segunda-feira, 28 de agosto de 2017

OITO SONETOS INGLESES


Ophellia, do pré-rafaelita inglês John Everett Millais (1829-1896)

Florisvaldo Mattos

LAVOURA FATAL COM GÓRGONAS

As portas e as janelas, tristemente,
Miravam serrania e verdes pastos.
Assim como derrete campos vastos,
O sol na tarde insulta rosto ardente.
Sou um homem de outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram matas, montes, rios,
Na aura vertiginosa dos plantios,
Carregam a memória de balaços,
Que hoje não denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus que chega e arreia a mala,
Vindo de México ou de Guatemala,
Amor ao ferro, só, nenhum alerta.
            E quando as intempéries regurgitam,
            São os céus vingativos que vomitam.

(SSS/BA, 26/0/2017)

DE BEM COM A PECUÁRIA

No caminho da serra estava eu; eu,
Mirando ao longe os altos verdejantes.
À noite ali verdejam pirilampos;
De tão doce, embaixo, a água é quase mel.
Levei tempos ali, pensando grande
Em torto plantar de sonho e ilusão.
Alguém para e me diz: “Não seja insano!
Satanás só franqueia a contramão”.
Tapei ouvidos, olhos fechei, fui
Em frente, a deslumbrar-me pelos pastos
Com as fosforescências de um sol vacum,
Mais deslumbrado quanto mais sonhava.

E me perdia após na noite vária,
Encantado com a palavra Pecuária.

(FM. SSA, 23/03/2017)


ENTRE MAR E FLORA

            Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*
                                               Sexto Propércio (c. 47-15 a.C.)

Procuro-te; não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
            No teu encalço, a tarde toda turva,
            Compraz-me te mirar, de curva em curva.

(Salvador, manhã de 26/01/2017)
*Enquanto os fados nos permitem, no amor saciemos nossos olhos.

ENQUANTO A NOITE VAI-SE

Pelo sol da manhã, muitos me viram;
Da terra, pelo sal, outros me acharam.
É sempre belo o dia, quando lírios
Tiveram chão e luz e não murcharam.
Já um dia foste noite de meu bem;
Nem por isso fiquei embaraçado.
Pior foi quando vi, ali e além,
O nada que restou de meu passado.
Noite, por que te vás? Quero-te perto
Do pouco que de mim ficou na estrada.
Em tudo que me foi pranto e deserto,
Não me verás chorar água passada.
            Um deus passou correndo na clareira.
            Não vi, porque dormi a noite inteira.

(SSA/BA, 21/10/2016)

COM A ALMA DA RUAS

As ruas de Água Preta começavam
Onde se perde a minha solidão.
Era no Apertucho que me esperavam
As alegrias de meu coração.
A Ruy Barbosa era uma rua enorme,
Que consumia o meu sonhar ligeiro,
Deixando para trás a do Cruzeiro,
A ouvir o som de uma canção que dorme.
Que irei fazer na Rua do Comércio,
Entre burros de cargas e tropeiros,
De calça nova, inutilmente, a ver se
O que me diz a lábia dos caixeiros
Não vale nada do que eu guardo mais
Do campinho lá da Rua do Gás?

(FM-Tarde de 11/01/2017, nova morada)

SEM AS CORDAS DE AÇO
                              Para Durval Burgos

Trêmulas folhas a cantar modinhas,
Que ele anotava para o seu violão;
Seja de flores ou de ervas daninhas,
É assim que se compõe uma canção;
Ou da água venha no sabor da espuma,
Ou de um demônio de pernas roliças;
Vencendo o mar, que acende o sol na bruma,
Seja o começo de infindáveis liças;
Beijando a pedra que sobrou da tarde,
O mar revolto já se foi embora.
A jornada de sons pela noite arde,
Tantas notas armou com vento e flora.
            Na esperança de outra manhã mais doce,
            Dedilha a pedra qual se cordas fosse.

