sábado, 13 de janeiro de 2018

Cultura urbana, entrevista de Antônio Risério

UMA ENTREVISTA PARA SER LIDA E GUARDADA (copiado de postagem do jornalista Jary Cardoso, no Facebook, em 12/01/2018).

O antropólogo, poeta, ensaísta e escritor baiano Antônio Risério

– A Voz mais autêntica da Cultura Brasileira neste tempo.
– A erudição que o Brasil contemporâneo assassinou sobrevive neste pensamento axial e no seu pensador.
(Roberto Pinho)
Os comentários acima, postados pelo antropólogo Roberto Pinho, se referem a Antonio Riserio e sua entrevista à "Bravo", cuja íntegra – não a editada pela revista – segue abaixo (juntei os 5 fragmentos em que o texto original foi dividido e publicado por Risério no Face; ele faz uma rápida apresentação pra cada fragmento):

ENTREVISTA À REVISTA "BRAVO" - 1

(Dei uma longa entrevista à revista "Bravo" deste mês.
Tudo bem, foi publicada - mas muito reduzida, algo
mutilada e induzindo o leitor a acreditar que faço uma
celebração da "cultura popular". Por isso, resolvi
publicar a entrevista aqui na íntegra, ainda que por
partes).

P: Na sua opinião, é possível falar em uma noção popular de beleza? Se sim, qual seria ela no caso brasileiro?
R: Não existem linguagens estéticas universais. Mesmo a
música deve ser vista assim: é um fenômeno universal,
não uma linguagem universal. Bach pode não dizer nada
aos kamaiurás, como sabem os antropólogos. Daí que a
noção de beleza seja tão múltipla, variando no tempo,
entre culturas, entre classes sociais e até entre faixas
etárias. Freud fala da feiura da genitália humana, mas
Blake escreve “os genitais – beleza”. Por isso mesmo,
não devemos falar de “uma noção popular” – mas de noções
populares – de beleza. No caso brasileiro, como em
tantos outros, não dá para resumir. Também entre nós
“beleza” é conceito histórica e geograficamente
variável. E temos ainda a dominação cultural. Como
aprendemos com o marxismo, as ideias e práticas da
classe dominante tendem a se tornar social e
culturalmente hegemônicas. Veja a canção popular que diz
“tu és divina e graciosa estátua majestosa...”. O
conceito de beleza, nesse lance, é parnasiano, que foi o
padrão poético dominante no Rio de Janeiro, quando nas
províncias já vicejava a renovação do movimento
simbolista. Esta é uma dialética que não devemos
subestimar: enquanto o erudito busca o popular, o
popular também busca o erudito. Basta pensar em Tarsila
do Amaral e Cartola, por exemplo, que era leitor de
Castro Alves e Olavo Bilac. Mas a gente já não vai ver o
padrão romântico-parnasiano no mundo do desafio e do
cordel, ou em letras do samba de roda: “eu não sou
daqui/ sou da enseada/ só parei aqui/ porque tô comendo
água”. É uma coisa que brota diretamente da prática
cotidiana da língua. E isso vale também para a pintura,
a arquitetura vernacular, etc. É preciso examinar tudo
caso a caso, contextualizando, sociologizando a noção de
beleza. Mas é fato que todo mundo tem uma ideia (e um
ideal) de beleza. Até porque, como dizia o Victor Hugo
de “Trabalhadores do Mar”, à beleza basta ser bela para
fazer bem.

