terça-feira, 19 de agosto de 2014

COMPOSIÇÃO DE FERROVIA

Trem-de-ferro, óleo sobre tela de Almiro Borges, "naïf "baiano, considerado o primeiro no Brasil a pintar marias-fumaças


I - Galope sangrento

Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.

Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.

Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.

Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.


II - Inclinação do Touro

Abandona-se à agonia das campinas
vencidas, idêntico de origens, branco touro.
Bruscamente desperta das árvores em fuga,
da massa dos dias. De repente, das raízes
do pranto inclina-se operoso, agrupa-se
a um barulho de ferros e caldeiras,
a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.
Do sentimento comum de águas em arranco,
súbito levanta-se, acorda ferroviárias
perspectivas amarradas ao volume do sono.

De aurora que lhe umedece cascos e chifres
baixa uma luz influente de conquista;
do seu dorso de argila ao meu rosto chega
uma luz que me alcança cruza-me os nervos
ampla de rumos mergulha na carne de todos
resistente caindo sem parar nas cabeças.
De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso
crepúsculo, evoluindo em cada elemento,
sua construção permanece de touro veloz

em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.
"Abandona-se à agonia das campinas / vencidas (...) das árvores em fuga"... Trem de ferro, pintura de Kissac Júnior

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