável. Que a eternidade o receba coberto com consagrador manto de luz e paz, tornando a sua memória um patrimônio de todos.
Como o conheci, lá mesmo no célebre restaurante, ainda um garçom infanto-juvenil servindo com o irmão Américo à freguesia sob ordens às vezes severas do pai, o saudoso português José Moreira, guardo dele na memória a mesma expressão sociocultural do restaurante, palco de episódios e histórias memoráveis, algumas até de contorno humorístico, que, ao pronunciar recentemente uma conferência sobre trajetos boêmios da cidade, nos anos 1950/1960, não deixei de dedicar uma parte ao significado cultural de seu nobre estabelecimento.
Assim é que, entre muitas histórias que reuni na narrativa de tão rico e inesquecível período da vida de Salvador, sinto-me impelido a reproduzir dela a parte que segue abaixo.
"Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.
Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses."
ADEUS, GRANDE AMIGO ANTÔNIO MOREIRA.


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FM, com Euvaldo, Genevaldo e Heraldo, com Antonio Moreira
ADEUS, MOREIRA
Nestor Mendes Jr.
Antonio Moreira da Silva, o Moreira, partiu ontem, aos 72 anos, da Bahia para um outro porto, de outra dimensão. Foi-se mais um pedaço da velha cidade da Bahia inzoneira, sestrosa, poética, cayminiana e amadiana. Dessa cidade ainda guardada nos cartões do Tempostal, nos sambas de Batatinha e Edil Pacheco, nos textos de Tasso Franco e Jolivaldo Freitas, na poesia de Florisvaldo Mattos e no espírito dos baianos que ainda fazem questão de se manter gentis e hospitaleiros.
Com o seu irmão Chico, sucedeu ao pai, Moreira, no restaurante “Casa de pasto e espírito Porto do Moreira”, a princípio no Mucambinho e, por último, no Largo das Flores. Mais do que um espaço gastronômico, de delícias por Deus esculturadas, o Porto do Moreira é uma espécie de mistura de Senado com Casa de Tolerância - embora aquele não faça justiça à decência desta.
“Senadores” discutem ali a poluição do planeta, as querelas entre o prefeito e o governador, a contratação do treinador do Bahia, a gravidez de Ivete, o último chifre dado de “com força” em uma cabeça coroada – com o perdão do trocadilho. Tolerância em homenagem às putas - musas da predileção de Moreira – e para destacar a diversidade de sexos, raças, classes sociais, religiões e ideologias dos que frequentam o Moreira.
Carlistas, waldiristas, petistas, xiitas, coxinhas, devotos, ateus, crentes, letrados, iletrados. Do repasto do Moreira servem-se todos.
Jorge Amado, Glauber Rocha, João Carlos Teixeira Gomes, Ary da Mata, Jorge Portugal, Florisvaldo Mattos, Humbertinho Sampaio, James Correia, Dultra Cintra, Paolo Marconi, Edil Pacheco, Alberto Freitas, João Paulo Costa, Paulo Gaudenzi, Cristóvão Rios, Tasso Franco, Carlos Navarro, Alberto Oliveira, Armando Lemos, Roque Mendes, Benito Gama, Paulo Bina, Jorge Ramos, Gerson Gabrielli, Zé Américo Moreira da Silva, Washington Souza Filho, Fernando Vita, Valmar Hupsel, Marco Hulk, Roberval Foca Luânia, Vicente Pinga, Manoel Castro, Getúlio Soares, Fernando Santana, Carlos Coqueijo, Isidro do Amaral Duarte, Antonio Menezes Filho. A lista é longa. E interminável...
Caetano Veloso gosta da “Moqueca de Miolo”, para relembrar Dona Canô; Carlos Libório degusta o “Carneiro Assado”; o ministro Peçanha Martins devorava a “Galinha ao Molho Pardo”.
Mas tolerância, especialmente, era o que Moreira não possuía. Contrariava, sem pudor, a regra básica do comércio: “o freguês tem sempre razão”. Ali, nunca! Quando a casa estava cheia, ele ficava indócil. Quando alguém reclamava da conta, ele bufava. E por tudo isso – e acho que até por causa disso - todos o adoravam. Nós o amávamos.
A Ian, meu filho, ainda pequeno, em companhia de meu afilhado Tassinho, ensinei a perturbá-lo com a provocação “Moreira, ladrão!”. Ele ria, até que um dia fez um discurso no restaurante: “Eu não sou ladrão! Sou comerciante, mas todo comerciante é ladrão”...
Era assim Antonio Moreira, que sabia todas as fofocas - dos palácios e do submundo. Um coração gigantesco, maternal, mas que gostava de uma pilhéria, de uma provocação, de uma boa discussão.
Capaz de parar na CardioPulmonar por causa de uma querela a respeito do preço do Cointreau, mas que não deixava ninguém pagar um centavo quando fazíamos uma farra com ele fora do Porto.
Meu coração está mais vazio. Vou continuar indo ao Porto do Moreira comer uma “Rabada” ou uma “Moqueca de Carne”, mas naquela mesa – da “Diretoria” - estará faltando ele, como no samba de Sérgio Bittencourt, imortalizado por Nelson Gonçalves: “Naquela mesa tá faltando ele/e a saudade dele tá doendo em mim”.
Adeus, Moreira. E muito obrigado!
Nestor Mendes Jr. é jornalista.