P: A ideia do popular já cumpriu papel decisivo em
movimentos artísticos do país, como no Modernismo e no
Cinema Novo. Mais recentemente, porém, ela parece ter
perdido a centralidade. De quais maneiras o conceito de
popular foi afetado pela globalização conectada e pela
comunicação de massa?
R: No caso do Modernismo, havia uma luta contra o modelo
erudito oitocentista e o popular foi umas das armas
mobilizadas. No caso do Cinema Novo, havia a
ideologização esquerdista do povo... Mas vamos à
pergunta. Tudo depende do que você considere “popular”.
Para mim, “popular” não é sinônimo de arcaico,
autêntico, folclórico, essas coisas. Popular é o que é
produzido pelas classes populares. E o que vivemos hoje
é a terceira ou quarta maré da globalização. A primeira
aconteceu entre os séculos XV e XVI, a partir da chamada
escola de Sagres, e o Brasil é um produto dela. Nascemos
por causa da globalização, do processo inicial de
efetiva planetarização do planeta, quando a Terra se
descobriu a si mesma. O engenho de açúcar é uma entidade
antropologicamente multinacional. A antiga poesia
popular nordestina é coisa que nos veio da Península
Ibérica, composta numa língua também europeia. Etc. Os
intelectuais muitas vezes são uma gente engraçada:
atacam a globalização se esquecendo de que somos filhos
dela e de que temos nos saído muito bem assim. Aliás,
falam da cultura oral como se ela representasse um
período anterior ao da cultura escrita, quando, na
verdade, vivemos hoje numa cultura fortemente oral, da
música popular às sessões de psicanálise. A globalização
tanto pode produzir um João Gilberto quanto a axé music.
E se um “popular” perdeu “centralidade”, no campo da
cultura mais intelectualizada, é porque hoje, entre
outras coisas, não idealizamos tanto “o povo” – e, de um
modo geral, a qualidade das criações populares, como
também a das eruditas ou supostamente eruditas,
despencou vertiginosamente no país.

P: A noção do belo parece guardar hoje uma carga antiga,
romântica. Ela te parece relevante no desenvolvimento
das artes no Brasil?
R: Sim. Eu só não usaria a palavra “desenvolvimento”
porque não acredito nisso em campo estético. Prefiro
falar simplesmente que a beleza continua relevante na
práxis estética brasileira. Tome o caso da arquitetura.
Apesar de todos os trambolhos arquitetônicos que vemos à
nossa volta, a verdade é que ninguém constrói sua
própria casa com a intenção de que ela seja feia. Darcy
Ribeiro, aliás, já falava da “vontade de beleza” entre
nossos índios. E a busca da beleza é permanente.
Niemeyer assimilou a arquitetura internacional
racionalista, mas nunca deixou de lado a dimensão
estética das coisas. Ele às vezes até se defendia dos
“funcionalistas” mais extremados. Uma vez, o João
Filgueiras Lima (Lelé), um dos maiores arquitetos que o
Brasil viu nascer, me disse assim: “O Oscar não precisa
se defender. A beleza também tem um papel, cumpre uma
função”. Não tenho dúvida quanto a isso. Agora, podemos
dizer da beleza o que alguém falou da poesia (Mário
Faustino, acho, mas posso estar enganado): ela é um
pássaro versátil e bem pouco esnobe, capaz de fazer seu
ninho em qualquer canto.
-o-
(Na parte que publico agora, o entrevistador se voltou
mais para minhas próprias criações. Adiante, voltaremos
a falar de música, estética urbana, etc.);

ENTREVISTA À REVISTA BRAVO 2

P: Falando especificamente sobre sua poesia, a oralidade
é apontada como um aspecto importante de seus escritos.
Como a cultura popular alimenta sua construção poética?
Já houve alguma tensão entre ela e o que se costuma
chamar "cultura erudita"?
R: Não, nenhuma tensão. Sou um intelectual que, desde a
adolescência, tanto lia Goethe e Joyce ou ouvia Schubert
e Anton Webern, quanto vivia intensamente em meio a
formas e práticas produzidas entre as classes populares
brasileiras. O que me interessa não é se uma coisa é
popular ou erudita – o que importa é a qualidade do
produto. Digo sempre isso... Mas aviso que não se trata
de tomar o partido da cultura erudita contra a cultura
popular ou a cultura de massa. Estou falando de
qualidade – e ela pode ser encontrada em qualquer dessas
zonas culturais. Na escrita de Guimarães Rosa e Lezama
Lima, no artesanato ou no cordel, no baião de Luiz
Gonzaga, no cinema hollywoodiano ou no rock. Não se
trata de fazer essas distinções como definidoras
apriorísticas de um determinado “quantum” de qualidade.
Não. Há coisas muito bem realizadas e coisas
vexaminosamente mal feitas em todos esses planos. E me
alimento disso, de uma dieta da qualidade.