(SSA/BA, aurora de 24/10/2016)

ECOS DE MIM MESMO

De tanto ler compêndios de arte vária,
Um dia pensei que a Morte é que me acalma.
Esta literatura funerária
Me fez perder os dias de minha alma.
Saio e abro então as portas do outro mundo,
Pondo-me entre deserto e mar bravio.
Quando me torna à terra o mar profundo,
Soa dentro de mim um sol de estio.
Glacial sempre, em seus pormenores duros,
O tempo me fizera cauteloso,
Ausentando de mim os meus futuros.
Se vezes me senti pouco operoso,
Entre nuvens passei, tomei o visto:
Tenho nome, sou gente; enfim, existo.

(SSA/BA, 26/11/2016, manhã, em nova morada)

SINTÁTICO VERÃO TRAVESSO

Calmo, um dia empenhei-me em ler o mar.
O mar me rogava que não o lesse.
As ondas eram para mim palavras;
As espumas, sílabas sobre a areia.
Mirava o céu, as aves confirmavam,
Pelo próprio som que elas imitavam.
O mar ardia e me recriminava,
E me mandou que consultasse os peixes.
Lá fui, e mergulhei por entre rochas.
A um que passava de fulgente escama
Instei se o mar, de tarde ou de manhã,
Não escondia um cabedal de histórias.
            Manda-me o peixe que regresse à areia.
            Lá, estirada, me aguarda uma sereia.


(SSA/BA, 20/12/2016)

O Amor de Dante, 1857, do pré-rafaelita inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)

SOBRE O SONETO INGLÊS


Desde que foi supostamente inventado por um italiano no século XIII, o soneto que tem sobrevivido séculos a fio, como forma poética, na estrutura de catorze versos, que os italianos Petrarca e Dante Alighieri aperfeiçoaram, fixando-a na disposição estrófica de dois quartetos e dois tercetos (4-4-3-3), com o rótulo de soneto clássico petrarquiano, que ganharia o mundo adaptado praticamente a todas as culturas do Ocidente, até que o gênio de William Shakespeare a ela associasse derivação por ele inventada, que ganharia o rótulo de soneto inglês ou shakespeareano, obediente ao conjunto dos catorze versos, mas disposta na estrutura de três quartetos unificados, de rimas independentes, encerrando-se com um dístico de rimas emparelhadas. No entanto, embora praticada na sua finitude compacta de reconhecido valor rítmico, a esta forma tem sido negada a classificação de soneto, sob a alegação de que jamais se consagraria com este nome nas línguas em que a forma petrarquiana prevaleceu. É este ponto que destaca o ensaísta Alexandre Timbelli, em texto disponível em http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/2062310publicado na internet, citando opiniões de J. G. de Araújo Jorge e de Vasco de Castro Lima, que trataram do assunto, e remontando ao Trato de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, escrito em 1905, observando que nele “o Soneto Inglês não está sequer mencionado como Gênero Lírico de Poesia”. Lembra ele que essa forma adquiriu formato definitivo a partir da publicação da obra de William Shakespeare intitulada The Sonnets – 154 Sonetos, em 1609. No entanto, as duas formas têm subsistido em idiomas ocidentais, como o português e o castelhano, consagradas pelo culto de poetas maiores e menores, como a expressão de um sensível ajuste verbal, em que ideias e imagens se envolvem com palavras para alcançar a emoção. O certo é que, apesar de o soneto ter sido condenado e execrado pelo modernismo, cultores de ambas as formas não têm faltado no curso dos séculos; a primeira, desde a alta Idade Média, desafiando movimentos, escolas e marés do gosto, enquanto a segunda, martelando na mesma bigorna, prosseguiu e prossegue praticada por poetas de alta sensibilidade, inclusive entre nós o baiano Jair Gramacho (1930-2003), com primorosos exemplos. (F. M.)

§§§
FLORISVALDO MATTOS é poeta, ensaísta e jornalista; pertence à Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia; tem onze livros publicados, oito de poesia e três de ensaios, entre estes, os recentes Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos elementais (2012) e Estuário dos dias e outros poemas (2017), de poesia; A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates (1998) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004), de ensaios.

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