(Publicado no Correio da Bahia, edição de quarta-feira, 3 de janeiro de 2018)



PORTO DO MOREIRA (Antonio partiu dessa pra uma melhor!)

Faz mais de 30 anos que frequento este que talvez seja o único e verdadeiro santuário da culinária luso-baiana com quase 80 anos funcionando no centro de São Salvador da Bahia. Sim, luso-baiana porque não conheço outro sítio onde é possível encontrar no mesmo cardápio moqueca de carne, moqueca de miolo, frigideira de ostras, moqueca de bacalhau, bacalhau à martelo, cozido à portuguesa, língua ao molho de vinho, mocotó, rabada com agrião, carneiro e porco assados, mocotó, sarapatel e a penosa ao molho pardo. Todas essas opções distribuídas de segunda à sábado, porque aos domingos quem reina, sozinha, é a feijoada de feijão carioca. Opas! Feijão carioca não é o feijão preto, é o feijão mulatinho, coisa da Bahia.
Não poderia deixar de anotar a melhor entrada entre todas as entradas de restaurantes servidas no mundo: o pão cacetinho tostado na chama do fogão acompanhado de uma generosa porção de manteiga aviação. E o fígado acebolado com batatas do reino... Puta que pariu, bom demais!
Hummmm... Quando falo do Moreira fico com água na boca e um saudosismo que aperta o coração.
Hoje a saudade chega a doer.
Nos últimos 12 anos fora da Bahia sempre que apareço na terrinha - uma, duas, três vezes ao ano - nunca deixo de ir na Colina Sagrada e no Porto do Moreira. O sagrado e o profano são compromissos oficiais da agenda.
Lá, os irmãos Chico e Antonio Moreira zelaram pela tradição herdada do pai, numa convivência mabaça por mais de 50 longos anos.
Ontem Antonio resolveu abandonar seu posto e partiu dessa pra uma melhor. Foi encontrado desfalecido sobre a cama do seu apartamento no Largo Dois de Julho, a pouco mais de 300 metros do restaurante.
Encontrado no final da manhã pelo filho da sua atual companheira que foi ao local a pedidos da sobrinha Cristina (filha de Chico) que por intuição feminina achou mais que estranha a ausência do tio no restaurante logo no primeiro dia útil do ano. Não deu outra, o pior tinha acontecido. Logo a notícia se espalhou como rastilho de pólvora pelos quatro cantos da Bahia, do Brasil e do mundo.
Assim como gostava de espalhar notícias, as mais variadas, aos fregueses do restaurante, Moreira virou notícia no rádio, nos sites, na TV e nos principais jornais impressos da Bahia.
Morreu pela boca. Era um comilão e os doces eram sua perdição. Diabético, não podia abusar das guloseimas, mas não tinha a disciplina do irmão Chico, nem pra comida, nem pra mulheres.
Nos tratávamos como 'primo' pelo fato de possuirmos o mesmo sobrenome: Moreira da Silva.
No dia-a-dia lá estavam, Chico no balcão e cozinha e Antonio no salão.
Meu dia preferido sempre foi às sextas. Chegava por volta das 13h e se nada me impedisse saía de lá às 18, 19h ou enxotado por Moreira que colocava a cadeira na porta do estabelecimento e passava uma corrente no portal que sinalizava o encerramento do atendimento.
Poucas vezes ia sozinho. Sempre na companhia de amigos como Hamiltinho (Hamilton Oliveira) , Nizan e Marcello Gurgel, Macarra Viana, Getúlio Soares, João Leite, Zitomi Souza, Mateus Aleluia, Anisio Felix, Nestor Mendes Junior, Waldomiro Santos Júnior, Washington Souza Filho, Lívio Felix e muitos outros. Sem falar nas confraternizações de fim de ano com inúmeros outros amigos, colegas do jornalismo, publicidade e propaganda.
Brincávamos muito e como Moreira (Antonio) se irritava com certa facilidade - comigo e com qualquer um - pirraçá-lo era uma diversão. Depois de várias goladas de PML (pinga mel e limão), preparadas com capricho por Chico, e algumas cervejas, eu sempre gritava em alto e bom som: A comida aqui é qualquer coisa. O bom mesmo é o atendimento! E a gargalhada era geral.
A saudade já é enorme, mas as boas lembranças do amigo/irmão são inesquecíveis.
Não vejo a hora de voltar lá, sentir mais de perto a sua presença e abraçar Chico.
Ainda vou contar muitas histórias dele e de lá do Moreira. História e estórias, claro!
Só para adiantar... Uma delas foi quando ele foi a Portugal e levou Anísio Félix como tradutor. Acreditem, é muito boa!
Adeus, primo!
Um pouco da história do restaurante
*A história do Porto do Moreira teve início na Europa. O pai de Antônio e Francisco, José Moreira da Silva, aos 19 anos, era carpinteiro, até que foi convidado, em 1928, para trabalhar no Brasil. Não pensou duas vezes e desembarcou na Bahia no dia 8 de dezembro do mesmo ano.
Trabalhando como restaurador, tinha uma rotina exaustiva, mas sempre almoçava em um restaurante ítalo-brasileiro. Foi aí que conheceu a italiana Maria Francesca, sua futura esposa. Após 10 anos no Brasil, já casado e com quase 30 anos, José cansou da carpintaria e abriu o restaurante.