P: Augusto de Campos escreveu que, com o livro "Oriki
Orixá", você inventou a poesia iorubá para nós, leitores
de língua portuguesa. O que o atraiu na cultura iorubá?
R:Sua riqueza estética, sua densidade filosófica, seus
ensinamentos existenciais... Nem preciso me prender ao
que já se tornou clássico, como a criação visual de Ifé,
por exemplo, suas máscaras e esculturas maravilhosas,
que encantaram a Europa. Passei três anos estudando
sozinho a língua iorubá (não, não falo, apenas leio,
como também no caso do alemão, que minha mulher fala,
mas ela nasceu em Berlim) só para mergulhar nesse
universo poético. A poesia sagrada iorubana, os orikis
de orixá, tem coisas realmente esplendorosas, um
artesanato verbal brilhante e inventivo, com imagens
insólitas e toda uma caprichosa tessitura
fonossemântica. No plano metafísico, os iorubanos
acreditam que três forças regem o cosmos: iuá é o
princípio-força-energia que permite que as coisas sejam;
axé é o princípio-força-energia que permite que aquilo
que é tenha um vir a ser; e abá é o princípio-força-
energia que permite que o vir a ser daquilo que é tenha
um sentido. Isso é muito sofisticado. Além disso, os
ensinamentos existenciais, como disse. Uma vez, me vendo
fazer um discurso indignado contra a ameaça da
especulação imobiliária à integridade territorial dos
terreiros de candomblé, uma grande ialorixá da Bahia me
disse o seguinte: “Quando você está quieto no seu canto,
pensando e escrevendo, é Oxóssi. Quando você fica assim
furioso é que Iansã saltou na frente. Mas, às vezes, a
gente precisa ter calma”. Ainda meio irritado,
perguntei: “E o que é mesmo a calma?”. Ela parou um
pouco e me disse uma coisa que nunca esqueci: “A calma é
a compreensão do tempo”.

P: Sobre seus romances, li que você considera o mais
recente, "Que Você é Esse?", uma espécie de "biografia
geracional". De quais maneiras as figuras da cultura
brasileira atravessam o livro? Seria um balanço das
contradições entre o que sua geração sonhou para o país
e o resultado presente?
R: “Que Você É Esse?” é o melhor livro que escrevi até
aqui. Fiquei muito feliz por ele ter tocado a
inteligência e a sensibilidade de diversos artistas e
intelectuais que admiro, a começar pelos romancistas
Agualusa e João Almino, passando por cineastas como Cacá
Diegues e Tadeu Jungle, criadores como Arnaldo Antunes,
estudiosos como Eduardo Giannetti e Jorge Caldeira...
Mas vamos ao livro. Ele se articula em dois planos. Num
deles, os personagens se movem no presente da vida
brasileira, da década de 1960 para cá e aí está a
biografia geracional. No outro, através dos contos
escritos pelo protagonista do livro, temos a recriação
literária de diversos mundos brasileiros, de temas
histórico-culturais de nosso passado. E esses dois
planos dialogam, configurando o romance. Mas também se
distinguem. Inclusive, na dimensão da linguagem
(Dostoiévski fez esse jogo num texto excepcional, “O
Crocodilo”). Nos contos do protagonista Kertzman, a
linguagem é mais elevada e a luz se acende sobre o
passado, tratando de alguns grandes temas nacionais: o
processo de conquista e colonização do país, o
candomblé, a presença judaica em nossa formação, a
escravidão, o quilombo, o drama de um ex-português no
processo da independência nacional em 1822-1824, amor e
sexo numa sociedade escravista, uma aventura amazônico-
paulistana tematizando também o alcoolismo, a
religiosidade, etc. E o foco narrativo é nítido. Já no
outro plano do livro, um pequeno romance fragmentário
falando da vida atual das personagens a partir da década
de 1960, o registro estilístico é menos “elevado” (“mais
natural”, diria Dostoiévski) e o foco narrativo perde a
nitidez. Há um certo embaralhamento de vozes, justamente
com o objetivo de realizar, também na dimensão formal, o
clima de biografia de uma geração. Estruturalmente, é
isso. Mas não faço balanço de nada. Não estou fechado
pra balanço. Estou aberto – o tempo todo – para o
movimento real da vida brasileira.

