quinta-feira, 24 de agosto de 2017

IMORTAL GLAUBER ROCHA - 22/08/2017

Postado no Facebook, terça-feira, 22/08/2017

Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, em 1976, na Sucursal do Jornal do Brasil na Bahia 
A jornalista Olívia Soares posta uma foto do cineasta Glauber Rocha, lembrando que hoje transcorrem 36 anos, que ele nos deixou. Com ele, um amigo e um líder, vivi a intensidade e o fervor do movimento cultural que marcou na Bahia, em fins dos anos 50 e inícios dos 60, a atuação da chamada Geração Mapa, como também férvidos dias de entusiasmo praticante em redações de jornais, num tempo em que Liberdade era muito mais que um nome. Aproveito esta sentida evocação para postar aqui o poema com entonação de elegia que dediquei à sua memória poucos dias após o seu desenlace no Rio de Janeiro.
Tomo a decisão de reproduzi-lo abaixo, ilustrado com uma foto do hoje também saudoso fotojornalista e professor Oldemar Vítor, de 1976, flagrando encontro de Glauber com o jornalista Florisvaldo Mattos, em um de seus retornos a Salvador, vindo da Europa, na Sucursal do Jornal do Brasil, então na Rua Chile. (FM).

A EDIÇÃO MATUTINA
(À memória de Glauber Rocha, artista, amigo e companheiro de jornal)

Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados
Muito
de dor enclausurada
de raiva contida
de memória desesperada
Muito
de petrificado esterco
de martírio indevassado
fel de carcomida flor
Como em toda experiência humana
Como em toda verdade proclamada
Há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas
Nada sei além do que me contam
relatórios
encimados por tipos de caixa negros
vomitando
pelas janelas dos escritórios
pelos pátios dos colégios
pelos verdes
gramados dos jardins municipais
pelas oficinas mecânicas
pelos bares
pelas praias e estádios superpovoados
pelos ônibus
pelos trens
pelos aviões
e navios que levam petróleo
pelo mar
por todas as estradas que começam na infância
Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu
Tudo o que a água afogou e o fogo torrou
Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou
Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu
Por esta janela escancarada diante do mar
com o horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã de um dezembro moribundo
rajadas de azul me trazem a história
de tudo
estampada na páginas em fúria
onde não há nenhum signo gráfico
nenhum nome
somente linhas de sangue
vergonha e desespero
Algo lido não sei onde
mas logo esquecido
Algo escrito não sei onde
mas logo apagado
Algo de ausência denunciada
mas logo justificada
Algo de presença intolerada
mas logo consentida
Algo de dúvida arguida
mas logo desfeita
Algo que violou a alma
mas logo com rigor apurado
Algo de assombro que povoa os muros
Algo de aceso punhal que cega as mentes
Algo catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca veio à luz nem foi explicado
Vem-me pela porta aberta desse verão doente
ecoando na varanda das páginas desertas
das edições que sangram gota a gota
nas enfermarias do acontecer
(de ontem
de hoje
de amanhã
de sempre)
e adquire uma velocidade assustadora
Porque a luz é forte e ensurdece
Porque o agitado do mar escurece
Porque chega o vento e exerce
o poder de lançar a espuma
contra as estrelas adormecidas
Porque a poeira da rua enegrece
as vestes nos varais abandonados
Porque é cedo e todos sabemos que tarda

Um novo ciclope no horizonte aparece
Os corpos voam sobre os arranha-céus
Porque a exausta carne se desprende
dos ossos ante petardos de sal
Nada sei além do que me contam
as furiosas páginas dos diários mudos
Morreu o Chefe de Reportagem
E ficamos todos tristes
A penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina é densa e os automóveis
entram em choque de faróis apagados
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)
Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Que enumere os chopes de todos os botequins
Que reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Que forneça o mais seguro boletim meteorológico
Que informe o que se passa nos cinemas
Que esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Que estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Que abra os corações aos ritos do candomblé
Que dê verso às canções dos trios-elétricos
Que vista a mortalha dos foliões de todos os dias
Que prepare o espírito de todos para o Carnaval
E assim seguindo apenas
o curso luminoso
de cada signo morto
perfurando o arenoso
das páginas desertas
bobinas de horror
manchas de tinta fresca
chumbo e insone rastro
Chorarei então
por entre os escombros
da edição matutina
(Salvador, ago. 1981)

(Poema constante de A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior, 1996, p. 82)


UMA CARTA DE GLAUBER ROCHA
A propósito do poema que postei, no Facebook (23/08/2017), em memória de Glauber Rocha, pelo transcurso dos 36 anos de seu desenlace, um amigo meu e dele, companheiro de geração, o advogado Antônio Guerra Lima (Guerrinha), enviou-me por e-mail esta carta, datada de 1957, do saudoso cineasta, então com 18 anos, ao advogado e ensaísta Adalmir da Cunha Miranda, fundador da célebre revista "Ângulos", da Faculdade de Direito (Ufba), escaneada do livro "Glauber Rocha - Cartas ao Mundo", organizado por Ivana Bentes (SP: Companhia das Letras, 1997, p. 104), na qual apareço como personagem. Modéstia à parte, esta sim, um documento para pesquisadores. (Alô, alô, Jorginho Ramos!).
Vai abaixo, um tanto apagada, mas creio que dê para ler. Em tempo: o soneto só seria publicado em livro muitos anos depois, em 1996, com o título de "Soneto da Alvorada". Na foto, Glauber e FM, em 1976.


Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, encontro em Salvador, anos 1970

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