(Texto de Zé Américo Silva, postado no Facebook em 03/01/2018).


Antônio Moreira
Lágrima brotava fácil, no rosto bonachão de homem inteligente, irreverente, mas, principalmente sensível.
Quem cruzava o Mercado das Flores, em frente à entrada do Largo Dois de Julho, ponto conhecido da nossa querida Salvador, a partir das onze da manhã de todos os dias do ano poderia vê-lo, no final do corredor que abriga um dos restaurantes mais tradicionais da cidade, inaugurado pelo pai há mais de setenta anos, ponto que jamais perdeu sua identidade, posto preservado pelos filhos que tocam o empreendimento por quase meio século, sentado à mesa colada no balcão, de onde saem para bancas sempre repletas de pessoas anônimas, ou das mais importantes do cenário nacional, comidas de sabores inigualáveis - moquecas, filés, carneiro, frango, sarapatel, mocotó e feijoada supimpas.
Às vezes, mais cedo, ou ao final do dia, ele se abancava bem em frente à entrada da casa, para ler jornais, fazer contas, dar ordens aos funcionários, cumprimentar os passantes, comentar acerca de novidades, falar de efemérides e desencarnes, sempre de forma peculiar e alegre, quando se tratava de notícia alvissareira, não economizando choro sentido, ao discorrer sobre a ida de alguém querido.
Dia destes, meses atrás, não muitos, recordo que ainda pela manhã, portas do restaurante cerradas pude vê-lo acomodado num banco da praça, enquanto passava voltando de habituais caminhadas que origino do Campo Grande, onde resido e me levam a lugares distintos da região.
Chamou-me como de costume dizendo: "Dr. Valdir, o senhor soube que minha cunhada, a esposa de Chico faleceu"?, e sua voz foi cortada por um soluço sentido, próprio dos que tem um coração e alma repletos de doçura. Fiz-lhe os votos de condolências pedi que estendesse ao irmão e sobrinha mensagem de pesar escusando-me pelo fato de ser impossível estar na despedida, viajaria naquela tarde ao interior, assim, segui minha jornada.
Pouco antes de partir para onde me encontro, sábado anterior a meu embarque passei boa parte do dia em sua companhia, entre doses de Old Parr e saboroso mocotó revigorante. Falamos de amigos, ele preocupado com a saúde de um deles, lembramos histórias do tempo em que engatinhei na polícia, época de Antônio Medrado chefiando a instituição, pessoa por quem nutrimos ambos grande afeição e de outros tantos ícones da casa que me fez realizado como homem e profissional, a exemplo de Edgar Medrado, João Laranjeira e outros personagens marcantes da Civil que resolveram nos deixar no ano findo.
Nestes dias em que percorro cantos da América do Norte, vez por outra, frente a uma iguaria, ou impressionado pela grandeza de paisagens geladas, mas belas, muitas vezes minha ideia voava até o cantinho onde nos víamos desejoso por falar, na volta, com este meu dileto amigo, acerca das novidades.
Manhã de hoje, Raimundinho, parceiro comum, ex escrivão, depois jornalista policial, no tempo em que escrevia minhas histórias de polícia, muitas por ele publicadas, agora executivo no TRE baiano, me liga para dizer que Antônio Moreira foi encontrado sem vida, nesta terça, a primeira do ano, em sua casa.
Agora, sou eu que tenho a voz cortada e os olhos marejados. Decerto, as coisas no Porto do Moreira amanheceram insossas. Mas, a vida segue, Deus o acolherá em lugar merecido e nos concederá, assim como aos seus, a resignação necessária para suportar a dor da perda.
Boa viagem amigo.
No meu retorno, com fé em Deus irei ver seu canto e lá, beberei em sua homenagem.
Newark, 1/02/2018

(Texto do Delegado Valdir Barbosa postado no Facebook, em 02/01/2018 por Cristina Moreira, sobrinha de Antônio Moreira).


Chico, o pensador
do Porto do Moreira
 
 
 