-o-
[Neste parte da conversa, um pouco de antropologia da
nossa música popular: Caymmi e Luiz Gonzaga]

ENTREVISTA REVISTA BRAVO 3

P: Gostaria de falar um pouco sobre seus estudos na área
da música popular. No livro "Caymmi: uma utopia de
lugar", você escreve que o novo e o velho, o arcaico e o
moderno, coexistem na música de Dorival Caymmi. Como
estes pares opostos se articulam na obra do compositor?
R: Caymmi nunca foi ingênuo, naïf, “primitivo”. É um
criador sofisticado. Uma vez ele me disse que lia tudo
que se escrevia sobre o mar. Gostava da poesia de Lorca.
E ouvia muito Debussy. E é um inovador, um criador
originalíssimo. A gente às vezes não percebe porque o
novo, em Caymmi, não tem caráter traumático, como o novo
da Bossa Nova ou da Tropicália. Ele soube harmonizar
invenção e tradição. Nunca se recusou a sondagens
musicais. Ia do samba da Bahia ao impressionismo
europeu. Tom Jobim percebeu logo, dizendo que Caymmi
usava notas de sexta e sétima maior nos acordes menores
e imprevisíveis modulações de meio-tom, “coisas que
ninguém usava na época”. Caymmi se orgulhava disso. E o
arcaico e o moderno se harmonizam também na sua poesia.
Ele fala desde o seu ambiente natural, seguindo uma
tradição. Mas ao mesmo tempo, como os principais
renovadores da poesia brasileira pós-modernista, é capaz
de compor um texto como a primeira parte da letra de
“Saudade de Itapoã”, que é montada exclusivamente com
sintagmas nominais. E em “Sargaço Mar”, ele constrói uma
letra paronomásica, recorrendo inclusive a procedimentos
experimentais: “sargaço ar – sargaço mar”. São alguns
exemplos que mostram esse jogo caymmiano entre o novo e
o antigo.

P: Você diferencia as canções praieiras de Caymmi do
"sonho romântico civilizado" de autores como Herman
Melville, ao mesmo tempo que o afasta do pensamento
nacionalista de Mário de Andrade e Villa-Lobos. Apesar
de ser tomado por muitos como o compositor de uma Bahia
bucólica e naïf, parece haver em Caymmi uma contribuição
estética original. Em quais termos ela se daria?
R: Veja o que ele faz numa composição formidável como “O
Mar”, por exemplo. O que a gente ouve, na abertura da
canção, é um adágio que vai ralentando em direção ao
grave. E é fantástico, remetendo ao impressionismo de
Debussy. Porque não há um centro tonal definido, uma
cadência tonal clara, dirigida. Fiz uma análise disso
com Tuzé de Abreu, que está lá no livro “Caymmi: Uma
Utopia de Lugar”. Tuzé me mostrou ponto por ponto a
construção disso. A harmonia é de uma simplicidade
extrema. Mas a construção é primitiva e sofisticada a um
só tempo. Caymmi fica um tempo enorme no mesmo acorde, o
que não aconteceria na armação tonal comum. Usa
expedientes que remetem ao impressionismo europeu. De
outra parte, intervém o tempo todo na métrica, com
precipitações e retardamentos, em ondulações cromáticas
que de certa forma reproduzem o movimento da maré.
Ouvimos a trama, o desenho caprichoso das ondas e das
ondinas. Ele nos coloca magistralmente na beira do mar.
É lindo.

P: Em um texto sobre Luiz Gonzaga, você escreve que o
cantor desempenhou o papel de "força antidesagregadora"
durante os anos de migração nordestina. Qual foi a sua
importância para a cultura popular brasileira?
R: Luiz Gonzaga é um exemplo típico de alta qualidade e
alta criatividade no âmbito da globalização e da cultura
de massa. Ele parte de uma base arcaica e a transfigura
inventivamente, para projetá-la, através das novas
tecnologias da comunicação de massa, num Brasil que se
modernizava, entre a ditadura do Estado Novo, a II
Guerra Mundial e o suicídio de Getúlio Vargas. Para
lembrar a expressão de Walter Benjamin, Gonzaga é a
recriação da poemúsica sertaneja na época de sua
reprodutibilidade técnica. Nasce da cultura popular
tradicional do Brasil Sertanejo e encarna esta cultura
numa dimensão inovadora. Ele não carrega uma tradição,
pura e simplesmente. Juntamente com Humberto Teixeira e
Zé Dantas, ele reinventa a tradição. Recria uma cultura
poético-musical nordestina a partir de uma estratégia
estética bem definida: o baião.

P: Ainda neste assunto, por que foi Gonzaga e não Caymmi
"a estrela das migrações nordestinas"? O segundo não
tinha tanta "Saudade da Bahia" quanto o primeiro ao
cantar "Adeus, Pernambuco"?
R: O problema não é de saudade, é de cultura. Caymmi e
Gonzaga pertencem a mundos antropológicos completamente
diferentes, do plano genético à dimensão simbólica. A
gente pode ver esta mesma diferença entre “Vidas Secas”
de Graciliano Ramos e “Mar Morto” de Jorge Amado. Esse
negócio de falar do Nordeste às vezes confunde e
atrapalha. O Nordeste é uma invenção historicamente
recente. Uma criação da ditadura do Estado Novo, via
IBGE, servindo à obsessão de Vargas em fixar regiões e
consolidar identidades. Salvador é leste, não nordeste.
Na verdade, geograficamente, Salvador e o Rio de Janeiro
são cidades do Brasil Atlântico Central. Gonzaga é o
sertão, região de caboclos, das secas, do cangaço, do
messianismo popular, da carne de sol. Caymmi é o
Recôncavo Baiano, região de mulatos, dos orixás, dos
atabaques politeístas do candomblé, da moqueca de frutos
do mar. São realidades radicalmente distintas. E quando
falo de migrações nordestinas para São Paulo, em meados
do século passado, estou falando de retirantes do Brasil
Sertanejo. Caymmi nunca teve qualquer vínculo cultural
com o sertão. Quem falava pelo sertão era o Rei do
Baião. Filho de pretos da Bahia e de italianos, Caymmi
era a mulatice praieira, num lugar cheio de rios, lagoas
e cachoeiras, onde nunca aconteceu uma única seca. A
Rosinha de “O Mar” e a Rosinha de “Asa Branca”, apesar
de terem o mesmo nome, vivem em universos inteiramente
dessemelhantes.

COMENTÁRIOS DE ROBERTO PINHO COPIADOS DESTE POST:
– Magistral!
– A Voz mais autêntica da Cultura Brasileira neste
tempo.
– A erudição que o Brasil contemporâneo assassinou
sobrevive neste pensamento axial e no seu pensador.
– Onde se omite a universidade brasileira que não o
protege e patrocina?
– Aqui se expõe o desacerto e a falência completa da
anti-política cultural do Brasil e da sua indecente
gestão cultural.
– Se a Academia Brasileira de Letras servisse para
apontar valores mais do que incensar vaidades e
enferrujar cabeças, seria o espaço certo para Risério
estar.
-o-
(No fragmento de hoje: antropologia, urbanismo, estética
urbana...)

ENTREVISTA REVISTA BRAVO 4

P: Já que passamos para os termos geográficos, gostaria
de falar sobre o livro "A Cidade no Brasil". Neste
estudo, você percorre um arco temporal que vai de formas
de organização indígenas às nossas cidades
contemporâneas. O que foi reservado para as classes
populares na experiência urbana brasileira, vista em
longa duração?
R: Nossos centros urbanos segregaram progressivamente os
mais pobres. Três forças em “ão” nos atiraram na
enrascada em que agora nos vemos: a expansão, a
segregação e a exclusão.Vale dizer, com a expansão
urbana apartando as pessoas e se desdobrando em base
segregacionista (na combinação de investidas estatais de
desapropriação e da ação igualmente desapropriadora do
mercado), num contexto de aprofundamento da
desigualdade. Difícil ter uma identidade urbana
razoavelmente compartilhada numa cidade cindida,
repartida espacialmente segundo a estratificação
econômica, não raro sobrepondo linhas de classe e cor. A
pobreza pura e simples, numa cidade relativamente
disposta em círculos próximos de vizinhança, onde todos
vivam basicamente nos mesmos lugares, como o Rio de até
o início do século passado ou a Salvador de até meados
daquele mesmo século XX, não desfigura a imagem comum da
cidade, nem corrói as bases da identificação urbana. O
que faz isso é a desigualdade. E os tapumes sociais
implantam princípios de subserviência e práticas de
agressão entre os dessemelhantes, numa situação que
conduz a transgressões e à ampliação descontrolada da
violência. Como falar então de ideias de conjunto, de
“pertencimento” a um corpo coletivo, de identificação do
cidadão com a sua cidade? Esses pontos soam cada vez
mais fictícios ou, o que é pior, como elementos de
manipulação destinados a engabelar a população. Em
resumo, sob o signo da segregação socioterritorial,
cidade nenhuma pode se manter saudável. E, caso forças
antientrópicas não se organizem e estabeleçam conexões
pragmáticas entre si, podemos nos encalacrar numa blind
alley: ou as determinações do poder terminarão por
asfixiar a cidadania ou a anomia vai se instalar em
todas as instâncias da existência citadina. Temos de
derrubar os muros que separam as classes sociais em
nossas cidades.