Como de costume, Chico o Pensador estava sentado à última
mesa do lado esquerdo do restaurante Porto do Moreira, junto ao
freezer de cervejas. Sempre só, e três cadeiras vazias, o que, para
os irmãos Francisco e Antônio, herdeiros da casa quase centenária,
no Largo do Mocambinho, significava prejuízo, porque não
podiam ser utilizadas por mais ninguém.
– Cada maluco que tenho aqui –, vivia balbuciando Antônio
Moreirão, com o devido cuidado de não ser ouvido pelo cliente.
Os demais fregueses e amigos Moreirão esculhambava sem a
menor cerimônia, em voz alta, mas não se arriscava a desfeitear
àquele que nem sabia o nome – a alcunha fora uma homenagem
da turma a François-Auguste-René Rodin e sua lendária escultura.
O misterioso Chico o Pensador chegava sisudo, pedia o conhaque
e a cerveja de sempre. Sorvia o destilado de um só gole,
postava-se de cotovelos sobre a mesa, servindo de base à mão no
queixo, olhar fixo na porta de entrada, enquanto Seu Ailton, o único garçom
que o atendia, enchia o copo de cerveja, copo-americano,
nada de taças, tulipas, copos altos.
O Pensador jamais se apresentou, ninguém sabia sua graça,
não permitia aproximação. Ninguém sabia o que ele sabia, pensava
ou fazia. Chegava ao anoitecer, vindo de um ponto qualquer,
talvez uma pensão, um quarto-e-sala do Largo Dois de Julho,
mesma área onde morava Antônio, no prédio sobre a churrascaria
Líder, famoso ponto de boemia. Era a única informação.
Dizia a lenda que um dia fora matador em Itabela, no extremo
sul da Bahia, e seria original do Espírito Santo ou Minas Gerais.
Por conta disso, todos tinham medo daquele baixinho aloirado,
meio grisalho, meio gordinho e de cara enfezada.
Dia após dia, excetuando-se sábados e domingos, entrava com
suas botinas marrons de pele de cabra e solado de couro, sem dar
boa tarde, e saía por volta das nove, sem dar boa noite. Só falou
com o garçom no primeiro dia, quatro meses passados, quando
apareceu pela primeira vez.
Ailton já sabia a preferência do freguês e nem bem ele sentava
a bebida já estava à mão. Uma particularidade: dava gorjeta, ao
contrário da maioria. Normalmente, a conta ficava um pouquinho
mais de 20 cruzados novos, e ele deixava 25 e ia embora.
O garçom não contestava as reclamações de Antônio e não
deixava ninguém falar mal do freguês:
– É boa gente. É esquisito, mas não bole com senhor ninguém
–, dizia sempre que instado a falar sobre o personagem que atendia.
Um dia, o chefe da sucursal do Estadão chegou mais cedo
para a confraria, engoliu um velho oito, o uísque nacional de rico
na época, pediu outro e resolveu enfrentar a fera. No estreito e
calorento salão vazio, sentou-se à mesa mais próxima e disparou:
– O senhor é famoso aqui porque não dá ousadia a ninguém.
– Sim.
– É que as pessoas falam que o senhor é mineiro, já foi rico,
já matou gente...
– Não –, interrompeu bruscamente.
– Não repare não, sou jornalista, vejo-o sempre sozinho aqui,
pensei que gostaria de conversar...
Ante o silêncio e o olhar fulminante do interlocutor, o repórter
levantou-se rápido e voltou para a mesa do encontro semanal
com os colegas, na outra extremidade do salão, acompanhado por
um Antônio sarcástico, sussurrante:
– Tá vendo aí, porra, vai mexer com quem tá quieto.
– Moreirão, sai de bolo –, respondeu, constrangido e amedrontado.
Ele iniciou uma conversa tensa, silenciosa, com um copo de
uísque e gelo, sobre os doidos de rua e as personalidades complicadas
que conheceu e sobre as quais escreveu reportagens, quase sempre em histórias de maldade.
Teve um arrepio, te desconjuro! Ele se lembrou de mulheres
que mataram os bebês pouco tempo depois do parto, carimbadas
de monstros pelos jornais e defendidas pelo respeitado professor
de antropologia Estácio de Lima:
– O professor dizia que em crimes puerperais era preciso estudar