P: Na discussão sobre as cidades, gostaria, se possível,
que você comentasse a percepção que se tem sobre a
feiura geral de nossas cidades. Por que isso se dá? É
possível encontrar beleza em nossas cidades apesar
disso?
R: A feiura quase geral de nossas cidades é um fato, mas
não uma fatalidade. Tanto que isso é recente. Nossas
cidades antigas chegaram a ser muito bonitas. Os atuais
“centros históricos” que restam, de Paraty a Tiradentes,
são uma prova disso. As cidades mineiras do tempo do
ouro, construídas entre os séculos XVIII e XIX, são
belíssimas. Mariana, por exemplo. De uma ponta a outra
do país, encontramos joias da arquitetura militar,
daquele forte dos reis magos em Natal à fortaleza de
Monte Serrat e ao forte do mar, em Salvador. Aliás,
Salvador, Olinda e o Rio de Janeiro são lugares que
chegaram lindos ao século XIX e mesmo ao começo do
século XX. Daí para cá foi que a coisa degringolou. Mas
não, em princípio, por uma questão de estilo ou escolha
urbanística e arquitetônica. Afinal, Brasília é de uma
beleza extraordinária. O que fez nossas cidades
capitalistas modernas ficarem horrorosas, em contraste
com a beleza de nossas cidades barroco-escravistas, foi
uma conjunção de outros fatores. Em primeiro lugar,
tivemos um processo de migração massiva de populações
pobres vindo do campo para a cidade. E essa transição
urbana brasileira, que se completou na década de 1970,
se deu em alta velocidade. Não foi devidamente
acompanhada pelos poderes públicos, que não fizeram o
que era necessário fazer. Tivemos então o inchaço
grotesco de nossas principais cidades. Um outro fator
foi e é de natureza educacional. De educação doméstica e
urbana, mas também de educação cultural e,
particularmente, de educação estética. A ignorância de
nossos governantes é uma coisa escandalosa. Eles não
sabem o que é uma cidade e muito menos, claro, o que
significa uma estética das cidades. Temos, de outra
parte, o chamado setor da construção civil que, no
Brasil, se traduz em ganância. Especulação imobiliária.
Um grupo poderoso (e também ignorante) que está voltado
inteiramente para o lucro, jamais para a beleza da
cidade ou a qualidade da vida urbana. Veja o que foi
feito na orla de Copacabana e na orla da Boa Viagem, no
Recife. E o poder público municipal é servo deste setor.
Os prefeitos brasileiros, regra geral, praticamente
unânime, se conduzem como meros representantes da
burguesia da construção civil. Muito mais do que
prefeitos, são agentes imobiliários. O governo federal,
por sua vez, pegou uma iniciativa de alta relevância,
que foi a criação do Ministério das Cidades, e
transformou o órgão em mero e sujo balcão da corrupção e
da barganha. Devemos falar ainda do alargamento das
desigualdades sociais no país, produzindo periferias
pavorosas. Enfim, o que encontramos de beleza, em nossas
cidades, são centros antigos, joias arquitetônicas
contemporâneas sempre pontuais, raras e isoladas, e a
paisagem natural, quando governantes e empreiteiros não
a desfiguram e destroem.

P: Ainda neste sentido, existem soluções apresentadas
pela arquitetura popular no passado ou no presente para
a solução dos principais problemas?
R: As favelas já foram bonitas. Hoje, não. Oswald de
Andrade podia escrever, num de seus manifestos da década
de 1920, que favelas eram fatos estéticos. Mas não teria
como dizer isso hoje. Atualmente, nossas favelas são tão
feias quanto todos os bairros pobres de nossas grandes
cidades. Aliás, a população favelada passou a copiar os
modelos arquitetônicos vigentes na cidade, deixou de ter
uma coisa própria dela, há tempos. Copiam até prédios de
apartamentos. De qualquer modo, nunca idealizei as
favelas, em termos urbanístico-arquitetônicos. Em
matéria de arquitetura e urbanismo, não vamos encontrar
nenhum impulso voluntário de “criatividade” em nossas
favelas e bairros populares, a não ser a ginástica que
se é obrigado a fazer para montar um abrigo, trabalhando
no horizonte do possível, sob pressões terrivelmente
dominadoras. Essa arquitetura nunca nasceu do voo livre
da imaginação. Pelo contrário: como o analfabetismo, é
filha da opressão social e cultural. Da escassez. Da
absoluta falta de meios, elementos e instrumentos para
fazer as coisas acontecerem de outra forma. Ou seja: não
é a materialização plena do sonho ou desejo do seu
produtor, mas o objeto que foi possível produzir, sob a
tirania da pobreza.
-o-
[Finalizando a conversa: cidade, cultura, política]

ENTREVISTA REVISTA BRAVO 5

P: Há episódios do passado nos quais podemos mirar para
pensar alternativas ao caos urbano atual?
R: Vamos falar de escolhas urbanísticas, em plano geral.
No Livro II da República, Platão faz suas personagens
imaginarem a criação de uma cidade. Impõe-se então a
distinção entre a “cidade natural”, digamos assim, e a
“cidade da luxúria”. A cidade natural é aquela que
existe para atender às nossas necessidades reais e
primárias. Basicamente, comer e morar. Quando o
agrupamento humano vai além disso, voltando-se para
satisfazer demandas que não dizem respeito ao “querer
natural”, configura-se a cidade do excesso, da luxúria,
da acumulação ilimitada de riqueza, das falsas
necessidades. Para supri-las, a cidade precisa de mais
espaço e de mais servos. Platão não toma posição por um
ou outro modelo de cidade, apenas faz seus convidados
chegarem a conclusões a partir do que está implicado no
quadro. A cidade do excesso e do supérfluo conduz à
guerra. No plano externo porque, para atender a uma
miríade de desejos, ela precisa de mais espaço não só
para abrigar uma população necessariamente crescente
(até em resposta a uma complexidade cada vez maior da
divisão social do trabalho), como de mais terras para
produzir. E vai ser obrigada a tomar essas terras manu
militari, arrancando-as das cidades que lhe são
vizinhas. No plano interno porque, ao exceder o limite
da necessidade natural, a cidade precisa de mais
trabalhadores, acentuando as desigualdades sociais. Daí
que, no Livro IV da mesma República, Platão afirme que
qualquer cidade é sempre dividida em duas: uma é a
cidade dos pobres, outra é a cidade dos ricos – e estas
duas cidades estão sempre em guerra uma com a outra.
Platão não se refere a uma terceira “guerra” gerada pela
cidade da luxúria, na medida em que seu funcionamento
exige um consumo descontrolado de recursos naturais. É a
guerra contra a natureza, que implica o suicídio da
espécie. Daí a preocupação mais recente em combater o
excesso, as falsas necessidades do consumo humano, no
sentido de fazer a humanidade se aproximar um pouco do
modelo básico da cidade natural. De um tipo de vida de
caráter mais comunitário. Hoje, a necessidade de frear a
cidade do excesso, de tentar conduzir uma sua relativa
reconversão ao modelo de cidade natural, fundada na
satisfação exclusiva de nossas demandas essenciais, é
tema de cúpulas políticas internacionais, estudos
científicos, etc. E, em seu sentido mais amplo, a cidade
natural aponta para um espaço urbano desenhado pela
redução das distâncias sociais e pela diminuição dos
crimes ecológicos. Poderemos caminhar assim para uma
cidade ambientalmente equilibrada e socialmente mais
saudável.