a acusada para estabelecer em que situação e condições eles
foram perpetrados em meio à confusão hormonal que a acomete.
Discutiu também a velha e inconsciente luta entre o homem e
o automóvel pelo espaço na urbe, o que leva, até hoje, o cidadão a
ser atropelado pela simples razão de atravessar a rua a ignorar a
velocidade-peso de um carro:
– A rua é dele, e o carro é o invasor nessa luta desigual.
O repórter conversa consigo mesmo e não tira o olho da porta
da rua. E o pessoal não aparece. Chegou ao restaurante duas
horas antes do habitual, mas o relógio da parede na entrada da
cozinha insiste em ficar parado. Todo esse tempo e passaram-se
apenas 15 minutos.
Não ousa virar a cabeça na direção de Chico o Pensador e
também não dá atenção às provocações de Antônio, que se compraz
em dar ordem às cozinheiras enquanto papeia com os clientes que estão chegando.
Sentado àquela mesa especial com mais oito lugares vazios
destinados à confraria, ele pensa e repensa na vida recente. Não
tem mais preocupação com o ofício de repórter em tempo de
ditadura já sem força, esvaindo-se na abertura lenta e gradual de
Geisel. Pensa nas inúmeras denúncias que fez pessoalmente ou
pautou contra figuras civis da ditadura:
– Contra militares, ninguém jamais se arriscou, ou melhor, nenhum
jornal da mídia convencional teve colhão de publicar. Só os
alternativos.
Olha mais uma vez o relógio, ainda são seis e meia da noite, e o
povo só chega às oito. Pensa em São Paulo, em editores incompetentes
na redação do Estadão que não enxergam um palmo além das fronteiras do estado:
– A cidade de São Paulo, para eles, é o umbigo do Brasil. Imagine
que mandam para o Nordeste e o Norte a mesma pauta geral
sobre produção e comercialização de trigo. Porra, será que eles
não sabem que aqui não se produz trigo?
Pensa em casa, na mulher com quem vive, nas duas filhas pequenas
e nas mulheres dos colegas de redação:
– São heroínas, trabalham e depois correm para os afazeres
domésticos, enquanto os maridos enfiam a cara na cachaça.
– Mas é assim mesmo, perto de toda redação é preciso ter
um bar. Caso contrário, o sujeito chegaria em casa para despejar
a insuportável tensão do dia, da luta contra o relógio no envio de
matéria dentro do horário programado, sob pena de levar bronca
do editor, que também é cobrado pela oficina naquela fábrica de
salsichas.
Pensa na fonte que não sabe do horário industrial no fechamento
do jornal e atrasa mais uma vez a entrevista. Pensa nos que
acham o jornalismo uma subprofissão e que o jornalista pode ser
ameaçado impunemente, ou até mesmo comprado com favores
e dinheiro.
Lembra a vez que um grande banqueiro ofereceu avião para
viagem ao Além São Francisco, com o intuito de mostrar que a
denúncia de grilagem de terra contra ele era infundada:
– Difícil seria convencer 52 famílias habitantes do lugar há
mais de século de que não estavam sendo vítimas de ato criminoso,
com tratores derrubando suas casas de taipa e pistoleiros
ameaçando matar quem não corresse para o mato.
– Difícil explicar a ação do cartório extrajudicial mais próximo
acobertando tudo a soldo do grileiro. Além do avião, insinuações
de favores e facilidades no banco. Deu-se mal, porque a oferta,
além de recusada, foi assunto de matéria no Estadão do dia seguinte.
– Jornalista, aliás, tem uma característica muito própria. Acha-
-se dono de muito poder por causa do acesso fácil a grandes
empresários, autoridades civis e eclesiásticas, e até mesmo a alguns
militares. Ameaça ao telefone as fontes que não querem falar,
ou não lhe dão atenção. E depois do dia de trabalho, volta para casa
igual a qualquer trabalhador, dificuldades iguais, escondidas sob o ar
arrogante, de fechar o orçamento doméstico.
– Para conseguir a façanha de pagar as contas e viver com alguma
dignidade, o jornalista precisa de dois, às vezes, até de três
empregos. Não tem jeito, irmão, tem de morder uma cachaça no
botequim mais próximo, rebatida com uma cerveja gelada, enquanto
refaz os planos de pagamento do fim do mês e sai deixando a conta no prego.
Agora é que o relógio bateu sete horas.
– Moreirão, mais um aqui.
Daqui a pouco, o pessoal chega trazendo o uísque. Há um
acordo: o uísque é da turma, a comida e outras bebidas são da
casa.
Chico o Pensador continua lá, impassível, na terceira cerveja.
Mão no queixo, olho na porta. O outro pensador da noite põe
duas pedras de gelo no copo curto com uísque e ouve mais uma
imprecação de Antônio Moreira:
– Hoje não vai ser como na semana passada. Dez da noite eu
fecho, conforme o combinado. Não adianta Seu Paolo e Seu Victor
virem com conversa mole. Eles chegam tarde porque querem
e vocês inventaram hoje esse negócio de chegar oito horas, é uma
hora a menos, o acerto é de todo mundo chegar às sete. Mudaram
porque quiseram.
Acostumado às queixas desde que voltou a se reunir quatro
anos depois do antigo endereço, o outro não se abalou:
– Tá bom, tá bom, Moreirão, diz à Dona Isaura Loura que
hoje vou querer a moqueca de miolo do jeito que ela sempre faz
para mim.
– A cozinheira é minha, não é sua não. Não tem que recomendar
nada. Na hora, faça o pedido que sai.
Os primeiros a chegar, pontualmente às sete e 45, foram Jadson
e Biaggio, este um novo integrante do grupo recém-contratado
pelo Estadão. Mais um calabrês. Depois, Teixeirinha, Formigli,
Jorginho e Bel com o uísque debaixo do braço, comprado por
um confrade a cada semana pelo democrático sistema do rodízio.
Já passava das oito e 30, quando entraram os dois retardatários,
alvos das reclamações do dono da casa.
Curioso, o chefe olha cada um, em meio à conversa. Cabelos
grisalhados, barriga ganhando realce, a mesa já não faz o mesmo
barulho de antes, já não é preciso voltar a discutir determinados
assuntos.
O sertanejo Jorginho, que foi alertado para não constar em
ata a derrota do chefe para o pistoleiro, é o mais italiano do grupo
na gesticulação. Paolo está ultimando o livro que vai publicar
sobre a censura à imprensa. Ainda abalado com Chico o Pensador,
ele não entra no clima. Em vez disso, assola-o mais uma vez
o drama da autocensura.
Era novo o fato de não haver mais controle formal da imprensa,
censura, tortura e violência desenfreada dos militares. Lutaram
contra isso a vida inteira, mas de repente não tinham mais sentido
os planos mirabolantes de resistência e enfrentamento à ditadura.
No dia em que Geisel comunicou ao Estadão que estava retirando
seus censores da casa, o jornal chamou a atenção de editores
e chefes de sucursais para o cuidado que se deveria ter com o
texto dali em diante. Apreensão geral!
Por um bom tempo as pessoas tatearam amedrontadas no escuro.
Era uma situação nova, desconhecida. O passar do tempo,
contudo, desanuviou o trabalho, mostrou o caminho. Devia-se
fazer o que sempre foi feito: apurar, checar, gravar tudo, não se
restringir à palavra oficial, ouvir os lados envolvidos.
Ali, olhando os amigos de tantos anos, ele percebeu as espirais
do remoinho encurtando-se. Filosofou com o copo de uísque e
pela primeira vez pensou no futuro, o que seria da vida daqueles
quarentões que se reuniam semanalmente para se embriagar. Não
deu asas ao pensamento. Entrou na conversa porque Teixeirinha
já fazia observações ferinas referentes ao teor alcoólico no sangue
do primeiro a chegar naquela noite.
Noite em que Antônio Moreira levou um a zero. Faltavam
15 minutos para as 10, e para gáudio da confraria, Chico o Pensador
pediu o segundo conhaque e a quinta cerveja.
– Agora, quero ver ter moral para nos mandar embora –, sussurrou
Victor, enquanto o dono da casa, de cara amarrada e sem dizer palavra,
trouxe mais gelo para o conhaque.
Viva, Chico o Pensador!