P: No livro "Avant-garde na Bahia", você reconta a
experiência de viver na efervescente Bahia do final dos
anos 50. O que caracterizou aquele momento? Imagino que
seja chocante a diferença entre o horizonte de
expectativas daqueles dias quando comparado ao atual.
R: A diferença central se dá no plano da educação e da
informação. Naquela época, tínhamos uma Bahia
sofisticada, cosmopolita e experimental, que gerou o
Cinema Novo e a Tropicália. A peça central disso foi a
universidade baiana, então implantada e dirigida por
Edgard Santos. Ele trouxe a vanguarda europeia para
ensinar aqui: a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, os
filósofos portugueses Agostinho da Silva e Eduardo
Lourenço, o antropólogo francês Pierre Verger, o músico
alemão Koellreutter, etc. Eles se juntaram a mestres
locais, como Vivaldo da Costa Lima, por exemplo. Essa
gente formou uma geração de jovens baianos, com destaque
para Glauber Rocha e Caetano Veloso, que virou a mesa da
cultura brasileira. Hoje, o que temos é uma Bahia
desinformada, autocomplacente, provinciana e de costas
para o mundo. É a Bahia dos marqueteiros e da axé music.
Como sempre digo, trocaram Glauber Rocha por Duda
Mendonça e João Gilberto por Ivete Sangalo.

P: Você costuma dizer que o Brasil é simultaneamente o
país mais e menos racista do mundo. O que quis dizer com
a fórmula?
R: É uma boutade, claro. Mas verdadeira. Um amigo meu
diz que vale por várias teses. É um exagero. Mas digo
isso para desarmar discursos cristalizados (sejam
senhoriais ou racialistas, que também os movimentos
negros, os chamados “profissionais da negritude”, são
muito reacionários). E para chamar a atenção para as
singularidades brasileiras nesse campo. Ainda aqui, o
Brasil é um país paradoxal. Ao longo de mais de cinco
séculos de existência, conseguimos criar espaços do mais
generoso e genuíno convívio interracial, não só entre
brancos e pretos, como entre árabes e judeus, por
exemplo. Ao mesmo tempo, o racismo aparece o tempo todo
nas mais diversas instâncias de nossa vida social. Temos
então, simultaneamente, as duas coisas dentro de nós: o
racismo e o antirracismo. Às vezes, se manifestando
agudamente dentro da mesma pessoa.

P: Para encerrar: em junho de 2013, o direito à cidade
ganhou protagonismo no debate nacional com os protestos
pelo passe livre. Hoje, a questão parece ofuscada pela
corrupção e pelas pautas identitárias. Voltar a este
tópico seria uma maneira de superar a polarização que
assola o país?
R: Não acho que vá superar. Nossos políticos e
governantes, de esquerda ou de direita, assim como os
“identitários”, não têm conhecimento algum do assunto,
nem mostram interesse em conhecê-lo. Em 2008, numa
reunião da campanha de Marta Suplicy à prefeitura
paulistana, empreguei a expressão “segregação espacial”,
tão comum em nossos estudos urbanísticos, e um futuro
ministro de Dilma, o cretino do Ricardo Berzoini, caiu
na gargalhada, achando que eu tinha feito uma piada, que
o “espacial” dizia respeito ao espaço sideral... De
qualquer modo, penso o seguinte. As duas grandes
questões de 2013 foram a contestação do partidocratismo
(a ênfase na crise representacional) e o direito à
cidade. Mas uma grande crise nacional eclipsou isso e
fez a discussão recuar. Da perspectiva de quem se
interessa por uma reinvenção da política (oportunidade
histórica que Fernando Henrique e Lula jogaram no lixo)
e a configuração de uma nova esquerda no país, restou
mais ou menos o seguinte. Uma crise maior – econômica,
política e moral – se sobrepôs ao “não nos representam”
e ao “o povo unido não precisa de partido”. Veio então a
polarização “fratricida”, com o aborto maniqueísta da
discussão política mais interessante. Assim, se, em
2013, emergiu uma juventude contestadora, indo às ruas
contra o PT e o sistema, o que vimos, três anos depois,
foi esta mesma juventude dando um nó na cabeça, agora
contra o impeachment e a favor do PT e de Dilma,
compenetrando-se, subitamente solenizada e envelhecida,
de que caíra em suas mãos a “missão histórica” de salvar
a democracia brasileira. Toda a nova discussão política
foi arquivada. Daí que se deva dizer que se, no plano da
economia, como defendem diversos especialistas,
refreou-se a disparada do país em direção ao abismo, do
ponto de vista político e cultural, ao contrário, o
impeachment de Dilma foi um atraso de vida. Enfim, o
impeachment e o golpe parlamentar desviaram as atenções
da discussão que realmente importava (e importa), no
processo de reinvenção da democracia brasileira.


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