(Texto assinado pelo jornalista Carlos Navarro Filho, publicado em 06/01/2018, na seçãode Literatura, do portal bahianoticias.com.br).


(Postado no Facebook em 02/0/2018)




ALBA HOMENAGEIA MEMÓRIA DE MOREIRA

A coluna de July, em A Tarde, publica hoje nota relativa à homenagem que a Assembleia Legislativa da Bahia prestou, quinta-feira última, à memória de Antônio Moreira, do Restaurante Porto do Moreira, que nos deixou no último dia 02. Abaixo o texto da nota publicada.
HOMENAGEM
A deputada Fabíola Mansur (PSB) apresentou Moção de Pesar na Assembleia Legislativa pela morte de Antônio Moreira, um dos donos do restaurante Porto do Moreira, um reconhecimento e homenagem à sua memória.
No texto, a parlamentar fez questão de anexar texto do jornalista e escritor Florisvaldo Mattos, um dos mais antigos frequentadores do Porto do Moreira, sobre o saudoso amigo para que fique registrado nos Anais da Casa.

“O Porto do Moreira é uma referência não só na gastronomia, mas cultural, intelectual e política da Cidade da Bahia ”, disse Mansur.

(Nota publicada na edição de A Tarde, Caderno 2+, em 06/01/2018).

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